segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O que resta do que fomos


Egas Moniz perante o Rei de Castela por Miguel Ângelo Lupi ( 1865)
A honra perdida de uma época que foi
Por Baptista Bastos
“Alguma coisa se perdeu, nesta caminhada desventurada para o pior dos abismos: o que resta do que fomos. E que resta é tão escassa e selectiva como a memória delida de uma antiga juventude.
Sempre me fascinou o episódio de Egas Moniz, de baraço ao pescoço e filhos ao lado, de procurar cumprir, junto do rei de Castela, a palavra a que D. Afonso Henriques faltara. Lenda, História, mentira, verdade?, pouco me interessa. A natureza do assunto é que me toca. O símbolo da honra, contido na metáfora, exprime um princípio sagrado: quando se diz, faz-se. Cresci e fui educado, pela família e por velhos hábitos de antigos mestres, com estes princípios. Nada de heróico: simplesmente o cumprimento natural das exigências morais de conduta.
A minha geração raramente traiu o testamento. "Entre os portugueses / traidores houve às vezes", falou Camões. Mas a generalidade (tomando as generalizações com todas as precauções devidas) manteve-se-lhe leal. Digo "leal" e não "fiel" porque fidelidade é coisa de cão, e lealdade tem a ver com carácter. A fidelidade pode conduzir ao apoio das maiores perversões e das mais torpes ignomínias. A lealdade, pelo contrário, tem a ver com convicções de natureza ética, e não pactua com a infâmia ou se torna conivente com a perfídia. Estou mais do lado de Sartre ou de Camus, que arriscaram a opinião, e algumas vezes erraram, porque envolvidos no turbilhão da época, do que de um Aron, ardiloso e medido. Como as ideias de um homem não lhe pertencem em sistema de exclusividade, antes fazem parte de um "tempo", de um "ambiente" e, até de uma "cultura" de grupo, fomos, em Portugal, os rapazes do meu tempo, marcados por essa "atmosfera."
Reconheço que os nossos impulsos ideológicos e intelectuais conduziram, acaso, a injustiças e a arrogâncias tão desnecessárias quanto cruéis. Mas a grandeza do que íamos aprendendo talvez explicasse o propósito. E este consistia no seguinte: amigo não trai amigo; não se denuncia nunca; a amizade é um posto.
Estes padrões de comportamento podem, nos sombrios tempos de agora, suscitar algum desdém e zombaria, mas eram exigências da razão antifascista. E o antifascismo, não esqueçamos e não admitamos que o deformem, foi uma admirável frente moral, que congregou comunistas e socialistas, monárquicos e católicos, democratas e simples cidadãos, movidos pelo singelo desejo de ser livres e felizes.
A batalha pela liberdade era, antes e tudo, a batalha pela dignidade humana, que teria, inevitavelmente, de criar os seus valores e de recuperar o que de melhor envolvia o humanismo. "Humanismo e Terror" é, justamente, o título de um livro de Merleau-Ponty, outro dos grandes, a que regresso com frequência, e cuja leitura está longe de ser obsoleta ou datada. Honra, conhecimento, vontade e paixão representam, afinal, sinónimos da mesma galáxia. Quem não percebe a força destes conceitos e o que eles comportam de vida, de essência dos laços sociais, não percebe nada de nada.
Sou um velho caturra, mas nunca serei um moralista caturra. O que define um homem, repito, é a qualidade das suas lealdades; não a servidão das suas fidelidades. E sei muito bem o que custou, a muitos homens, de mágoa, desapontamento e dor, a alteração das suas ideias. O que nos aconteceu foi sentirmos, na pele e na alma, vergonha por um homem que a não teve nem tem. Por um homem que representa uma associação de outros homens, os quais não se demarcaram do opróbrio e até, diz-se, que o empurraram para o acto.
Alguma coisa se perdeu, nesta caminhada desventurada para o pior dos abismos: o que resta do que fomos. E que resta é tão escassa e selectiva como a memória delida de uma antiga juventude.”Baptista Bastos em Crónica publicada no Jornal de Negócios, em 12 de Julho de 2013

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