Por
Ferreira Gullar
“Já no começo do
começo, a arte tinha duas faces: uma figurativa e outra não figurativa ou
decorativa, sendo que a primeira expressava nosso fascínio pela imagem da coisa
real que, para o homem do paleolítico, não era simples imagem e, sim, um outro
modo de ela existir.
Tanto pensava assim
que, ao desenhar um bisão na parede da caverna, crava-o de setas, certo de que,
com isso, magicamente, atingiria o bisão real e facilitaria caçá-lo.
Naturalmente, com a
evolução do conhecimento objetivo da realidade, essa identificação da imagem
com o ser real se desfez; não obstante, até hoje aquele fascínio se mantém,
tendo atravessado as mais diversas civilizações e conceitos de realidade e
cultura.
É isso que explica
a presença da expressão figurativa nas pinturas murais, nos relevos e nas
esculturas, representando o mundo imaginário dos mitos e dos deuses.
Já bem mais perto
de nós, no renascimento, a representação da figura humana tenta ultrapassar a
fantasia para captar a realidade mesma em sua materialidade. Disso resultou, na
verdade, outro tipo de fantasia, pelo simples fato de que a representação da
coisa não é a coisa.
Data daí o que se
entende por arte da pintura no mundo ocidental e que ampliou a representação
das formas e coisas para criar cenas, paisagens e representação de fatos
mitológicos, históricos e cotidianos.
Nesse processo,
elaborou-se uma linguagem que, além de representar seres e cenas, criou uma
espécie de espaço fictício, que emprestou tridimensionalidade à superfície
bidimensional da tela.
Esse universo
pictórico é implodido no começo do século 20, quando, ao desintegrar-se a
linguagem figurativa, ocorreu uma descoberta revolucionária: a de que todas as
formas têm expressão, mesmo que nada representem; por exemplo, um pedaço de
papel amassado é uma expressão e, conforme a cor que tenha, será uma expressão
diferente.
Essa descoberta
teve consequências importantes no campo das artes plásticas. Dela advieram as
tendências expressionistas, cubistas e, como consequência extrema, a pintura
tachista que, como diz o nome, é feita de manchas.
De todo esse
processo -que descrevo de maneira simplificada- surgiria o que se conhece como
arte conceitual ou arte contemporânea, cuja característica principal é usar as
próprias coisas, não a imagem delas, como expressão.
Claro que as coisas
-seja uma pessoa, um animal, um objeto- são em si mesmos expressões. Isso vale
tanto para um objeto natural -um animal, uma pedra- como para um produto
industrial. Tal é o caso do famoso urinol que Marcel Duchamp enviou para a
exposição de Nova York, em 1917, tendo-lhe posto um nome ("Fontaine")
e uma assinatura fictícia (R. Mutt).
Sucede que, por
isso mesmo, essa "obra" não tem a magia do objeto de arte ou, se a
tem, está oculta por sua condição natural ou por sua finalidade utilitária que,
no exemplo citado, nada tem de mágico ou poético, muito pelo contrário. Para
lhe devolver o significado mágico, há que deslocá-lo da situação habitual, da
sua funcionalidade. Quem descobriu isso foi Isidore Ducasse, Conde de
Lautréamont, ao escrever em "Les Chants de Maldoror", o seguinte:
"belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura ou um
guarda-chuva sobre uma mesa de necrotério".
Claro, se ponho um
objeto qualquer numa situação inusitada, torno-o "desconhecido" e,
por isso, mostro-lhe a forma que se apresenta estranha. Sucede que esse é um
efeito circunstancial e fugaz, já que, em seguida, a surpresa se desfaz e o
guarda-chuva volta a ser mero guarda-chuva, como o urinol de Duchamp de há
muito voltou a ser mero urinol, enquanto que a magia da imagem pictórica é
permanente, porque inata, essencial.
Uma natureza morta
de Morandi, por exemplo, mantém essa magia, esteja o quadro onde estiver.
Transformadas em pintura, suas garrafas jamais voltarão a ser meras garrafas.
Enfim, só nos resta
constatar que a figura quase que desapareceu da linguagem da arte, ou porque
virou mancha ou porque foi substituída pela própria coisa. Não obstante, a
imagem figurativa, que nasceu com o ser humano nas cavernas, não morreu:
renasceu, faz pouco, nos muros das cidades, à revelia do mercado de arte e
graça ao talento dos jovens grafiteiros.” Ferreira Gullar, em
Artigo de Opinião, publicado na Folha de S.Paulo, em 11/08/2013
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