As velas da memória
Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida
Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.
Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?
Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?
E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder.
Ruy Belo, in
“ Todos os Poemas”, Ed. Assírio & Alvim,
UP THE TREE
O voo do
poeta
traduz
uma obsessão
projecta-o
para fora de si
é nevralgia
de uma pátria
em exílio.
Céptico
das palavras
o poeta
constrói
voando
a voluptuosa
fúnebre
alegoria.
Nada mais lhe
importa
no turbilhão
da sua
trágica
misteriosa
ilusão:
aprender
a derrota.
Enfermo de si
próprio
o poeta
profetiza a
catástrofe
é um
subversivo
do delírio
ave do
desespero.
Sobre a sua
mão
desfeita
anda tão tão
devagar
ou então
veloz
brinca
com o
irremediável.
Ana Marques
Gastão,in “ Nós / Nudos “, Gótica, 2004
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