terça-feira, 9 de julho de 2013

O voo do Poeta



As velas da memória

Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida

Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.

Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?

Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?

E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder.
Ruy Belo, in “ Todos os Poemas”, Ed. Assírio & Alvim,


UP THE TREE

O voo do poeta
traduz
uma obsessão
projecta-o para fora de si
é nevralgia
de uma pátria em exílio.

Céptico
das palavras
o poeta
constrói voando
a voluptuosa
fúnebre alegoria.

Nada mais lhe importa
no turbilhão
da sua trágica
misteriosa
ilusão: aprender
a derrota.

Enfermo de si próprio
o poeta
profetiza a catástrofe
é um subversivo
do delírio
ave do desespero.

Sobre a sua mão
desfeita
anda tão tão devagar
ou então veloz
brinca
com o irremediável.

Ana Marques Gastão,in “ Nós / Nudos “, Gótica, 2004

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