terça-feira, 2 de julho de 2013

O império da palavra sobre a frase

Maria Teresa Horta: corpo solar e lunar no corpo do texto
Por Ana Marques Gastão
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Maria Teresa Horta
"Duas palavras bastariam para introduzir o leitor na obra de Maria Teresa Horta. São elas corpo e mulher. Mas seria dizer pouco, embora também haja “pouco” no excesso que constitui a sua escrita, no sentido da sábia utilização do mínimo, do pormenor, na desmesura do gesto, frondoso, que leva o poema ao Outro. É seu um corpo erotizado, pele sobre a pele, onde a própria nudez se diz tecido, cintilância, seda-sede, dobra irreverente, que não aceita a passividade das lisuras no uso de uma voz feminina, de uma “mulher doente de afagos.” É seu um corpo alucinatório, rondando por vezes a litania, na imposição de uma experiência orgânica, lunar na ficção, solar na poesia. Como em Fulgor (1):

Tacteio à minha
volta
e é só fulgor

Tento deslumbrar
o sol que cega

Demoro-me demasiado
no calor

Para a minha sede
Nenhuma água chega
A escrita da poetisa de Minha Senhora de Mim (1971) tem sexo, por se encontrar próxima da historicamente determinada vida das mulheres - ao nível da experiência interior, corporal, social e cultural -, pelas temáticas abordadas, pelo seu universo existencial, pelos aspectos da linguagem e da construção poética ou narrativa, consoante o registo em que a autora se move. E depois há ainda o outro corpo, o corpo da linguagem, uma body writing, a corporização do texto, no qual a exaltação dos sentidos é voraz, dolente, vertiginosa, na continuidade entre elementos diversos, como o mundo real e o imaginário, a ferida e o espanto, a sombra e o fogo. Enumera-se assim o lugar do desejo, que não deixa de ser, no sentido barthiano, o lugar da escrita (2), como se viajássemos dentro de uma cantabile ária, expressa a partir de um dentro - a experiência, vivência do verso - e não apenas do que é exteriormente perceptível:
Escreve a poetisa em Segredo (3):
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados

para uma sombra mais espessa

deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar 
Vicente do Rego Monteiro
Este poema contém em si, na sua estratégia de insubordinação, um lastro de verdade na revelação de uma obra transgressora que, desde a década de 60, mergulha, solitária, os pulsos no espaço gelado e cortante que separa a luz da escuridão, ousando enveredar por um território directa ou indirectamente vedado, ao longo da história da literatura, às mulheres, ou pelo menos estigmatizado: a escrita erótica. Consciente da dantiana perda da “inteligência do amor”, a autora de Jardim de Inverno (4) constrói um dicionário sentimental e do corpo - de que é exemplo, o livro Educação Sentimental (5), em resposta a Flaubert -, na acepção de uma desordem e de uma inversão dos papéis tradicionalmente atribuídos ao masculino e ao feminino. E fá-lo no rasto do primitivo lirismo português e das cantigas de amigo e de amor. As “directrizes”, não programáticas, da poesia de Maria Teresa Horta são pelo menos duas: actualizar o passado literário, o cantar à antiga em que a “persona” lírica é a amiga medieval ou a pastora quinhentista, recuperando/renovando a malha de um tecido tradicional; e, na vontade fatigada, subverter o pensamento de claustro característico da solidão feminina, criando um discurso avesso ao brando, e, no entanto, cálido, rigoroso e musical, na imaginação e no invento da paixão, na ameaça da solidão de onde emerge o fascínio. O sujeito poético profere, pois, um discurso de ruptura, desabrido, que, na fase inicial, dir-se-ia marcado pela imagem surrealizante, cortante, enxuta, laminar, de que é exemplo o seu Poema de Insubordinação incluido em Tatuagem (6), certamente um dos mais emblemáticos do Grupo Poesia 61, a que pertenceu ao lado de Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Gastão Cruz e Casimiro de Brito:

(…)
Preto
sem submissão
palavra de relevo agudo
nas ruas

Preto
De água de vento de pássaro
de pénis
de agudamente preto
de demasiado

como um cardo submerso
de som

Preto de saliva na ogiva
dos lábios (...) 
Vicente do Rego Monteiro
Mas, em Maria Teresa Horta, o corpo, inconformista, tão rebelde como dócil, não representa, apenas, e por si só, a expansão, o canto, o êxtase, dir-se-ia esvaziamento e revolta de quem não cumpre as regras, na consciência da relatividade de que padece o relacionamento intersubjectivo. Poesia límpida, mas de uma limpidez fracturada, povoada de fissuras, a da autora de Destino, que desvenda também - na permanência de um desejo que revém à terra mãe, à origem, ao acto fundador da criação -, os mitos do amor impeditivo, irrealizado. Poesia escrita num tempo interior que é simultaneamente vertigem, destruição e ruína: “Onde está a outra que de mim/é já de mim/o mais amargo fel?” (7) Escrever é, portanto, um acto do corpo, sendo a escrita simultaneamente fundação do mundo, “cristal do tempo”, para Maria Teresa Horta, autora que jamais poderá ser arredada da criação, com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, desse livro claramente feminista (ao contrário da restante obra da escritora de Ema): as Novas Cartas Portuguesas, publicadas debaixo de fogo, em 1971 (8). A obra teve um destino previsível: imediatamente retirada de circulação, levou as três Marias a tribunal onde foram condenadas por atentado ao pudor e pornografia. Mas não só uma leitura político-social deverá acompanhar este texto a três vozes que denuncia a opressão da mulher no domínio privado e público, estamos perante um documento literário único e inovador, até pelo seu carácter híbrido e fragmentário, no qual coabitam vários registos: epistolar, poema em verso ou prosa, diálogo, etc.E ainda o corpo no corpo da ficção de Maria Teresa Horta. Entre outros romances, novelas, contos, destacam-se Ambas as Mãos sobre o Corpo (9), dominado por um intimismo lânguido, onírico, pelo prazer sensual do texto; Ema, livro convulsivo, pálido de morte, terrífico (10) e A Paixão Segundo Constança H. (11), cruamente tecido, por entre as asas dos anjos, no laceramento da loucura feminina, da paixão, da traição, no eclipse de um Eu devastado. Certo que a poetisa esquece mais facilmente a ficcionista do que a ficcionista esquece a poetisa. Mas nenhuma deixa para trás o corpo, nem a precipitação intensiva no desatino das sensações ou a viagem psicanalítica, o texto deslizando, lento, ritmado, na circularidade da lágrima, do prazer, do medo, da loucura. A loucura feminina... Obsessiva, a escrita romanesca da autora de Cristina (12) vive de encruzilhadas dialécticas: palavra/corpo, solidão/espera, esquecimento/medo, amor/morte.Se a poesia de Maria Teresa Horta é vital, a ficção dir-se-ia mortal. Existe o escuro e nele a matéria da escrita. Corpo, desejo, dor, amor, separação, abandono, violência, homicídio, loucura, indiferença... Eis alguns dos habitantes do seu universo, regido por um alfabeto marcado pelo império da palavra sobre a frase. Palavras-clarão, cintilações reveladas numa obra romanesca fragmentária e, por isso, singular, expressão de totalidades em redução, tendo como personagens mulheres que falam do mundo como se vivessem dentro de um livro em monólogos gritantes, lentos, mordidos, ardidos, mulheres acolhidas em paisagens líquidas, indefinidas, povoadas de emoções, desconcertos e inconformações à sombra de um tão pouco amor.
Os romances de Maria Teresa Horta são narrativas ao arrepio da convencionalidade, tão frágeis quanto mortíferos, obsessivos na sua luminescência feminina e nocturna. Tudo se ilumina da sombra, de uma obscuridade essencial, distinta da meramente verbal, no adensamento das atmosferas plúmbeas, adequadas ao estilhaçamento, à perda do ser. É a noite, na acepção de Blanchot (13), a vingar neste universo; a possibilidade da escrita, procura tacteante, espaço de mergulho, meio de conhecimento - na sua simplicidade aparente -, dentro da matéria escura, do que dói. A escrita de ficcional de Maria Teresa Horta é a glória do vazio e do nada como em Marguerite Duras, texto de “olhos para dentro” como em Clarice Lispector (14). Dir-se-ia que parte da oposição entre um dentro e um fora, nascendo da impossibilidade de conter um “coração aceso”, da circularidade da metáfora erótica, surgindo a quase auto-destruição do excesso de ausência, caótica, desértica. Será a poesia a preencher esse negrume na avidez ou na libertação do canto, no desatino e no excesso, no desassossego e na vitalidade desatada, no mar revolto, no grito de água, na fusão jubilatória entre o corpo tangível e o corpo textual, ambos entrelaçados e empenhados na recuperação do mundo. O corpo, sempre o corpo, como lugar do voo, de anjos luzentes, recortados no escuro, sobrevoando a dor. Um tanto púrpura, um tanto azul..." Ana Marques Gastão,(Escritora, crítica literária, poeta, jornalista portuguesa), in Revista de Cultura Agulha nº 46,Julho de 2005, Página ilustrada com obras do artista Vicente do Rego Monteiro (Brasil).

Notas:

1. “Fulgor” in Só de Amor, de Maria Teresa Horta, Gótica, 1992. 2. Roland Barthes, Le Plaisir du Texte, Paris, Éditions du Seuil, Oeuvres Complètes, Tome IV, 1972-1976.
3. “Segredo” in Minha Senhora de Mim, Gótica, de Maria Teresa Horta, 2001 (5ª edição).
4. Maria Teresa Horta, Jardim de Inverno, Lisboa, Guimarães Editora, 1966.
5. Maria Teresa Horta, Educação Sentimental, Lisboa, A Comuna, 1975.
6. Tatuagem in Poesia 61,1961.
7. O Mais Amargo Fel in Destino, de Maria Teresa Horta, Lisboa, Gótica, 1997.
8. Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, Novas Cartas Portuguesas, Lisboa, Dom Quixote, 2001 (8ª edição).
9. Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, Lisboa, Publicações Europa-América, 1979 (3ª edição).
10. Maria Teresa Horta, Ema, Lisboa, Edições Rolim, 1984.
11. Maria Teresa Horta, A Paixão Segundo Constança H., Lisboa, Círculo de Leitores, 1995.
12. Maria Teresa Horta, Cristina, Lisboa, Edições Rolim, 1985.
13. Maurice Blanchot, L’Espace Litteráire, Paris, Gallimard, 1955.
14. Clarice Lispector, Para Não Esquecer, São Paulo, Siciliano, 1992 (4ª edição). 

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