“O escritor Mia Couto
recebeu, esta segunda-feira, o Prémio Camões, partilhando-o com a gente anónima
de Moçambique e tomando-o como uma celebração do que ainda há por fazer no que
respeita à língua portuguesa.
«Pensamos que um prémio serve para celebrar o que já fizemos. Prefiro pensar
que se trata de celebrar o que há ainda por fazer, e quanto nos falta realizar
a todos nós para que seja mais viva e mais verdadeira esta família que
celebramos na nossa língua comum», disse Mia Couto, que recebeu o galardão das
mãos dos presidentes português, Cavaco Silva, e brasileira, Dilma Rousseff, no
Palácio de Queluz. Durante o seu discurso, o autor lamentou que os povos que falam português têm
sido esquecidos e exultou a luta pela independência de Moçambique.Já o Presidente da República felicitou a presença de Dilma Rousseff em Portugal
no dia de Camões, bem como o escritor Mia Couto, considerando-o «um dos mais
reconhecidos e versáteis autores da lusofonia contemporânea».
«Mia Couto reconstrói o tempo e o modo moçambicanos, as tradições e a oralidade
da sua terra natal, aquela que foi terra sonâmbula e hoje constitui um dos
países mais promissores do continente africano», disse.
Por seu turno, Dilma Rousseff considerou que o galardão entregue «servirá para
aprofundar o conhecimento da obra» de Mia Couto no Brasil.”Fonte:Imprensa
diária
O Gato e o Escuro
"Vejam, meus
filhos, o gatinho preto, sentado no cimo desta história.
Pois ele nem
sempre foi dessa cor.
Conta a mãe
dele que, antes, tinha sido amarelo, às malhas e às pintas.
Todos lhe
chamavam o Pintalgato.
Diz-se que
ficou desta aparência, em totalidade negra, por motivo de um susto.
Vou aqui
contar como aconteceu essa trespassagem de claro para escuro.
O caso, vos
digo, não é nada claro.
Aconteceu
assim:
o gatinho
gostava de passear-se nessa linha onde o dia faz fronteira com a noite.
Faz de conta
o pôr do Sol fosse um muro.
Faz mais de
conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.
A mãe se
afligia e pedia:
- Nunca
atravesse a luz para o lado de lá.
Essa era a
aflição dela, que o seu menino passasse além do pôr de algum Sol. O filho dizia
que sim, acenava consentindo.
Mas fingia
obediência.
Porque o
Pintalgato chegava ao poente e espreitava o lado de lá.
Namoriscando
o proibido, seus olhos pirilampiscavam.
Certa vez,
inspirou coragem e passou uma perna para o lado de lá, onde a noite se enrosca
a dormir.
Foi ganhando
mais confiança e, de cada vez, se adentrou um bocadinho.
Até que a
metade completa dele já passara a fronteira, para além do limite.
Quando
regressava de sua desobediência, olhou as patas dianteiras e se assustou.
Estavam
pretas, mais que breu.
Escondeu-se
num canto, mais enrolado que o pangolim.
Não queria
ser visto em flagrante escuridão.
Mesmo assim,
no dia seguinte, ele insistiu na brincadeira.
E passou
mesmo todo inteiro para o lado de além da claridade.
À medida que
avançava seu coração tiquetaqueava.
Temia o
castigo. Fechou os olhos e andou assim, sobrancelhado, noite adentro. Andou,
andou, atravessando a imensa noitidão.
Só quando
desaguou na outra margem do tempo ele ousou despersianar os olhos. Olhou o
corpo e viu que já nem a si se via. Que aconteceu? Virara cego?
Por que razão
o mundo se embrulhava num pano preto?
Chorou.
Chorou.
E chorou.
Pensava que
nunca mais regressaria ao seu original formato.
Foi então que
ouviu uma voz dizendo:
- Não chore,
gatinho.
- Quem é?
- Sou eu, o
escuro. Eu é que devia chorar porque olho tudo e não vejo nada.
Sim, o
escuro, coitado. Que vida a dele, sempre afastado da luz!
Não era de
sentir pena? Por exemplo, ele se entristecia de não enxergar os lindos olhos do
bichano. Nem os seus mesmo ele distinguia, olhos pretos em corpo negro. Nada,
nem a cauda nem o arco tenso das costas. Nada sobrava de sua anterior gateza.
E o escuro,
triste, desabou em lágrimas.
Estava-se
naquele desfile de queixas quando se aproximou uma grande gata. Er a mãe do
gato desobediente. O gatinho Pintalgato se arredou, receoso que a mãe lhe
trouxesse um castigo. Mas a mãe estava ocupada em consolar o escuro. E lhe
disse:
- Pois eu dou
licença a teus olhos:
fiquem
verdes, tão verdes que amarelos.
E os olhos do
escuro se amarelaram. E se viram escorrer, enxofrinhas, duas lagriminhas
amarelas em fundo preto.
O escuro
ainda chorava:
- Sou feio.
Não há quem goste de mim.
- Mentira,
você é lindo. Tanto como os outros.
- Então
porque não figuro nem no arco-íris?
- Você figura
no meu arco-íris.
- Os meninos
têm medo de mim. Todos têm medo do escuro.
- Os meninos
não sabem que o escuro só existe é dentro de nós.
- Não
entendo, Dona Gata.
- Dentro de
cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos. Agora me
entende?
- Não estou
claro, Dona Gata.
- Não é você
que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com nosso medos.
A mãe gata
sorriu bondades, ronronou ternuras, esfregou carinho no corpo do escuro.
E foram
carícias que ela lhe dedicou, muitas e tantas que o escuro adormeceu. Quando
despertou viu que as suas costas estavam das cores todas da luz.
Metade do seu
corpo brilhava, arco-iriscando. Afinal?
O espanto
ainda o abraçava quando escutou a voz da gata grande:
- Você quer
ser meu filho?
O escuro se
encolheu, ataratonto.
Filho?
Mas ele nem
chegava a ser coisa alguma, nem sequer antecoisa.
- Como posso
ser seu filho se eu nem sou gato?
- E quem lhe
disse que não é?
E o escuro
sacudiu o corpo e sentiu a cauda, serpenteando o espaço. Esticou a perna e viu
brilhar as unhas, disparadas como repentinas lâminas.
O Pintalgato
até se arrepiou, vendo um irmão tão recente.
- Mas, mãe:
sou irmão
disso aí?
- Duvida,
Pintalgatito?
Pois vou-lhe
provar que sou mãe dos dois.
Olhe bem para
os meus olhos e verá.
Pintalgato
fitou o fundo dos olhos da sua mãe, como se se debruçasse num poço escuro. De
rompante, quase se derrubou, lhe surgiu como que um relâmpago atravessando a
noite.
Pintalgato
acordou, todo estremolhado, e viu que, afinal, tudo tinha sido um sonho. Chamou
pela mãe. Ela se aproximou e ele notou seus olhos, viu uma estranheza nunca
antes reparada. Quando olhava o escuro, a mãe ficava com os olhos pretos.
Pareciam encheram de escuro. Como se engravidassem de breu, a abarrotar de
pupilas.
Ante a luz,
porém, seus olhos todos se amarelavam, claros e luminosos, salvo uma
estreitinha fenda preta.
Então, o
gatinho Pintalgato espreitou nessa fenda escura como se vislumbrasse o abismo.
Por detrás
dessa fenda o que é que ele viu?
Adivinham?
Pois ele viu
um gato preto, enroscado do outro lado do mundo.” Mia Couto, in “ O Gato e o Escuro”,
2001 , Editorial Caminho
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