Atenienses e mélios, Portugal e a
Europa, poder e política
por ANSELMO BORGES
“1. Foi pela
mão da filósofa e mística Simone Weil e do filósofo André Comte-Sponville que
voltei à leitura da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídedes. E lá está
aquele passo célebre, V, 104-105, que narra o encontro entre os atenienses e os
mélios, quando os atenienses estavam em guerra contra Esparta e queriam forçar
os habitantes da pequena ilha de Melos a juntar-se a eles. Uma vez que não
cederam, os atenienses arrasaram a cidade, mataram os homens, venderam como escravos
as mulheres e as crianças.
O mais
terrível é a razão apresentada. De facto, perante o ultimato ateniense, os
mélios imploraram piedade e até disseram que, em caso de guerra, teriam a
protecção dos deuses, pois a justiça estava do seu lado. Os atenienses
responderam: "Quanto à divina benevolência, nós também não cremos ser
inferiores, pois nem exigimos nem fazemos nada que esteja fora do juízo que os
homens têm das coisas divinas nem dos desejos em que baseiam as suas relações
recíprocas. Efectivamente, cremos que os deuses e os homens (no primeiro caso,
trata-se de uma opinião, e, no segundo, de uma certeza) imperam sempre em
virtude de uma lei natural sobre aqueles a quem superam em poder. Não fomos nós
que estabelecemos esta lei nem fomos os primeiros a aplicá-la. Já existia
quando a recebemos e havemos de deixá-la como legado à posteridade. E sabemos
que também vós, e qualquer outro, se chegasse a esta situação de poder como
nós, faríeis o mesmo."
Está aí, no
seu esplendor e horror, a defesa da lei do mais forte.
2. A
organização não-governamental Oxfam revela que nos paraísos fiscais se
encontram 14 biliões de euros (14 com doze zeros à frente), tendo dois terços
origem na União Europeia. Se esses 14 biliões fossem taxados, poder-se-ia
acabar com a pobreza extrema no mundo duas vezes.
Num trabalho
coordenado por Augusto Mateus, ficou-se a saber que Portugal recebeu, ao longo
dos últimos 25 anos, 81 mil milhões de euros de fundos comunitários, o que
significa 9 milhões por dia. Pergunta-se para onde foi tanto dinheiro, se teve
as aplicações mais racionais... E porque é que continuamos o País mais desigual
da Europa. E, quando Portugal se afunda na crise, como se explica tanta
impunidade.
De qualquer
modo, Paulo Morais vem dizer, no seu livro Da Corrupção à Crise. Que Fazer?,
que "enquanto o País empobrece, a classe média se extingue e o desemprego
alastra, a corrupção continua a aumentar, os mecanismos de corrupção agravam-se
e cresce a promiscuidade entre a política e os negócios".
3. Vivemos
num mundo deveras perigoso e os espíritos mais lúcidos temem pelo futuro da paz
e da democracia.
Portugal não
tem solução fora da Europa. Mas a Europa, sem união e procurando o caminho de
estruturas federativas, não tem futuro: num mundo globalizado, tornar-se-á irrelevante.
Por sua vez, um mundo globalizado precisa de uma governança global.
Em todo este
contexto, é o célebre sociólogo Zygmunt Bauman, que já aqui citei algumas vezes
e que tive o prazer de encontrar no grande acontecimento cultural que foi o III
Festival Literário do Funchal, que tem razão, quando reclama o recasamento do
poder e da política.
Qual é o
problema? Nos tempos modernos, nos Estados-nação, houve durante cerca de
duzentos anos um casamento entre poder e política, e julgou-se que "poder
e política deveriam continuar de qualquer maneira a viver juntos: a arte
política como o poder de fazer coisas, diga-se um poder regulado, compensado e
orientado pela política". Ora, o que está a acontecer é que numa
globalização meramente negativa não conseguimos ainda instituições políticas de
carácter global e o poder tende a evaporar-se no ciberespaço, num mundo
planetário. Em síntese, "o poder globaliza-se enquanto a política
permanece local". O poder já não está subordinado à política nem é por ela
limitado. "A política encontra-se cada vez mais desprovida (e torna-se
cada vez mais destituída) de poder, e os Estados-nação, como tal, podem fazer
cada vez menos do que faziam antes.” Anselmo Borges, em Artigo de Opinião
publicado no DN, em 22 de Junho de 2013
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