"E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a ideia daquela flor, ou antes, a ideia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como do interurbano. Parecia vir de mais longe ainda... Você está vendo que a moça começou a ter medo.
- E eu também.
- Não seja bobo. O facto é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo quase nada. A perseguição telefónica não parava. Era sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que o seu sossego eterno - admitindo que se tratasse de pessoa morta - ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.
A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai ( a intervenção da mãe não abalara a voz). Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam «a voz».
- A voz chamou hoje? - indagava o pai, chegando da cidade.
- Ora. É infalível, suspirava a mãe, meio desalentada.
Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a frequentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?
Dizem que o rapaz começou a tocar para todos os telefones da rua General Polidor, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia... Discava, ouvia o alô, conferia a voz - não era -, desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto - o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça - e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências, mas infrutíferas.
Claro que a moça deixou de atender o telefone. Não falava nem mais para as amigas. Então a «voz», que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais «você me dá minha flor», mas «quero minha flor», «quem furtou minha flor tem de restituir», etc. Diálogo com essas pessoas, a «voz» não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a «voz» não dava explicações.
Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Mas, ou a polícia estava muito ocupada em prender comunistas, ou investigações telefónicas não eram a sua especialidade - o facto é que não se apurou nada. Então o pai correu à Companhia Telefónica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a factores de ordem técnica...
- Mas é a tranquilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar do telefone?
- Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Então é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver se telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para sua casa, tranquilize a família, e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.
Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando. Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque - já disse que era distraída - nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse...
O irmão voltou de São João Baptista dizendo que do lado por onde a moça passeara aquela tarde havia cinco sepulturas plantadas.
A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente, sobre os cincos carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado - se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.
Mas a «voz» não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume - isto não dizia a voz, mas era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?
O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs logamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contacto com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era a sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo ( como às vezes a família ainda conjecturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido de todo a noção de piedade; e se era de morto, como julgar os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza húmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e reflectir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e essa flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?
- Mas, e a moça?
- Carlos, eu preveni que o meu caso da flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu."
Carlos Drummond de Andrade, in “Flor, Telefone, Moça”, in Antologia do Conto Moderno, Arcádia,
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