"HÁ
CADA VEZ MAIS PESSOAS que não estão satisfeitas com o mundo em que vivemos.
Raras são, porém, aquelas que fazem alguma coisa para o transformar. Destas,
umas procuram torná-lo melhor por meio do seu esforço, individual ou colectivo;
outras acham que os defeitos do mundo não estão no próprio mundo, mas no olhar de quem nele vive; por isso
procuram transformar-se a si próprias e mudar o olhar com que o vêem. As primeiras são partidárias da acção; as
segundas confiam nos efeitos da contemplação.
Ambas as atitudes são universais. Encontram-se em todas as sociedades
civilizadas. Determinam os princípios fundamentais das grandes religiões. O
Oriente cultivou mais a contemplação; o Ocidente, sobretudo depois do século
XIII, desenvolveu mais a acção. A relação do homem com o mundo deu lugar a
opções diferentes. Os programas de intervenção
ou de não intervenção
diversificaram-se e evoluíram. Há
, portanto, uma história da acção e da contemplação. No Ocidente essa história
confunde-se com a história da Igreja, e, mais precisamente, com a história das
ordens religiosas, ou seja, com a história do seu sucesso ou insucesso na
tarefa de mudar o mundo para melhor,
isto é, para resolver os problemas decorrentes da vida do homem em sociedade.
A
minha tese, se assim lhe posso chamar, é que não basta a acção; é preciso
também a contemplação. Talvez mais ainda: sem ela de nada vale a acção. Creio
que a história da Humanidade mostra isso mesmo. Não a história factológica, superficial, externa, mas a
história da realização das potencialidades do género humano. Ou a
história da Humanidade em busca da sua plenitude. Ou a história da revelação de
Deus presente na realidade concreta do mundo. (…)
Toda a obra humana , mesmo a mais espiritual, perde facilmente a sua pureza e está sujeita à ambiguidade. O projecto da cristandade imaginado (...), apesar das suas admiráveis realizações(...) ficou aquém dos seus objectivos.
(...)Mas os projectos seculares de uma nova sociedade, propostos pelo iluminismo, o liberalismo, o socialismo e o comunismo, também não cumpriram a promessa de trazer o progresso para toda a Humanidade e instaurar a fraternidade e a justiça universais. Eliminaram a própria noção de sagrado, sem darem conta que a sacralidade dos princípios essenciais é o fundamento dos valores de que depende a vida do homem em sociedade. Sem ela não é possível defender eficazmente a dignidade humana e o respeito pela vida. O projecto liberal criou uma sociedade sem religião, sem estrutura e sem convicções. A sociedade agnóstica realiza prodígios tecnológicos, mas não consegue evitar as catástrofes naturais, não reabsorve o lixo que produz, deixa milhões de homens morrerem à fome, recorre à tortura e à violação da consciência com medo de perder a segurança.
Mas é esta a realidade do homem moderno. Nunca o homem teve tanto poder e ao mesmo tempo tanta fragilidade. A globalização trouxe-lhe a consciência da sua incapacidade de resolver todos os problemas quando tudo depende só de si mesmo. As leis da proporção e da quantidade , e o exemplo de iniciativas recentes , mostram-lhe que as cimeiras dos maiores detentores do poder político, financeiro e tecnológico são impotentes para resolver os grandes problemas da Humanidade. Se é assim , o homem devia recuperar a consciência da sua finitude. Os poderosos tentarão , assim se espera, resolver os grandes problemas. Mas o cidadão comum, o indivíduo só pode resolver os problemas em que está envolvido, e tendo em conta a escala daquilo que pode alcançar: o grupo a que pertence, a família que o rodeia, o trabalho de que vive, as associações em que se inscreve, o país da sua cidadania, a ideologia ou a confissão religiosa que professa. É para com eles que deve ser responsável. É a esta escala que a mudança de olhar proposta pela atitude contemplativa lhe pode trazer uma nova esperança.
Com efeito, a contemplação mostra-nos a fantástica variedade, complexidade e coerência dos fenómenos da vida, da constituição da matéria, e da prodigiosa dimensão e regularidade do mundo cósmico. A contemplação intensifica a fruição da arte na música, na pintura, na poesia, no teatro e no cinema. A contemplação torna-nos sensíveis ao riso e à frescura das crianças e de tudo o que começa de novo. A contemplação faz-nos descobrir em toda a parte homens e mulheres inesperadamente inventivos, generosos e honestos. A contemplação inspira-nos o respeito e a admiração por quem é capaz de manter a dignidade face ao sadismo dos torcionários nas prisões e campos de concentração. A contemplação abre os nossos ouvidos ao clamor dos famintos e dos oprimidos em todo o mundo e em toda a História, e faz-nos partilhar com eles a compaixão pela Humanidade ferida. A contemplação introduz-nos no mistério do sofrimento que se torna passagem para a ressurreição através da morte aceite e vencida, e mostra-o em Jesus Cristo, Filho de Deus , sinal da invencibilidade da vida. A contemplação associa como num único sujeito todos os homens e mulheres que desde o princípio do mundo perscrutaram o mistério do Uno e do Todo. Assim, o homem contemplativo perde o medo do futuro. Vive no presente e descobre , a cada passo, nas coisas grandes e pequenas, nas coisas boas e más, na doença e na saúde, na prosperidade e na pobreza , na paz e na guerra, a espantosa realidade das coisas. (...)
O
olhar abrangente e lúcido sobre o mundo diz-nos
que a acção e a contemplação não devem ser exclusivas, e que é inútil
estabelecer regras acerca do grau de
consagração a uma ou outra. Enquanto houver seres humanos que a ela se entregam, de alma e coração, podemos olhar
sem medo para o futuro.”José Mattoso “Contemplação e acção , ontem e hoje “ in “
Levantar o Céu, Os labirintos da Sabedoria”, Abril de 2012, Ed. Círculo
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