Dialogando com o público leitor
Por João Ubaldo Ribeiro
“– Boa tarde,
o senhor me desculpe eu estar interrompendo sua leitura, mas é só um minutinho.
– Ah, pois não.
– É o seguinte, não é o senhor que é o escritor? O menino ali me disse que o
senhor é o escritor.
– Bem, não sei se sou o escritor. Mas sou um escritor, sou, sim.
– Madalena, venha cá, é ele! Madalena! Chame Rosalvo e os meninos, é ele?
– O que foi que houve?
– Madalena é minha esposa, ela estava com vergonha de perguntar se era o senhor
mesmo o escritor. Ela me disse que já tinha ouvido muito falar no senhor. E
Rosalvo é meu cunhado, que conhece sua obra, é gente boa.
– Sim, eu...
– Não vou interromper nada, pode ficar descansado, o senhor pode continuar com
sua leitura.
– Eu...
– Madalena, é ele mesmo! Você tinha razão, é ele. É boa gente, você sabe?
Estamos aqui numa prosa ótima, ele é a simplicidade em pessoa. Olha aí,
Rosalvo, é ele. Pode sentar, rapaz, ele não morde, há-há!
– Muito prazer, dá licença.
– Eu...
– Meu nome é Rosalvo Luiz da Anunciação Pereira, mas eu costumo assinar apenas
Anunciação Pereira.
– Ah, sim, interessante.
– Admiro muito sua obra, O Sargento de Milícias.
– Mas não fui eu quem escreveu esse, foi outro. Bem que podia ter sido eu, mas
não fui eu.
– Ah, então o senhor não é autor do “Sargento”?
– Sou, mas de outro sargento, o Sargento Getúlio.
– Ah, mas é claro, que besteira minha. O Sargento de Milícias é de Lima Duarte,
não é?
– Lima Duarte? O Sargento...
– Sim, Lima Duarte, do Policarpo Quaresma, grande autor, para mim maior do que
Machado de Assis.
– Lima Barreto.
– Sim, claro, claro, Lima Barreto, eu sempre confundo, Lima Duarte é outro.
– E não foi Lima Barreto que escreveu O Sargento de Milícias.
– E quem foi?
– Manoel Ant... Deixa pra lá, tudo bem, Seu Rosalvo.
– Pelo amor de Deus, nada de formalidades, que é isso de “Seu Rosalvo”, os
amigos a gente trata pelo nome.
– Muito obrigado, gentileza sua.
– Que é isso que você está bebendo aí, posso dar uma cheiradinha? Ah, isso é
caju! De hoje que eu não tomo uma batida de caju, vou pedir uma também enquanto
a gente conversa, é coisa pouca, não vou tomar seu tempo, eu sei que você é um
homem ocupado e precisa ler o jornal para estar por dentro do que acontece, o
escritor tem de estar informado.
– Pois é, eu...
– Madalena, peça uma batida de caju no boteco e traga uns acarajés, uns abarás,
uns tira-gostos, umas coisinhas. Quem bebe tem que comer, não é não?
– É, mas eu, pessoalmente, quando estou bebendo...
– Não vou tomar seu tempo, vou direto ao assunto. Eu também sou escritor.
– Ah, que bom, eu...
– Mas até hoje só publiquei um livro, que eu mesmo custeei, um livro de poemas
em prosa e mais alguns escritos que eu reuni. Se eu soubesse que ia lhe
encontrar aqui, eu lhe trazia um exemplar. Chama-se Retalhos de Mim. Não quero
ser imodesto, mas muita gente boa... Não sei se você conhece o professor
Martinho Lobo, conhece o professor Martinho Lobo?
– Não, infelizmente não, eu...
– Não conhece Martinho Lobo, da Academia de Odontólogos Escritores, que foi
muitos anos professor de português no Central?
– Não, infelizmente...
– Bem, eu vou lhe mandar a cópia de um artigo que Martinho Lobo escreveu na
Gazeta de Ipiaú a respeito desse livro meu, você vai ver que comentário
interessante, ele foi muito feliz nas observações dele.
– Sim, mas eu...
– Ah, chegou o acarajé! O acarajé dessa baiana é uma beleza, é um dos melhores
que eu já provei.
– Eu sei, eu conheço essa baiana desde menino.
– Ah, sim, claro. Com pimenta ou sem pimenta?
– Não, obrigado, eu detesto comer quando estou bebendo. Aliás, eu...
– Abará então? Hum, esse abará...
– Eu...
– Vou direto ao assunto, não quero tomar seu tempo. Para onde é que eu posso
mandar uns originais que eu queria que você lesse? São 29 peças curtas, que eu
prefiro não rotular, são pedaços de minha vida, de minha sensibilidade. Alguns
você poderia chamar de contos. Não sei se você conhece aquela frase de Edgard
de Andrade que diz que o conto é tudo aquilo que se chama de conto, conhece
essa frase?
– Eu...
– Pois é, mas eu não quis chamar de contos, preferi não dar nome, chega de
rótulos, de fórmulas, de coisas preestabelecidas, precisamos inovar a
literatura, você não acha? Agora, se depois que você ler você achar que eu devo
dizer que são contos, você é que sabe, você é que vai fazer o prefácio, não sou
eu.
– Eu vou fazer o prefácio?
– Eu já tinha dito a Madalena e a Walter Augusto – Walter Augusto é meu
cunhado, casado aqui com Madalena: eu vou lá conversar com ele e vou ser logo
sincero, vou botar as cartas na mesa. Se eu quero o prefácio, pra que ficar
enrolando, é ou não é? Madalena, me dê a caneta aí, para eu tomar nota do
endereço dele para mandar os originais. Eu moro aqui na Bahia mesmo, isso chega
rápido pelo correio, amanhã mesmo eu mando, deve estar aqui dois ou três dias
depois, quer dizer, dá para esse prefácio estar pronto daqui para o outro
domingo. Mas você não precisa ter o trabalho de me mandar o prefácio e me
devolver os originais, eu mesmo venho aqui pegar tudo no próximo fim de semana
e assim a gente aproveita para bater outro papo, depois que discutir o
prefácio.
– Discutir o prefácio? Eu...
– Agora está na hora de uma cervejinha. Dê cá seu copo aí, que eu vou mandar
lavar, que agora a gente vai numa lourinha estupidamente gelada que eu...
– Olha aqui, meu amigo, eu não vou fazer prefácio nenhum, não quero discutir
nada com o senhor, não suporto mesa atulhada de caranguejo, folha de banana,
farelo de acarajé, resto de vatapá e essa tralha toda aí e, mais do que tudo,
não quero nem vou tomar cerveja nenhuma, largue meu copo aí, por favor.
– Mas minha intenção...
– O senhor vai me dar licença, eu vou embora.
– E o endereço?
– Que endereço, rapaz, eu vou lá lhe dar endereço?
– É isso que acontece, Madalena, o sujeito tem um sucessozinho, vira medalhão e
aí pisa nos outros! Pode ir, pode ir, eu saberei vencer sozinho! Você já viu
que indelicadeza, Madalena, ele age como se tivesse o rei na barriga, não sei o
que ele está pensando que é, ainda se fosse um escritor importante mesmo, agora
um cara desses que ninguém sabe quem é...” João Ubaldo Ribeiro, in “As cem Melhores Crónicas Brasileiras” organizadas por Joaquim Ferreira dos Santos, Ed. Objetiva.
João Ubaldo Ribeiro é um dos grandes das Letras Brasileiras. Jornalista, escritor e argumentista nasceu a 23 de Janeiro de 1941, na Ilha de Itaparica, Baía.
Estreou-se como jornalista em 1957 no Jornal da Bahia. Estudou Direito na
Universidade Federal da Baía e, enquanto estudava, participou na edição de
jornais e revistas e numa colectânea de contos editada pela universidade, em
1961. Em 1963, escreveu o seu primeiro romance. Viajou e viveu em vários
lugares, entre eles em Portugal, em 1981, em consequência de uma bolsa da
Fundação Calouste Gulbenkian. Participou em vários eventos culturais no
estrangeiro, como o Festival Internacional de Escritores.É autor de romances como “Sargento Getúlio”, “Viva o Povo Brasileiro" , “A
Casa dos Budas Ditosos”, “Diário do Farol “(2002), de crónicas “Um brasileiro
em Berlim “(1995) e “O Conselheiro Come” (2000), e na literatura
infanto-juvenil “Vida e paixão de Pandomar, o cruel “(1983).Ubaldo Ribeiro
estendeu a sua produção literária aos contos infantis, ensaio, traduções e
adaptações para cinema e televisão, a que se juntam as crónicas na imprensa
brasileira. Foi galardoado com vários prémios e entre eles o Prémio Camões, o
mais importante galardão atribuído a autores de língua portuguesa.
Resenha: " A crónica é
um género por vezes mais próximo do leitor devido ao seu principal meio de
divulgação, o jornal. Em muitas ocasiões é de mais fácil acesso a leitura do
periódico diário do que do livro. No entanto, é um texto que destoa do resto do
jornal, pois não há necessariamente o compromisso de informar o que está
acontecendo. As crónicas colocam o leitor mais perto do texto literário.
A antologia de crónicas é organizada pelo escritor e jornalista Joaquim
Ferreira dos Santos. Este volume forma agora uma trilogia com os anteriores
"Os Cem Melhores Poemas" e "Os Cem Melhores Contos Brasileiros
do Século". Em apenas um livro pode-se ler desde Rubem Braga, Luis Fernando
Verissimo, Nelson Rodrigues e Fernando Sabino aos mais "novatos" como
o pernambucano Xico Sá.
Cronista de primeira e autor da colectânea "Em Busca do Borogodó Perdido", entre outros livros, Joaquim conta que charme, o "it" deste sofisticado prato, está na escolha democrática dos ingredientes: "O borogodó está no que o cronista escolhe como tema". A receita de crónica explica ele, "é uma obra particular, onde cabem quase todos os ingredientes - mas, por favor, sempre com muito molho. As de Clarice Lispector vêm regadas de azeites da alma. As de Lima Barreto trazem no tempero alguma erva colhida num quintal suburbano."
Cronista de primeira e autor da colectânea "Em Busca do Borogodó Perdido", entre outros livros, Joaquim conta que charme, o "it" deste sofisticado prato, está na escolha democrática dos ingredientes: "O borogodó está no que o cronista escolhe como tema". A receita de crónica explica ele, "é uma obra particular, onde cabem quase todos os ingredientes - mas, por favor, sempre com muito molho. As de Clarice Lispector vêm regadas de azeites da alma. As de Lima Barreto trazem no tempero alguma erva colhida num quintal suburbano."
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