sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O direito de sonhar


"Milénio vai, milénio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os porta vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral, enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério.
Verdade seja dita, não há quem resista: numa data assim, por arbitrária que seja, qualquer um sente a tentação de perguntar-se como será o tempo que virá. E vá-se lá saber como será. Temos uma única certeza: no século 21, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e , pior ainda, do milénio passado.
Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível:
o ar estará livre de todo o veneno que não vier dos medos humanos e das paixões humanas; nas ruas os automóveis serão esmagados pelos cães; as pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador; nem compradas pelo supermercado, nem olhadas pelo televisor; o televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa;
as pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar; será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, em vez de viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;
em nenhum país serão presos os jovens que se negarem a prestar serviço militar, mas irão para a cadeia os que desejarem prestá-lo; os economistas não chamarão nível de vida de nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas;
os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostam de serem fervidas vivas; os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos; os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas;
ninguém acreditará que a solenidade é uma virtude e ninguém levará a sério aquele que não for capaz de deixar de ser sério; a morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento ou fortuna o canalha será transformado em virtuoso cavaleiro; ninguém será considerado herói ou pascácio por fazer o que acha justo em lugar de fazer o que mais lhe convém;
o mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se em falência; a comida não será uma mercadoria e nem a informação um negócio, por que a comida e a informação são direitos humanos; ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;
os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não haverá meninos de rua; os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro, porque não haverá meninos ricos; a educação não será privilégio de quem possa pagá-la; a polícia não será o terror de quem não possa pagá-la; a justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viverem separadas, tornarão a unir-se, bem juntinhas, ombro contra ombro;
uma mulher, negra, será presidente do Brasil, e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América; e uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru; na Argentina, as loucas da Praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer dos tempos da amnésia obrigatória;
a Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo; a Igreja também ditará outro mandamento, do qual Deus se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte"; serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma; os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperam de tanto esperar e os que se perdem de tanto procurar;
seremos compatriotas e contemporâneos de todos que tenham aspiração de justiça e aspiração de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo;
a perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses; mas, neste mundo confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro."  Eduardo Galeano, in " De Pernas Pro Ar, A escola do Mundo ao avesso ",1999,Editorial Caminho
“Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. Foi jornalista e esteve no exílio na década de 70 e começo da década de 80. É autor de uma vasta obra traduzida em mais de vinte línguas. Recebeu o Prémio Casa de las Américas em 1975 e 1978 e o prémio Aloa dos editores dinamarqueses, em 1993. Recebeu ainda os prémios American Book Award (Washington University, USA) em 1989 e Prémio à Liberdade da Cultura, outorgado pela Fundação Lannan, dos Estados Unidos. Escreveu, entre muitos outros livros, a trilogia Memória do FogoAs Veias Abertas da América LatinaO Livro dos AbraçosPalavras AndantesDias e Noites de Amor e de GuerraDe Pernas Pro ArFutebol ao Sol e à Sombra e Mulheres.
Sinopse: De Pernas para o Ar fala de um mundo onde o racismo, a impunidade e a prepotência são valores a perpetuar. Neste mundo o ser-se solidário, justo e lúcido é um pecado capital que é necessário aniquilar. Os vencedores, o exemplo a seguir, não têm deveres e os vencidos, o exemplo a rejeitar, não têm direitos. Este é o mundo em que vivemos, tanto os do Norte como os do Sul, os ricos e os pobres, os opressores e os oprimidos.Mas o autor, num dizer veloz, irónico e acutilante, acredita que é possível e urgente construir um mundo diferente, escrever uma nova história."

1 comentário:

  1. Eduardo Galeano repensa um mundo diferente neste milénio em que vivemos. Infelizmente, o mundo continua injusto, desigual e impiedoso. Apenas se mantém o direito ao sonho.

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