Eliseu Visconti, Moça no trigal, 1913 |
Toda arte é actual
Por
Ferreira Gullar
"Peço que o
leitor me desculpe se ando escrevendo demais sobre artes plásticas. É que,
ligado a elas como sou, de vez em quando me pego reflectindo sobre o assunto. Foi
o que ocorreu há pouco, quando visitei a exposição de Eliseu Visconti, no Museu
Nacional de Belas Artes.
Estava apenas
esperando uma oportunidade para ir vê-la, desde que recebi o convite para o
vernissage: ele trazia a reprodução de um retrato pintado pelo artista, que
sempre me fascina quando o vejo. Assim que, logo que pude, fui ao MNBA e não me
arrependi. Pelo contrário, vi confirmada minha convicção de que Visconti,
embora nascido na Itália, é um dos maiores pintores brasileiros.
A exposição
reuniu obras do acervo do museu, da Pinacoteca do Estado de São Paulo e de colecções
particulares. Embora esteja longe de ser completa, nos deu uma visão bastante
ampla da obra do artista em suas diferentes fases. Nas pinturas mais antigas,
do final do século XIX, ele se mostra um pintor realista, que é a fase menos
interessante de sua obra.
Não por culpa
sua, pois já ali se mostra um excelente pintor, pela composição, a qualidade do
desenho e domínio da linguagem pictórica propriamente dita. O defeito está no carácter realista das obras. Pode ser apenas, no que me diz respeito, uma
questão de gosto, mas o que ocorre é que a preocupação com a cópia fiel das
figuras torna a pintura menos fascinante, ao trocar a imaginação criativa e
poética pela fidelidade ao real.
A verdade é
que há muitos tipos de realismo pictórico e que, também aí, pesam certas
qualidades do artista. Velásquez, por exemplo, era um barroco realista e, em
algumas obras, não alcançou a transcendência poética. Não é o caso, obviamente,
da obra-prima "As Meninas", porque, nesse quadro, apesar do realismo
das figuras, a relação espaço-tempo que ele estabeleceu ali supera a imitação
realista: é que ele nos mostra, a um só tempo, as figuras que pintara, como se
fossem os modelos do que ainda estaria pintando na tela, cujo avesso nos é
mostrado ali.
Mas o
realismo não é chato apenas nas artes plásticas; ele o é também na literatura.
Pelo menos para mim, pois acho que não se faz arte para imitar a vida, e sim
para inventá-la. A realidade é pouca.
Por isso mesmo,
a pintura de Eliseu Visconti ganha qualidade à medida em que abandona o
procedimento académico --iminentemente imitativo-- para abrir-se ao
impressionismo, que em seus quadros adquire uma poética própria. Inicialmente,
há uma fase de passagem do estilo realista, que busca a imitação da realidade,
a uma linguagem pré-impressionista, em que, aos poucos, um uso novo da cor e da
luz se manifesta.
Como se sabe,
o impressionismo nasce quando o pintor deixa de pintar dentro de casa --ou no
ateliê-- para pintar "à pleine aire", ou seja, à luz do dia. A
relação de sombra e luz é substituída pela cor irradiante, nascida da vibração
da luz solar sobre a superfície das coisas. Isso durante etapa desse movimento
pictórico, porque, no final, algumas das obras de Monet (como
"Nenúfares") já estão impregnadas da subjectividade simbolista.
Pois bem, a
esse simbolismo se vinculará a pintura de Visconti na etapa áurea de sua obra,
que se estenderá até 1944, ano de sua morte. Nesta última fase, o pontilhismo
impressionista se muda em pinceladas mais amplas. Visconti é quem faz a
transição, na pintura brasileira, do academicismo do final do século 19 ao
modernismo, que nasce, historicamente, com Anita Malfatti na exposição que fez
em 1919, em São Paulo.
Não quero
terminar este registo sem mencionar uma observação que fiz, alguns anos atrás,
quando reuniram obras de pintores brasileiros do modernismo e da etapa
imediatamente anterior. Ali estava uma obra de Eliseu Visconti e o conhecido
autorretrato de Tarsila do Amaral. Embora seja eu fã de nossa pintora
modernista, não pude deixar de reconhecer a diferença de qualidade artística
entre as duas obras. O quadro de Visconti ali exposto, comparado ao de Tarsila,
era indiscutivelmente melhor.
Não se trata
aqui de diminuir a importância de Tarsila que, naquele momento, abria um
caminho novo para nossa pintura. Mas não se deve confundir o papel histórico
com valor estético. Como disse Picasso, toda arte é actual."Ferreira
Gullar, em Crónica publicada na Folha de S. Paulo, em 29/07/2012
Ferreira
Gullar é poeta, dramaturgo, cronista, crítico de arte, ensaísta.Tem uma obra
extensa e variada já galardoada com vários Prémios tais como Molière, Saci,
Jabuti,Camões.Em 2002, foi também proposto ao Prémio Nobel da Literatura e integrava,
neste ano de 2013 ,a Lista dos nomeados ao Prémio Correntes d’Escritas. "Uma das maiores características da obra de Ferreira Gullar é a preocupação com a realidade social aliada a uma constante busca pela renovação estética da linguagem". Durante a Ditadura foi preso. Exilado em Moscovo, Santiago, Lima e Buenos Aires foi obrigado a viver por muito tempo na clandestinidade. Voltou ao Brasil no
final da década de 70.Escreve aos Domingos na versão impressa de "Ilustrada", Folha de S.Paulo, Brasil.
Sem comentários:
Enviar um comentário