"Mas
hoje, ainda longe daquele grito, sento-me na fímbria do mar. Medito no meu
regresso. Possuo para sempre tudo o que perdi. E uma abelha pousa no azul do
lírio, e no cardo que sobreviveu à geada. Penso em ti. Bebo, fumo, mantenho-me
atento, absorto – aqui sentado, junto à janela fechada. Ouço-te ciciar amo-te
pela primeira vez, e na ténue luminosidade que se recolhe ao horizonte acaba o
corpo. Recolho o mel, guardo a alegria, e digo baixinho: Apaga as estrelas, vem
dormir comigo no esplendor da noite do mundo que nos foge."
Al Berto, in
"Lunário", Ed. Assírio & Alvim
Alma minha gentil, que te partiste
Alma minha
gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no
assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires
que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
roga a Deus,
que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
Luís de
Camões, in “ Lírica de Camões”, INCM
– Imprensa Nacional, Casa da Moeda
Salada
Depois do
sangue misturado,
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint'anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais subtis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não ...
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado ...
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos ...
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint'anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais subtis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não ...
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado ...
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos ...
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!
David Mourão
Ferreira, in «Música de Cama» , Lisboa: Presença 1996
O rio apenas de leve
O rio apenas
de leve
se mexia e virava:
menino dormindo,
suspirava de calor.
se mexia e virava:
menino dormindo,
suspirava de calor.
- Que sabes
(disse Eva) da corrente
do teu sangue?
escuta em mim:
sentirás este fundo rumor do mar,
ondas que tocam na terra,
regressam e voltam
para teu corpo.
do teu sangue?
escuta em mim:
sentirás este fundo rumor do mar,
ondas que tocam na terra,
regressam e voltam
para teu corpo.
António
Osório, in «366 poemas que falam de amor»,Antologia organizada por Vasco Graça
Moura,Lisboa: Quetzal, 2003
Segredo
Esta noite
morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
O seu ritmo assombrado nas terras do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento
a música da chuva nas janelas
sob o frio de Fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
O seu ritmo assombrado nas terras do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento
a música da chuva nas janelas
sob o frio de Fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
Fernando Pinto do Amaral,
«Às Cegas»- Poesia Reunida 1990 - 2000, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2000
Vou-te amar no absoluto
"(...) E devagar, ao centro de convergência de toda a bruta
inquietação, rígida a procura do teu abismo interior. Refreio o ímpeto, quero
entrar com a consciência difícil do que procuro, o impossível do teu ser.
Rebento no limite de reter-me no sofrimento. Mas quero entender, entender. O
modo único de nada me escapar ao prazer de ti. Do mistério irritante do que
acontece no amar-te agora por sobre quanto te amei. Entender. Amar-te na
conglomeração de todas as vezes e formas e impossível em que te amei. Mónica,
minha querida. Minha doença insuportável. Porque o teu corpo não é só o teu
corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá, seres
tu ainda no íntimo de te tocar e estares aí como no teu riso, na tua presença.
Seres tu ainda quase reconhecível como se não soubesse que eras tu e entrar em
ti e reconhecer-te como se aí fosses reconhecível. Preciso de entender, não te
vou agora amar à toa. Seres por dentro única como nas impressões digitais.
Saber que és tu, mesmo sendo cego e surdo. Entrar em ti e tu estares toda lá
dentro como estás por fora. Tocar o intransmissível de ti, reconhecer que és
tu, inconfundível, no igual do teu íntimo ao de toda a mulher. Porque tu és tão
diferente. No riso no ar na voz, na totalidade do teu corpo. E sentir que isso
tudo é lá também esse tudo. Diferente na sua igualdade. Entrar em ti e ir
reconhecendo pouco a pouco no meu entrar a mulher que amo até à estupidez.
Reconhecer encontrar dentro o que amei fora. Nunca te amei toda, vou-te amar o
que sempre faltou. Nunca te amei tudo, aproveitei sempre uma fatia de te amar.
O teu olhar, o teu riso, a exemplaridade do teu corpo, o seu espectáculo, o
encantamento às vezes, o teu andar, o prazer rápido, o prazer trabalhado para
te submeter a tê-lo. Coisas assim avulsas. Vou-te amar agora, vou-te amar no
absoluto. Amar-te no prazer e rebentar." Vergílio Ferreira, in “ Em Nome da Terra”,
Quetzal, 10ª edição, 2009
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