Manoel de Andrade, poeta brasileiro, continua a escrever as memórias do tempo de exílio, no final da década de sessenta e princípio da década de setenta. Nessa obra em construção, " O Bardo Errante", vai descrevendo a sua comprometida diáspora libertária num continente , então, imerso na penumbra da ditadura.Hoje,transcrevemos um excerto do capítulo relativo à sua passagem por El Salvador.
"Naqueles primeiros dias do ano de 1971, quando cheguei a San Salvador, o problema sócio-político que mais se impunha a um observador atento era o da superpopulação associado a um minúsculo território. El Salvador é o menor país centro-americano e o mais densamente povoado da região. Consequentemente, em torno do problema da terra, suscitaram-se grandes crises sociais, as maiores revoltas populares e grandes matanças, já que normalmente a posse da terra, tanto em El Salvador como em toda a América Latina, dá aos maiores proprietários, além do poder económico, o controle político do país. Estes fatos levaram-me a fazer algumas leituras que me deixaram perplexo. A história dessas revoltas está demarcada por três grandes movimentos de camponeses-índios. O primeiro, em 1811, quando se sublevaram contra as arbitrariedades das autoridades coloniais. O segundo, em 1833, depois da independência, quando 3.000 camponeses de origem indígena, oprimidos e perseguidos pelo despotismo “criollo” se levantam comandados pelo cacique Anastácio Aquino. E o terceiro, e até então o último movimento de revolta no campo --- e ao qual já me referi quando relatei minha primeira passagem pela Bolívia ---, foi o que determinou a terrível matança de 1932, onde se conta que foram assassinados 30.000 camponeses O facto, pela sua excepcionalidade, teve grandes repercussões internacionais. Na verdade essa rebelião foi um dos acontecimentos mais heróicos na história dos camponeses centro-americanos, comandado por Farabundo Martí, que já havia lutado ao lado de Sandino, na Nicarágua.
Os protagonistas foram os camponeses–indígenas numa luta que assumiu toda a dramaticidade de uma guerra civil.
En 1932 --- bajo el Gobierno del general Maximiliano Hernández Martínez --- se produjo la terrible rebelión de los campesinos indios, sobre todo en la zona del volcán Izalco. La rebelión terminó adquiriendo todo el carácter, bronco y dramático, de una pugna social, resumida, finalmente, entre el machete de los campesinos y el fuzil y las ametralladoras del Ejército. Fue una guerra social sin cuartel. Dicen que cuando llegaron los navios norteamericanos y canadienses, el general José Tomás Calderón pudo decir a los marines:
“Ya no necesitamos ninguna ayuda. Hemos liquidado a cuatro mil bolcheviques.”
No es extraño que el cronista del “Times” hiciera, también, esta frase: “Uma cosa es cierta. Aquellos hombres no habían oído nunca hablar de Karl Marx.”
Los odios acumulados produjeron venganzas y asesinatos espantosos. Mujeres y hombres de las famílias terratenientes fueron pasados a cuchillo, y las primeras, sometidas a peores aventuras. No muchos dias antes del levantamiento todo el comité central del partido comunista había sido asesinado por orden gobernamental. Alguno de sus componentes pensó, sin tener en cuenta la realidade objetiva de El Salvador, que una sublevación campesina echaría todo a rodar. No ocurrió nada de eso, sino al revés: estratificó los poderes, introdujo el miedo en el cuerpo. La matanza y la represión siguieron, con las palabras de Calderón, a aquellas noches y dias de San Bartolomé. Sin embargo, también puso en claro la situación del campesinato. Por ello, se intentaron realizar algunas reformas sociales, que, dada la época y consideradas las estructuras, no podia ser outra cosa que el resultado de la sangre campesina vertida. (...) " 1
O historiador salvadorenho Jorge Araias Gómez, conta que ante a exploração do trabalho agrícola as massas camponesas “haviam chegado a um tal estado de desespero, que mesmo os líderes mais respeitados não conseguiam encaminhar corretamente as explosões espontaneistas que afloravam dia a dia”.2 As greves que surgiam nas grandes fazendas eram reprimidas de forma sangrenta, só restando aos camponeses a guerra aberta contra a oligarquia agrária e o poder que a protegia. Assim ele descreve o desenrolar da revolta:
“À meia-noite de 22 de Janeiro eclode a insurreição. Milhares de camponeses, armados apenas com machetes ferramentas de trabalho e poucas armas de fogo, ocupam no decorrer do dia diversos povoados nos departamentos de Sansonate e Ahuchapán. Nas imediações de Nueva San Salvador, luta-se encarniçadamente. Desde os primeiros momentos as forças revolucionárias comprovam na prática o que já era do seu conhecimento: as tropas regulares, avisadas antecipadamente, mobilizadas, reforçadas e postas em estado de alerta, possuíam uma esmagadora superioridade de fogo e grande disciplina. Apesar do arrojo valentia e audácia dos insurrectos careciam de orientação e controle militares, sendo rechaçados nos assaltos aos principais pontos estratégicos e são, posteriormente, destroçados.
Três dias depois, a insurreição havia sido dominada. Os revolucionários mortos em combate não foram muitos. Foi o massacre desencadeado em seguida, nas ações armadas das chamadas “forças expedicionárias” do governo, que centuplicou as vítimas da repressão, transformando o episódio em um dos maiores genocídios conhecidos na história da América Latina.
Nos locais da insurreição, todo rapaz maior de 18 anos que se considerasse suspeito de participação na rebelião foi fuzilado sem qualquer formalidade. Por sua parte, a burguesia, com apoio das camadas médias urbanas, organizou suas forças para-militares, às quais denominou “Guarda Cívica”, para reforçar o exército. A “Guarda Cívica”, integrada por refinados jovens da alta sociedade, chegou mesmo a superar, em alguns casos, a ferocidade das tropas regulares. Em seus poucos meses de existência, assassinou inúmeros camponeses, operários e estudantes. Contam-se em centenas os casos de assassinatos movidos por vinganças pessoais, de estupros de mulheres do povo, de ultrajes a crianças e velhos. Suas sinistras actividades eram relatadas, entre um e outro gole de whisky nos clubes exclusivos, como heróicas e grandiosas façanhas.
A burguesia, atemorizada pela insurreição, forneceu ao governo elevadíssimas quantias para pagar as despesas necessárias para esmagar os revolucionários.
Segundo depoimentos de pessoas não comunistas, as supostas vítimas feitas pela insurreição na zona Ocidental do país não foram muitas. Entre estas se contavam inimigos activos e odiados do campesinato. Sua morte constituiu, propriamente falando, um justiçamento revolucionário. Outros, pelo mesmo, durante os combates. No entanto, os boletins oficiais -- única versão que podia ser publicada na imprensa -- exageraram de forma caluniosa os inexistentes desmandos e crimes dos insurrectos para impressionar a oligarquia, aterrorizar outros sectores da população e justificar, finalmente, o inútil massacre de milhares de operários, camponeses e estudantes. Durante a chacina, estendeu-se uma cortina de silêncio na região, impedindo-se a presença de jornalistas, de forma a ocultar o assassinato em massa que as forças repressivas estavam realizando.
Testemunhas que viveram o terror implantado pelas forças expedicionárias relatam todas as atrocidades e crimes cometidos por estas. As forças repressivas não apenas se dedicavam a ceifar vidas indiscriminadamente, como também violaram e estupraram mulheres do povo e saquearam todos os povoados onde venciam a resistência armada.” 3
No fim da tarde de 30 de janeiro de 1932 instala-se o tribunal militar que condena Farabundo Marti e os estudantes Alfonso Luna e Mario Zapata à morte por fuzilamento.
“Agustín Farabundo Martí pede, em nome de seus companheiros, que seus olhos não sejam vendados, que os fuzilem de frente, disparando contra o peito.
No último instante, quase junto à voz de comando do oficial que dirige o pelotão de fuzilamento, Martí inicia com firmeza um “Viva o Soci...” que assim fica, interrompido, porque a descarga dos fuzileiros o apaga. Caem abatidos os três comunistas. São sete e 15 da manhã. Ao contrário dos demais, a morte chega lentamente para o camarada Zapata.” 4
Em Maio de 2009 o site “Palavras, todas palavras” publicou meu pequeno ensaio sobre o poeta guatemalteco Otto René Castillo em que falo d’“A Geração Comprometida”, numa curta referência a alguns poetas que conheci em Janeiro de 1971 quando de minha passagem por El Salvador. Esse original fenómeno literário marcou duas importantes etapas na fecunda vida intelectual do país, sendo que a primeira, --surgida no Cenáculo de Iniciación Literaria, depois chamado Grupo Octubre -- ocupou a década de 50 e foi integrada pelos poetas Ítalo López Vallecillos, que lhe deu o nome, Irma Lanzas, Álvaro Menéndez Leal, Waldo Chávez Velasco, Jorge Cornejo entre outros poetas e alguns pintores. A segunda, que marcou realmente a denominação do “comprometimento” floresceu na década de 60, surgindo ambas do Círculo Literário Universitário, fundado em 1956, na Faculdade de Direito da Universidade de El Salvador. Os principais integrantes do segundo grupo foram os amigos com quem privei naqueles dias e debati no recital na Faculdade de Direito e em algumas reuniões particulares. Eram eles Roberto Armijo, Manlio Argueta, Tirso Canales, Alfonso Quijada Urias e José Roberto Cea, este último o fraterno amigo que mais me apoiou naqueles dias. Tirso Canales ao presentear-me com a primeira edição de 1967 da colectânea poética De aquí en adelante, integrada por eles, escreveu; “Al poeta Manoel de Andrade el afecto y amistad de nuestra poesía. - S.S. enero 1971 – Tirso Canales.” Cinco poetas e cada um personalizando sua visão do mundo. O livro De aquí en adelante 5 é uma inspirada aldeia onde brotam as fontes da justiça e adeja a esperança. Cinco recantos onde se abrem as pétalas do encanto. Polifonia, linfa e cristais, onde correm as novas águas na literatura salvadorenha.
Referindo ao livro escreve o crítico Giuseppe Bellini:
“En 1967 cinco poetas --- Manlio Argueta (1936), Roberto Armijo (1937), Tirso Canales(1933), José Roberto Cea (1939), Alfonso Quijada Urías (1940) --- publican una antología de su propia obra titulándola programáticamente De aquí en adelante. Se trata de un manifesto contra el academismo y el conformismo, afirmación de rebeldía contra el ambiente oficial, repudio por la “torre de marfil”, por el poeta burocratizado, en nombre de una responsabilidad fundamental frente a la historia y sin rechazar ninguno de los resultados positivos a los que ha llegado la poesía anterior”. 6
A Geração Comprometida foi integrada por muitos poetas – e entre eles os poetas guerrilheiros Otto René Castillo e Roque Dalton -- que reagiram contra uma literatura voltada para as classes dominantes. Os seus integrantes foram activistas sociais e políticos e muitos deles militantes do Partido Comunista, marcando suas obras pela denúncia das injustiças que pontuaram as lutas sociais em El Salvador naquelas décadas. Sobre Otto René Castillo relatarei seu heroísmo e seu martírio quando os passos de minha memória cruzarem a Guatemala. Quanto a Roque Dalton, não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, porque creio que naquela época já estava na clandestinidade. Cinco anos depois de minha passagem por El Salvador ele seria assassinado por membros dissidentes da organização revolucionária na qual militava. Roque Dalton foi e ainda é celebrado com grande referência como intelectual politicamente comprometido. Deixou uma imagem grandiosa de poeta e revolucionário. Alguns dos integrantes da Geração Comprometida, como Tirso Canales e Manlio Argueta sofreram um longo exílio político. Os cinco integrantes do livro De aquí en adelante, com os quais me relacionei mais fraternalmente tornaram-se grandes poetas e prosadores. As suas obras foram publicadas em vários idiomas e honrados com grandes prémios literários como Alfonso Quijada Urías, que recebeu o Prémio Cervantes de Poesia, em 2003."
Manoel de Andrade (Curitiba-Brasil), in " O Bardo Errante", obra memorialista em construção
Manoel de Andrade (Curitiba-Brasil), in " O Bardo Errante", obra memorialista em construção
2 GÓMEZ, Jorge Arias. FARABUNDO MARTÍ, Herói do povo de El Salvador. Tradução de Dilair Aguiar. Editora Anita Garibaldi. São Paulo, 1977, p. 18.
3 GÓMEZ, Jorge Arias. Op. cit. p., 24-25.
4 Idem. p., 28.
5 ARGUETA - ARMIJO – CANALES – CEA – QUIJADA URIAS. De aquí en adelante. San Salvador: Los Cinco, Ediciones, 1967
6 BELLINI, Giuseppe. Op. cit., p. 395.
6 BELLINI, Giuseppe. Op. cit., p. 395.
"Em 1967 cinco poetas --- Manlio Argueta (1936), Roberto Armijo (1937), Tirso Canales (1933), José Roberto Cea (1939), Alfonso Quijada Urias (1940) --- publicam uma coleção de sua própria obra com o título programado De aquí en adelante. Trata-se de um manifesto contra o academismo e o conformismo, afirmação de rebeldia contra o ambiente oficial, repúdio da "torre de marfim" pelo poeta burocratizado, em nome de uma responsabilidade fundamental ante a história e sem rejeitar qualquer dos resultados positivos que chegou a poesia anterior”.
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