Retomando as
memórias do tempo de exílio que Manoel
de Andrade está a registar no seu livro em laboração, “ O Bardo Errante”, vamos
transcrever em três módulos ( hoje, Segunda-Feira e Quarta-Feira), um excelente e enriquecedor capítulo sobre uma
comunidade barbaramente espoliada e muito pouco conhecida: Os Chicanos.
A Manoel de
Andrade ficamos profundamente gratos pelo privilégio de merecer a leitura e a divulgação desta excelente obra que retrata, no final da década de sessenta e princípio da década de setenta, a sua comprometida diáspora
libertária num continente , então, imerso na penumbra
da ditadura, a América Latina.
Os Chicanos - 1ª Parte
Por Manoel de Andrade
Antes de deixar, nos passos dessas memórias, o território dos Estados Unidos, creio importante complementar minha experiência entre os chicanos, com um artigo que publiquei sobre o assunto, cerca de um ano depois, em Santiago. Após ter voltado para o Chile escrevi, entre fevereiro e abril de 1972, vários artigos --- alguns sobre as lutas de independência contra o colonialismo português em África --- para revistas e jornais da esquerda chilena. Foi nesse contexto que a direção do jornal “Puro Chile”, órgão do Partido Comunista Chileno, sabendo de minha experiência entre os chicanos me pediu um texto sobre o tema. Naquela época, as revelações sobre documentos secretos da política externa norte-americana, feitas em dezembro de 1971, pelo jornalista Jack Anderson, no New York Times, levaram ao rumoroso caso de espionagem política, envolvendo o presidente Richard Nixon, culminando com sua renúncia. E como esses fatos, conhecidos como o Escândalo de Watergate, vieram à tona em 1972, e eram tidos, até então, como um segredo guardado a sete chaves pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos, resolvi titular meu artigo como: “Os Chicanos: o segredo mais bem guardado dos Estados Unidos”, já que os segredos do “Caso Watergate” estavam na consciência da opinião pública mundial. O título tinha seu propósito porque, com exceção do México, nada realmente se sabia, além das fronteiras norte-americanas, sobre os graves problemas pelos quais, historicamente, passaram e passavam os chicanos. A única minoria, dentro dos Estados Unidos, cujos problemas de segregação tinham conquistado a consciência mundial era a minoria negra, sobretudo pelo trabalho missionário de Martin Luther King. Quando voltei para a América do Sul, constatei, perplexo, mesmo entre intelectuais e jornalistas, que nunca tinham ouvido falar dos chicanos. O que eu propunha revelar era um fenómeno social marcado pela segregação e a crueldade moral das elites norte-americanas do sudoeste, habilmente silenciado pela imprensa e pelo governo norte-americano: a situação humilhante em que viviam milhares de descendentes de mexicanos no próprio território dos seus antepassados e que lhes fora usurpado. A matéria foi ilustrada com várias fotos da revista chicana “La Raza”, que trazia comigo desde a Califórnia. A primeira parte do texto foi publicada em 09 de abril de 1972, nas páginas 8 e 9 do suplemento dominical do jornal, chamado REVISTA, e a seguir transcrito com a tradução do autor para o português. O chefe de redação do jornal, contudo, sem me consultar, panfletizou ideologicamente o título do artigo:
Manoel de Andrade, poeta e escritor brasileiro, escreveu esta reportagem para PURO CHILE, depois de haver conhecido, de primeira mão, a realidade dos chicanos, um exemplo do destino que poderia esperar as nações latino-americanas se os Estados Unidos pudessem submetê-las ao seu total arbítrio. De Andrade visitou o sul norte-americano, especialmente convidado por organizações chicanas, e sua reportagem deve constituir um dos primeiros testemunhos sobre a verdadeira situação de oito milhões de mexicanos e filhos de mexicanos que vivem no grande império do dólar. PURO CHILE publicará esta reportagem em duas partes. A primeira delas aparece hoje. A segunda e última, no domingo próximo.
Desterrados por mais de um século em sua própria terra e espalhados pelo centro e sudoeste dos Estados Unidos, oito milhões de pessoas de língua hispânica vivem atualmente segregadas social, económica e politicamente, em toda uma imensa e fértil região de cinquenta milhões de hectares, usurpados através de uma guerra de conquista e agressão contra a nação mexicana.
A sua história passada é a história de sua própria tragédia. A perda do seu território; dos direitos mais elementares do ser humano; o aniquilamento sistemático de sua cultura ancestral; a proibição de falar a própria língua e mais o sangue de milhares e milhares de caídos, foi a herança que o tempo preservou para deixar na memória de todo um povo as cicatrizes de 125 anos de genocidio.
A sua história recente é a história de uma consigna acariciada de geração em geração. Escreve-se com o conteúdo de muitas palavras: greve, marchas, prisões, mártires. Escreve-se com poemas, contos, teatro, panfletos políticos, revistas e quase uma centena de jornais. Escreve-se com o renascimento de sua cultura, com as raízes de sua raça, e, sobretudo, com a consciência de luta de um povo explorado de uma maneira cruel e desumana. Seu grito se soma ao clamor incontido de todos “os condenados da terra”. É um grito de combate e de libertação; contudo é também um grito em busca de solidariedade, lançado desesperadamente por milhões de homens mulheres oprimidos, discriminados, massacrados no seio mesmo da nação mais poderosa e agressiva do mundo.
Neste artigo conta-se a história do segredo mais bem guardado dos Estados Unidos: Os Chicanos.
Neste artigo conta-se a história do segredo mais bem guardado dos Estados Unidos: Os Chicanos.
3.
A guerra
A guerra que o México declarou aos
EE..UU. em 1846, teve como principal motivo a anexação norte-americana do
grande território do Texas, na época parte da nação mexicana. O México perdeu a
guerra, o território do Texas e teve que suportar as duras imposições do
vencedor, pelas quais a metade do seu território ---
equivalente a uma extensão superior aos territórios da Bolívia e Chile
juntos --- foi arrebatada pelos ianques e passou a ser
parte dos Estados Unidos da América.
A invasão norte-americana ao
território mexicano chegou até a cidade do México. Alguns livros sobre o
assunto relembram essa época de terror e crueldade. Os soldados ianques
infundiram verdadeiro pânico às povoação da capital, assassinando, roubando, e
violando mães e filhas frente aos homens da família amarrados ou sujeitados por
outros soldados. Dizem os cronistas e historiadores que tal foi a barbárie de
seus vizinhos do norte, que 250 soldados norte-americanos, decepcionados, se
uniram ao exército mexicano. Posteriormente, a refinada brutalidade com que
foram executados, num bairro metropolitano, 80 desses desertores, tem sido
recordado há longo tempo pelos mexicanos como mais uma prova da crueldade
ianque.
4.
O tratado Guadalupe-Hidalgo
Terminada a guerra assinou-se , em 2
de fevereiro de 1848, o Tratado Guadalupe-Hidalgo, pelo qual os EE.UU. se
apropriaram das províncias mexicanas do Texas, Novo México, Califórnia,
Colorado e, posteriormente, do Arizona, vendida em 1853 ao governo
norte-americano, quando ainda governava o México o ditador Santa Anna, que se apropriou de uma parte do pagamento. Segundo as condições do Tratado, todos os
cidadãos que residiam dentro dos territórios perdidos convertiam-se em cidadãos
dos Estados Unidos se não abandonassem a região ao cabo de um ano de sua
assinatura. Somente alguns milhares de mexicanos abandonaram suas terras para
marchar ao sul. A maioria da população, por negligência, pela impossibilidade
de fazer a viagem, ou para não perder o único que tinham, a sua terra, converteram-se , automaticamente, em cidadãos norte-americanos. Por outro lado, a
bilateralidade do Tratado estipulava a garantia da propriedade e os direitos
políticos dos mexicanos que viviam na região incorporada, além da preservação
de sua língua, religião e cultura. Obviamente que nenhuma dessas normas foram
respeitadas pelos norte-americanos que, pelo contrário, passaram a tratar os
mexicanos com desprezo e até com repugnância.
Desde 1848, os mexicanos que viviam na sua antiga pátria começaram a ter constantes desentendimentos com os
norte-americanos que ali chegavam para viver. No Texas este fenómeno foi sempre
mais agudo que nos demais estados. Em fins do século dezanove, o Texas tornou-se famoso como uma região de bandoleiros e até os “rangers” titubeavam antes de
entrar nessa terra de ninguém. Os ódios estavam tão exacerbados que por parte
dos mexicanos matar um gringo era um ato de orgulho e, por parte dos texanos,
matar um mexicano não era crime. De 1908 a 1925, toda a fronteira do Rio
Bravo estava convulsionada em vista da Revolução Mexicana. Este foi um período
de matanças recíprocas e calcula-se que
o número de norte-americanos e mexicanos mortos tenha chegado a cinco mil. Além
disso, durante a Primeira Guerra Mundial, houve uma verdadeira caça aos mexicanos por suspeitar-se que estavam conluiados com os alemães. Foi por esses
anos que uma força militar norte-americana, a expedição Pershing, entrou no
território do México para perseguir mexicanos. Em vista desse fato, a 9 de
março de 1916, Pancho Villa invadiu com suas tropas o Estado de Novo México atacando
a cidade de Columbus. Esse incidente piorou a situação dos mexicanos que viviam
além da fronteira. A matança assumiu proporções nunca antes igualadas. O então
Presidente do México, Venustiano Carranza, acusou formalmente o assassinato
frio de 114 mexicanos em território norte-americano. Na Califórnia e no Texas,
os linchamentos e assassinatos de mexicanos eram quase diários. O jornal “New York Times”, com todo o peso de
sua importância sobre a opinião pública norte-americana, chegou a expressar, no
editorial de 18 de novembro de 1922, que “a matança de mexicanos sem provocação é tão comum, que passa quase
inadvertida”. Por sua parte, na cidade do México, o editorial de “El Heraldo”,
de 15 de maio de 1922, comentava que “É sumamente indignante que enquanto em
nosso país os cidadãos norte-americanos gozam de amplas garantias e quando algo
lhes acontece se resolve através dos consulados dos Estados Unidos, nesse país,
ao contrário, os mexicanos seguem sendo assassinados sem que as autoridades
norte-americanas façam o menor esforço para castigar os culpados.”
Essa foi, talvez, a época mais
difícil para os mexicanos que viviam no outro lado. O Tratado
Guadalupe-Hidalgo, que lhes havia assegurado direitos iguais aos dos cidadãos
norte-americanos, foi, na verdade, sua sentença de morte física, jurídica, económica e cultural. Os grandes fazendeiros texanos expulsaram quase toda a
população nativa de suas próprias propriedades agrícolas, sob a proibição, com
ameaça de morte, de voltar às vizinhanças de suas antigas fazendas. Os
mexicanos, abandonados a sua própria sorte, haviam perdido tudo: o solo que
pisavam não era mais sua pátria mexicana; haviam perdido a terra herdada de
seus antepassados; depois de algumas gerações foram se esquecendo de sua língua
e de sua cultura. Com a sua nacionalidade perdida, sem nenhum governo a quem
recorrer, os mexicanos dispersados e perseguidos por todo o sudoeste, somente
encontraram asilo no orgulho e na dignidade de sua raça.
Em todas as épocas, depois da queda
do Império Romano, não se conhece, na história de um povo, um genocídio
espiritual tão grande.
6.
Os imigrantes
Em princípios do século XX a população
mexicana nos Estados Unidos estava mais ou menos aculturada. No entanto, de 1900 a
1930 mais de um milhão de mexicanos cruzaram as fronteiras do Rio Grande e
encontraram trabalho no sudoeste do país, nas grandes plantações
norte-americanas de algodão, beterraba e aipo, ou como trabalhadores
ferroviários.
Essa imigração massiva de mexicanos
veio renovar o velho conflito de culturas. Os novos imigrantes, ao darem conta
de que estavam sendo estratificados e segregados em relação aos trabalhadores
ianques, tentaram rebelar-se. Contudo, essa rebelião ao cabo de 20 anos estava
totalmente reprimida. Os mexicanos foram culturalmente derrotados pela segunda
vez dentro dos Estados Unidos."
Manoel de Andrade, em " O Bardo Errante", (livro em laboração).
Manoel de Andrade, em " O Bardo Errante", (livro em laboração).
CONTINUA
Manoel,
ResponderEliminarsagaz, informativo e, sobretudo, escrito com o coração, o seu texto - por que um ensaísta não deveria?
Em sua cronologia, você deu um salto virtuoso, de meados do séc. XIX ao início do séc. XX, que são exatamente os 50 anos da campanha "Go West!", nos recém-fundados EUA: ocupação territorial mediante invasão e genocídio dos Povos Originários, ligação ferroviária entre as Costas Leste e Oeste - a penetração do capitalismo, enfim, nos territórios das trocas espontâneas, da economia sustentada e de uma das mais belas Cosmogonias.
Do que me lembro? Minha iniciação audiovisual foi o Western de "oliúde", meu aprendizado da História, a versão dos vencedores. "Alamo", por exemplo, do genial e canalha John Wayne, que conta a estória da "defesa" desse bastião em território mexicano pelo embrionário exército ianque, sempre coadjuvado por mercenários - estes, que miravam um mexicano, mas pensavam na terra.