"Conhecera, afinal, Florença e achava que a vida já lhe tinha dado bastante. Conhecera-a madura, depois de ter sonhado com ela toda sua juventude. Chorara no Ponte Vecchio, como se reencontrasse a mocidade, as estranhas visões que a povoavam. Desde menina a ponte a fascinava, com suas casas entranhadas, mais rua do que ponte. Algo absolutamente insólito, ocupando um espaço e um tempo desarrazoados. Deixou-se penetrar pelo encantamento da cidade, vagando por ela, sem rumo, durante dias. Sem esgotá-la, tinha partido e agora, enquanto o trem andava, começou a degluti-la. Jantou só, no carro-restaurante, e voltou para a cabine. Não desejava dormir e teve curiosidade de ver a paisagem noturna pela janela do trem. Nenhum passageiro parecia estar acordado, apenas um silêncio feito de sons abafados. O barulho do trem nos trilhos era um ruído bom, familiar, que lhe devolvia a infância, as longas viagens de noturno rumo à fazenda. "Estou me sentindo estranhamente jovem", pensou. Olhava pela vidraça fechada a paisagem banhada de luar. A solidão reinante fazia bem, deixava o mundo à sua mercê, podia envolvê-lo na palma da mão. Uma voz. Olhou espantada. Uma voz ao seu lado. Um homem a olhava e falava. Ia retirar-se e fechar a porta da cabine, quando alguma coisa a fez mudar de ideia. O homem pedia-lhe que ficasse e a voz combinava com a noite, o trem, o resto de Florença. Ser jovem — ser jovem uma vez mais numa noite, numa cidade estranha. Depois, partir sem deixar rasto. Esgotar a vida, a cidade, o tempo, num só dia. Não desejava mais, ou melhor, só desejava isso. Qualquer acréscimo e tudo estaria perdido. Cogumelos e cerejas no restaurante. Brilhantes e redondos. Tenros, devorados em plena juventude, a vinho, velho, conservava a mocidade, tinha também o poder de inebriar. A cidade era feita de tempo, tempo guardado, tempo preservado. Amava sim, de um amor sem tempo, sem limite, sem fim e sem começo. Ele se chamava Alfredo e queria detê-la. Procurava saber tudo, seu nome, sua cidade, o que fazia, se era casada, se tinha filhos. Ela não dizia nada. Ele fora casado e agora se dizia, livre. Tinha o senso do limite. Queria-a para si num tempo e num espaço certos. Guardada, conservada. Que sabia ele? Ela se sentia livre e aspirava até o último sorvo essa liberdade, duramente conquistada. Desistira das coisas concretas, uma posição definida, um lugar no espaço. Seu espaço era feito de muitos espaços; seu tempo, de muitos tempos. Queria conhecer um dia que não pudesse ser contado em dias. Que lhe daria ele? a tempo aprisionado, a dor das coisas que se perdem de momento a momento. Ela não queria mais ganhar nem perder. O amor seria agora assim, feito de instantes - instantes sem tempo. Já perdera e ganhara seu espaço e seu tempo. Sentia-se livre para viver sem medo de perder. A sensação de juventude vinha cada vez mais forte, e ele participava dela. Estava lhe dando de presente o tempo reconquistado, o tempo de juventude, aquele que ninguém conta. Ainda no trem, quis detê-la e lhe pedia que ficasse, que deixasse alguma coisa de palpável, um endereço, uma pista para encontrá-la um dia em algum lugar. Resistiu. Acenou pela janela e sentou na poltrona. O coração batia violentamente. Teve vontade de parar o trem, precipitar-se pela porta, voltar. O trem, grande devorador, já transformara em tempo o espaço percorrido. Estava livre e só na manhã de verão."
"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
A Viagem
"Conhecera, afinal, Florença e achava que a vida já lhe tinha dado bastante. Conhecera-a madura, depois de ter sonhado com ela toda sua juventude. Chorara no Ponte Vecchio, como se reencontrasse a mocidade, as estranhas visões que a povoavam. Desde menina a ponte a fascinava, com suas casas entranhadas, mais rua do que ponte. Algo absolutamente insólito, ocupando um espaço e um tempo desarrazoados. Deixou-se penetrar pelo encantamento da cidade, vagando por ela, sem rumo, durante dias. Sem esgotá-la, tinha partido e agora, enquanto o trem andava, começou a degluti-la. Jantou só, no carro-restaurante, e voltou para a cabine. Não desejava dormir e teve curiosidade de ver a paisagem noturna pela janela do trem. Nenhum passageiro parecia estar acordado, apenas um silêncio feito de sons abafados. O barulho do trem nos trilhos era um ruído bom, familiar, que lhe devolvia a infância, as longas viagens de noturno rumo à fazenda. "Estou me sentindo estranhamente jovem", pensou. Olhava pela vidraça fechada a paisagem banhada de luar. A solidão reinante fazia bem, deixava o mundo à sua mercê, podia envolvê-lo na palma da mão. Uma voz. Olhou espantada. Uma voz ao seu lado. Um homem a olhava e falava. Ia retirar-se e fechar a porta da cabine, quando alguma coisa a fez mudar de ideia. O homem pedia-lhe que ficasse e a voz combinava com a noite, o trem, o resto de Florença. Ser jovem — ser jovem uma vez mais numa noite, numa cidade estranha. Depois, partir sem deixar rasto. Esgotar a vida, a cidade, o tempo, num só dia. Não desejava mais, ou melhor, só desejava isso. Qualquer acréscimo e tudo estaria perdido. Cogumelos e cerejas no restaurante. Brilhantes e redondos. Tenros, devorados em plena juventude, a vinho, velho, conservava a mocidade, tinha também o poder de inebriar. A cidade era feita de tempo, tempo guardado, tempo preservado. Amava sim, de um amor sem tempo, sem limite, sem fim e sem começo. Ele se chamava Alfredo e queria detê-la. Procurava saber tudo, seu nome, sua cidade, o que fazia, se era casada, se tinha filhos. Ela não dizia nada. Ele fora casado e agora se dizia, livre. Tinha o senso do limite. Queria-a para si num tempo e num espaço certos. Guardada, conservada. Que sabia ele? Ela se sentia livre e aspirava até o último sorvo essa liberdade, duramente conquistada. Desistira das coisas concretas, uma posição definida, um lugar no espaço. Seu espaço era feito de muitos espaços; seu tempo, de muitos tempos. Queria conhecer um dia que não pudesse ser contado em dias. Que lhe daria ele? a tempo aprisionado, a dor das coisas que se perdem de momento a momento. Ela não queria mais ganhar nem perder. O amor seria agora assim, feito de instantes - instantes sem tempo. Já perdera e ganhara seu espaço e seu tempo. Sentia-se livre para viver sem medo de perder. A sensação de juventude vinha cada vez mais forte, e ele participava dela. Estava lhe dando de presente o tempo reconquistado, o tempo de juventude, aquele que ninguém conta. Ainda no trem, quis detê-la e lhe pedia que ficasse, que deixasse alguma coisa de palpável, um endereço, uma pista para encontrá-la um dia em algum lugar. Resistiu. Acenou pela janela e sentou na poltrona. O coração batia violentamente. Teve vontade de parar o trem, precipitar-se pela porta, voltar. O trem, grande devorador, já transformara em tempo o espaço percorrido. Estava livre e só na manhã de verão."
Um conto que "viaja" connosco, através de Rachel Jardim!... Que cidade melhor do que Florença! Que segredos nos encerram a sua Ponte de Vecchio, e outros lugares míticos de Florença, vozes eloquentes da tradição, da arte e da história... Um apontamento, apenas.
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