Requiem pelo ponto de exclamação
"Ao que
parece, coroa de glória nacional, só os portugueses dispõem da palavra saudade,
o que me levanta a seguinte questão: os outros povos ignoram as saudades, só os
portugueses as sentem? Quem não dispõe da palavra não dispõe também do
sentimento? A palavra gera o sentimento? Indo um pouco mais longe e para além
dos sentimentos: se eu não dispuser da palavra árvore, as árvores não existem?
Enfim, deixo a questão (a falsa questão), a quem de direito, mas, por mim,
aceito que as árvores só existem quando temos à mão ou ao pé ou na ponta da
língua a palavra.
E passo
adiante, porque o meu problema não é bem esse, mas este: aprendi na escola que
entre os vários sinais gráficos havia o ponto de exclamação e, naturalmente,
apressei-me logo a exclamar. Como lera em Aristóteles (não lera em Aristóteles,
que é um pouco indigesto, mas num comentador) que no espanto está a raiz da
ciência, eu, desejoso de ser sábio, comecei a ver o mundo como um grande ponto
de exclamação, acrescentado, como é óbvio, com um ponto de interrogação.
Uma flor, um
regato, o quarto crescente da Lua, uma mulher bonita e inteligente, simbolizava-os
graficamente com pontos de exclamação maiores ou menores (enormes no caso da
mulher bonita e inteligente). Eu próprio, ao observar-me mais atentamente, me
sentia um ponto de exclamação.
E quando,
menino, comecei a escrever e escrevi "a gata preta teve quatro gatinhos
brancos", coloquei imediatamente à frente da frase, enxameada de erros de
ortografia, cinco pontos de exclamação (um pela gata, quatro pelos gatinhos).
Adulto, enfim, ao rabiscar a frase "o VII Governo Constitucional é coerente
e está para durar" coloquei também quatro pontos de exclamação (um por
cada ano que ele ia durar).
De facto,
nenhum outro sinal gráfico me fascina tanto. Porque, no fundo, onde está a
humanidade da vírgula ou do acento circunflexo? O ponto de exclamação é o apelo
do sentimento, a riqueza da vida afectiva traduzida num simples sinal. E não
poderia viver sem o ponto de exclamação, a grande ponte entre o coração e a
inteligência, o mistério do universo.
E no
entanto... Porque não o dizer, porque não o confessar? Terríveis apreensões
invadem o meu espírito. Eu lera recentemente num especialista que nada obstava
a que amanhã se desse afectividade aos computadores ― isso ainda não fora feito
apenas porque era inútil, embora possível. A minha alma enchera-se de entusiasmo,
claro está. Um mundo com computadores afectivos, que se angustiam, que choram,
que sentem alegria, que praguejam ― que maravilha! Mas essa satisfação foi
breve.
Sento-me hoje
em frente duma máquina de escrever novinha em folha e a primeira coisa que procuro
é naturalmente o ponto de exclamação. Mas não, esta máquina, última palavra de
inteligência dactilográfica, exemplo, de certo, das mais vivas necessidades do
homem moderno, resultado de numerosas investigações psicológicas e sociológicas
acerca da melhor maneira de os homens melhor se adaptarem à realidade dos
nossos dias, tem o cifrão, claro, tem também os sinais aritméticos (por amor da
matemática ou da ganância?) tem o sinal das percentagens, tem ainda o ponto de
interrogação (até quando?), mas o ponto de exclamação, esse, desapareceu.
E desapareceu
certamente porque se concluiu já não ser necessário ― devermos tudo aceitar sem
espanto. O espanto, ter-se-á descoberto, é um factor de perturbação no
universo, a dedada do demónio.
O começo duma
nova era? Afastado dos teclados das máquinas de escrever, numa época em que
toda a escrita passa pelas máquinas de escrever (até cartas de amor), o ponto
de exclamação (e portanto a própria exclamação) caminham para o rol das coisas
arcaicas, precedendo, provavelmente o ponto de interrogação, o outro sinal do
demónio. E com mais uns anos, as próprias escolas deixarão de ensiná-lo, a
memória dele perder-se-á.
Sem o sinal
tradutor do espanto, os homens deixarão de se espantar, a flor, o regato, o
quarto crescente da Lua, a mulher bonita e inteligente não terão mais mistério,
o mundo passará a ser apenas o que parece ser: compreensível, óbvio, as maçãs
cairão porque sim. Opaco.
Ah!!!!
Oh!!!!"
Augusto
Abelaira, in Jornal de Letras, n.º 15 de 15 de Setembro de 1981
... Saudade, "gosto amargo", assim lhe chamou Almeida Garrett!... Em todos os povos, existe o sentimento da Saudade, não designado por uma única palavra como em Português, mas nalgumas Línguas por expressões idiomáticas que pretendem traduzir idêntico sentimento. Aos românticos (falo da corrente do Romantismo e do Ultra-Romantismo...) sempre lhes agradou este tema da Saudade e do muito que ela envolvia e transmitia e ainda como figura representativa de uma certa maneira de ser e estar na vida! Agarraram-se a ela, à Saudade, e foi "um ver se te avias"!... Nunca mais a largaram! E... Quanto ao apelidado Ponto de Exclamação, somos dos que usam e abusam dele, como certamente já notaram... É defeito nosso, é. Porém, sabe tão bem ter alguns defeitos!... Os defeitos são essenciais à vida, resultam do romper com a normalidade que nos oferece a qualidade, e mais e mais... (Afinal que normalidade e que tipo de qualidade?!...) E então uma violaçãozinha de uma qualquer proibição?! Como a adoramos!... Se a saudade pode representar o medo da perca de algo que nos provoca ou provocou satisfação, então o Ponto de Exclamação, faz de conta que é o "compére" das Revistas à Portuguesa. Têm-nos extraído tanto, desde subsídios a mordomias, que nos apetece apelar para que nos permitam pelo menos manter a Saudade, especialmente do que nunca possuímos, e dos sítios onde nunca morámos, das mulheres que não tivemos oportunidade de amar, a saudade dos sinais exteriores de pobreza que novamente voltamos a apresentar e vão começando a tornarem-se bem visíveis!... E para além de uma saudadezinha, por favor não nos levem... ao abrigo desse famigerado Acordo Ortográfico ou coisa ou parceria que o valha, esse senhor aprumado, vertical, sem espondilose, sem acentuada lordose nem desmesurada cifose, como se fosse aprumado militar em formatura no quintalão do quartel, por favor não nos levem o Ponto Exclamativo! Na sua ausência vão multiplicar-se os ais,... os ahs,... os ohs, etc...
ResponderEliminar