sábado, 10 de março de 2012

Celebrar Jorge Amado

“Capitães da Areia” é a primeira longa-metragem da neta de Jorge Amado. Cecília Amado tentou seguir o texto literário publicado em 1937 e considerou o avô ousado por mergulhar na temática da pobreza infantil, uma dura realidade que até então os autores brasileiros não se tinham atrevido a retratar.O filme estreou no Brasil em Outubro de 2011, antecedendo o centenário do nascimento de Jorge Amado , embora integrado nas festividades previstas. 

Capitães da Areia
Bahia de Todos os Santos, 1950. Um bando de meninos abandonados incomoda a sociedade. São chamados Capitães da Areia, porque o cais é o seu quartel general. Pedro Bala, o temido líder dos Capitães da Areia, é caçado como o pior dos bandidos, mas, na verdade não passa de um adolescente livre nas ruas. Ele é o herói de quase uma centena de meninos, que juntos vivem incríveis aventuras. (...) Quando uma epidemia de varíola invade a cidade, os Capitães da Areia  deparam-se com o conflito da morte, têm que tomar decisões de adulto, decisões impossíveis para a cabeça dessas crianças. Enquanto isso, nos bairros populares, a epidemia destrói famílias, fazendo novos órfãos. Dora, de apenas 13 anos, perdeu pai e mãe, e vê-se só nas ruas de Salvador. Mas quis o destino que os Capitães da Areia cruzassem o seu caminho. O bando nunca teve uma figura feminina e a chegada de Dora vem mexer com a vida dos Capitães. Pedro Bala logo se apaixona por ela. Professor, braço direito de Bala, mais tímido e inexperiente, apenas sonha com a sua pele macia, com os seus seios que despontam, seu jeito de que vai virar mulher a qualquer instante. O triângulo amoroso torna-se inevitável, os três estão mais adolescentes do que nunca, como adolescentes descobrem o amor.
"Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram a Barandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Assim mesmo, estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam tomar por um menino, um dos Capitães da Areia.
No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer:
– Tu tá gozada...
Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.
– Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.
O assombro dele não teve limites:
– Tu quer dizer...
Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.
– ... que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...
– Isso mesmo – sua voz estava cheia de resolução.
– Tu endoidou...
– Não sei por quê.
– Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa pra homem.
– Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.
Pedro Bala procurou o que responder:
– Mas a gente veste calça, não é saia...
– Eu também – e mostrava as calças.
De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou:
– Se a polícia pegar a gente não tem nada. mas se pegar tu?
– É igual.
– Te metem no Orfanato. tu nem sabe o que é...
– Tem nada não. Eu agora vou com vocês.
Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. mas ela bem sabia que ele estava preocupado. Por isso ainda disse:
– Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...
– Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não agüenta um empurrão...
– Posso fazer outras coisa.
Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem tivesse medo dos resultados.
Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendia a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de "meu irmão". O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia num assombro das qualidades de Dora. Quase a achava tão valente como Pedro Bala. Dizia a Professor num espanto:
– É valente como um homem...
Professor preferia que não fosse assim. sonhava com um olhar de carinho dos olhos da Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas, a Gato, a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala quando o via na carreira, fugindo da polícia ou de um homem que dizia na porta de uma loja:
– Ladrão! Ladrão! Me furtaram...
Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava. Professor ouve os elogios de João Grande, mas não sorri.
Pedro Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho inchado e o lábio roxo, sangrando. Topara com Ezequiel, chefe de outro grupo de meninos mendigos e ladrões, grupo muito menor que o dos Capitães da Areia e muito mais sem ordem. Ezequiel vinha com uns três do grupo, inclusive um que fora expulso dos Capitães da Areia por ter sido pegado furtando um companheiro.(...)Enquanto andava para o "14", Pedro Bala pensava em Dora. No cabelo loiro que caía no pescoço, nos olhares dela. Era bonita, era igual a uma noiva. Noiva... Nem podia pensar nisso... Não queria que os outros do grupo se sentissem com direito de pensar em safadezas com ela. E se ele dissesse a Dora que ela era como uma noiva para ele, outro poderia se julgar no direito de também dizer. E então não haveria mais lei nem direito entre os Capitães da Areia. Pedro Bala se recorda de que é o chefe...
Vai tão distraído, que quase esbarra com Ezequiel. Estão os quatro parados diante dele. Ezequiel é um mulato alto, fuma uma ponta de charuto. Pedro Bala fica parado também, esperando.
(...)Entrou no trapiche, Dora estava sozinha com o irmão, que dormia. os últimos raios do sol entravam pelo teto, dando uma estranha claridade ao casarão. Dora o viu entrar e andou para ele:
– Segurou os cobres?
(...)Mas enxergou o olho inchado de Pedro, o beiço partido(...)Ela o sentou, foi ao canto de Pirulito, trouxe água. Com um pedaço de pano limpou as feridas dele. Pedro arquitetava planos de vingança. Ela apoiou:
– A gente acaba com eles desta vez.
Pedro riu:
– Tu vai também?
– Se vou...
Agora limpava os lábios dele, estava curvada na sua frente, seu rosto bem próximo do de Bala, os cabelos loiros misturados com os dele.
(...)– Foi por causa de mim, não foi?
Ele abanou a cabeça afirmando. Então ela chegou os lábios para junto dos de Pedro Bala, os beijou e depois fugiu. Ele saiu correndo atrás dela, mas ela se escondia, não se deixava pegar. Aos poucos foram chegando os outros. Ela de longe sorria para Pedro Bala. Não havia nenhuma malícia no seu sorriso. mas seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros. Era um doce olhar de noiva, de noiva ingênua e tímida. Talvez mesmo não soubessem que era amor. Apesar de não ser noite de lua, havia um romântico romance no casarão colonial. Ela sorria e baixava os olhos, por vezes piscava com um olho porque pensava que isto era namorar. E seu coração batia rápido quando o olhava. Não sabia que isso era amor. Por fim a lua veio, estendeu sua luz amarela no trapiche. Pedro Bala se deitou na areia e mesmo de olhos fechados via Dora. Sentiu quando ela chegou e deitou a seu lado. Disse:
– Tu agora é minha noiva. Um dia a gente se casa.
Continuou de olhos fechados. Ela disse baixinho:
– Tu é meu noivo.
Mesmo não sabendo que era amor, sentiam que era bom.

(...)Vão alegres. Levam navalhas e punhais nas calças. Mas só os sacarão se os outros puxarem. Porque os meninos abandonados também têm uma lei e uma moral, um sentido de dignidade humana.
De repente João Grande grita:
– É ali.
Com a algazarra que fazem, Ezequiel sai de sob um barco:
– Quem vem lá?
– Os Capitães da Areia, que não engole desaforo... – respondeu Pedro Bala.
E arrancaram para cima dos outros.
A volta foi um triunfo. (...) Falavam na coragem de Dora, que brigara igual a um menino. "Igual a um homem", dizia João Grande. Era como uma irmã, exatamente igual a uma irmã...
Igual a uma noiva, exatamente igual a uma noiva, pensava Pedro Bala, estendido na areia. A lua amarelava o areal, as estrelas se refletiam no mar azul da Bahia. Ela veio, deitou ao lado dele. E começaram a falar de coisas tolas. Igual a uma noiva. Não se beijaram, não se abraçaram, o sexo não os chamava naquele momento.(...)
– Teu cabelo é bonito! – disse ele.
Ela riu, olhou o cabelo dele:
– O teu também.
Riram os dois e logo foi uma gargalhada. Era um hábito dos Capitães da Areia. Ela começou a contar coisas do morro, histórias dos vizinhos, ele relembrava fatos da vida agitada do grupo:
– Vim pra aqui com cinco anos. menor que teu irmão...
Riam inocentemente, felizes de estarem um ao lado do outro. Depois o sono veio. Estavam separados, Pedro tomou a mão dela, segurou. Dormiram como dois irmãos.
Jorge Amado, in “Capitães da Areia “ Edição “ Livros do Brasil ” , Lisboa.

2 comentários:

  1. Enquanto este mundo jovem frenético, solto, alegre, sadio, intocável da miudagem viver na Baía (Brasil), olhando o Ilhéu dos Frades (porque mesmo "sepultado" num belo romance...ainda está bem vivo!...) e à semelhança por esse mundo fora, outros tantos, um mundo que o grande Jorge Amado aqui retrata admiravelmente em "Capitães da Areia", enquanto isso, podemos reafirmar que o Jorginho - como lhe chamava a Zélia... - continuará sendo um romancista imortal, verdadeiro cidadão de todos os países. Cem anos percorreram sobre a sua morte!... Saibamos seguir-lhe a ombridade e a nobreza, a abertura de coração, sobretudo a bondade do seu carácter, virtudes que marcaram a sua vida cívica e igualmente tudo quanto esteve ligado à sua obra literária. A melhor homenagem que lhe prestamos!

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  2. Por lapso, foi escrito: "Cem anos percorreram sobre a sua morte!...". Deverá ler-se: "Cem anos percorreram sobre o seu nascimento". O meu pedido de desculpa aos leitores. "Lapsus Calami"...

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