Madrugada
Vens dos baluartes do silêncio
e de silêncio em silêncio tu caminhas
apalpando as horas
como uma esfinge acuada pela noite.
Véspera de todos os destinos
chegas vestida pela aragem e a penumbra
pelo farol das constelações e a figuração dos signos
pois só os astros conhecem teus segredos
e eis porque são inconfessáveis os teus vultos
gestos sem ribalta num teatro de amantes
e de conspiradores.
És o remanso da criatura
o repouso das palavras
o murmúrio dos elementos
um felino que caminha sobre a relva
um pio solitário
um latido na distância.
Marchas pelo ventre da noite
na cadência inexorável do tempo
passo a passo rumo ao alvorecer
e é tão sutil tua chegada
porque caminhas na melodia mágica do silêncio
no rastro e no sigilo dos teus passos...
Uma telúrica canção és tu
um surdo cantochão
uma elegia que a luz ofuscará.
Teu corpo de orvalho e de enigmas
é uma vestal sagrada
aceso santuário
ungindo a luz e o movimento.
Negros são teus olhos
clareando lentamente sobre a relva
e sobre as águas.
Colhida no noturno imenso
és imensa ao ressurgir raiada
das abissais aldeias da sombra e do mistério.
Chegas enfim para morrer na aurora palpitante
taça de luz
cântaro de fogo
arquétipo planetário da esperança
no esplendor de todo amanhecer.
Manoel de Andrade, Curitiba, Abril de 2004, in “ Cantares” Ed. Escrituras, S. Paulo, Brasil
Aurora
Não direi que me encantas mais do que o silêncio
porque é assim que despertas as aves e os caminhos.
Meus olhos também nascem pelo parto da esperança
porque vivo na imortalidade
renascendo em cada dia.
Deixa-me rever em prece tua face ressurgida
porque tua luz é sempre uma catarse.
Teu olhar estende as linhas do horizonte
e toda a paisagem é então uma ventura
e já não és mais nada
porque desfaleces no seio da beleza.
Repara como sou pequeno diante do teu rosto amanhecido
mas como é grande o que em mim te contempla.
Para renascer basta-me apenas teu momento
tua humilde majestade
tuas pétalas de fogo
e essa corola ardente
porque não peço nada mais que a tua luz
inaugurando o mundo em cada alvorecer
e que nunca me encontres cego ou vencido.
Manoel de Andrade, Curitiba, Abril de 2004, in “ Cantares” Ed. Escrituras, S. Paulo, Brasil
"Para renascer basta-me apenas o teu momento"... Quando nasces já nasceste, porque a dor do vivido é sempre um momento já perdido. Renascemos quando ganhamos o objecto desejado... V. P.
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