“Acreditei durante muito tempo ter vindo ao mundo de um modo diferente de toda a gente. Foi minha avó Catarina – e as avós nunca mentem – quem me meteu esta ideia na cabeça. Costumava contar-me que, num dia de inverno, de manhã cedo, apesar do nevoeiro, o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da Adraga apanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com a cabeça, as pernas e os braços de fora.
Como testemunhas presenciais minha avó citava um cavaleiro maneta, mestre equestre, que para ali ia montar acompanhado pelos seus três peões de brega, recrutados entre os mais aparvalhados das aldeias. Eles e o faroleiro assistiram estremunhados ao estranhíssimo espectáculo. E os cinco disputaram entre si quem iria ficar comigo. A meio da discussão foram atacados por uma cobra-marinha que estava a guardar-me. Mas João de Castro, com a lança que lhe servia para espetar os polvos entre as rochas, cortou à cobra monstruosa a cabeçorra diabólica, assim conquistando o direito à minha posse.
Este faroleiro, de aqui em diante meu pai, vivia com a mulher, Joana Correia de Castro, no cabo da Roca, e por não terem filhos lhe interessava ficar com o enjeitado, quase normal uma vez saído da casca. E lá me levou, ora ao colo ora às costas, por atalhos e a corta-mato, até às pedregosas alturas da Roca, na esperança de não encontrar ninguém mais, para não ser obrigado a explicar quem era a criança a chorar esfomeada. Nunca na vida meu pai desmentiria a sogra, que não lhe perdoava a pobreza nem o ter-lhe roubado a única filha, três vezes mais nova que ele. E Joana, minha mãe para todos os efeitos, deve ter gostado desse filho-mistério que primeiro a assustou porque tinha seis dedos no pé direito, e logo a comoveu por vir roxo de frio, mal embrulhado numa capa impermeável.
Por muito que meus pais receassem irritar os ânimos difíceis de Catarina se pusessem em causa o seu relato, não compreendo que o não fizessem mais tarde, caso fosse outra a verdade. Sempre subscreveram a versão da minha avó, e aos poucos me acostumei a ser uma ave rara.
Na véspera do meu nascimento caíra sobre a serra de Sintra a tempestade mais tremenda de que as pessoas se lembram. A aurora chegara enrolada em nimbos baixos, tão carregados de cúmulos em forma de couve-flor de chumbo, que nunca, em muitos anos de embarcado, meu pai observara tal espessura de nuvens, tal secura de trovões confirmando o rifão: se trovão seco no céu reboa, tempo violento nos apregoa. João de Castro era um repositório destas regras rimadas, de teorias proverbiais com que explicava as estranhezas que rodearam o dia memorável: relâmpagos ao norte e vento forte, se do sul vem, chuva também.(…) Muitas vezes, hoje mesmo, os sonhos me trazem imagens da catástrofe. Sinto arrepios ao evocar as circunstâncias que precederam e que de certo modo predisseram o instante em que vi a luz do dia.(…) Esta avó Catarina viria a ser decisiva na minha vida. Desde que me disse como nasci, devo tê-la considerado uma deusa tutelar. Aos quinze anos e nove meses passei a morar em sua casa, o que nos aproximou cada vez mais. Controladora dos meus prematuros namoros, assim se indemnizava pelas libertinagens do seu Falecido. Não que o meu aspecto físico ou a minha índole introvertida me tornassem um símile desse avô semimítico que só vi em fotografias de família: olhos azul-escuros e vivaços, estatura meã, o ventre testemunhando os abusos da mesa e do álcool, têmporas cedo esbranquiçadas, orelhas agigantadas, atentas à música do mundo que ele tanto amava. (…)Em comum, só uma ambígua atracção pelo desconhecido, e o gosto pelo risco. Gosto a que minha mãe também cedeu, ao fugir de casa com um marinheiro capaz de ser seu pai. Essa traição ao amor paterno terá levado o coração do meu avô a desfazer-se lentamente, até parar por desistência. Tinha eu ano e meio quando ele morreu. Recordo apenas, vagamente, a teimosa tristeza de minha mãe, que passava dias sem falar, fechada sobre si, mais entregue ao luto que a própria Catarina, a qual, quando nos visitava, nunca vinha de preto. Assim que a avó chegava, o mundo mudava de cor. Dormíamos no mesmo quarto ela contava-me histórias, passeava comigo, punha o meu mimo em dia. Sobretudo procurava convencer-me a começar a falar. Porque os mutismos de Joana encontraram em mim um zeloso discípulo: embora desse mostras de entender o que me diziam, eu não pronunciava nem um som, quanto mais uma palavra.(…)
A minha história preferida, e que não me cansava de ouvir , era a daquele Rei com quem me orgulhava de partilhar o nome e que nasceu quatro séculos certos, dia por dia, antes de mim. Hoje concordo que nomen est omen. E Catarina achava que, por S. Sebastião ter sido mártir da Cristandade, o rei meu homónimo se sentiu provavelmente obrigado a lançar-se numa absurda batalha contra os árabes, em pleno deserto, no mês de Agosto, sob um sol de quarenta graus. Com arrepiantes requintes, Catarina descrevia o massacre sofrido pelo luso exército, que incluía milhares de mercenários vindos de vários países. Vendo-me mortificado por terrível sina, a avó dava-me alento dizendo que um dia o Rei voltaria, numa madrugada, no meio da neblina.
Desde aí gosto de acordar em manhãs de nevoeiro. Sinto-me protegido da nitidez excessiva das formas e dos ruídos, que me chegam abafados como debaixo de um lençol. Assaltado pelo supersticioso receio de não viver mais que D. Sebastião, e mergulhado em súbita melancolia perante a precariedade da vida, refugiei-me há um mês , durante o Natal do ano passado, na ermida da Peninha. Os primeiros solitários escolheram este sítio oito séculos atrás. Percebo que o fizessem. Diz-se que o fundador do eremitério aguentou, metido numa gruta, isolado no alto da Serra, entre a aspereza dos penedos, trinta e cinco anos seguidos. Não pretendo atingir tal meta. Só quero repensar, até ao ameaçador mês de Agosto, o que fiz e não fiz de mim.
Destes cumes contemplo os lugares da minha meninice, a Foz do Falcão perdida na névoa, manchas brancas de casas, um telhado caiado lá para os lados das Azenhas do Mar. Em dias claros vê-se a Pedra de Alvidrar saindo do mar em que me perco a olhar. Comecei a reconstruir uma antiga pousada de peregrinos, para nela atravessar a invernia. O trabalho manual fatiga-me e faz esquecer outros mais agradáveis, em que porém suei também, aperfeiçoando as minhas artes. De nada mais preciso neste vinte de Janeiro de mil novecentos e setenta e oito, dia do meu vigésimo quarto aniversário.”
Almeida Faria, in “ O Conquistador”, Ed. Círculo dos Leitores, Setembro de 1994
Almeida Faria nasceu em Montemor-o-Novo (Alentejo), a 6 de Maio de 1943. É licenciado em Filosofia, e professor de Estética na Universidade Nova de Lisboa. Viveu como escritor residente (1968-69) nos Estados Unidos (International Writing Program, Iowa City) e em Berlim, onde fez parte do Berliner Künstlerprogram no qual participaram, entre outros, Gombrowicz, Michel Butor, Peter Handke e Mario Vargas Llosa.
Almeida Faria tem uma vasta obra publicada e premiada. Obteve ,em 1962 , o Prémio Revelação de Romance da Sociedade Portuguesa de Escritores com o livro “Rumor Branco” era ainda um jovem escritor.Seguiu-se a tetralogia lusitana composta por “ Paixão” (1965), “Cortes”(1978) que foi Prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Lisboa, “Lusitânia” (1980) Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus, e "Cavaleiro Andante" (1983) Prémio Originais de Ficção da Associação Portuguesa de Escritores.
O romance “O Conquistador”(1990) é uma fábula sobre a condição humana cujo título provoca interpretações diversas e intencionalmente convergentes. O conquistador é o rei D. Sebastião da História de Portugal, reinventado na personagem omnipresente da narrativa ficcional. O logro que magistralmente se desenvolve através de uma ambivalente situação, “Conquistador/Sedutor”, faz desta narrativa um desafio constante ao leitor. Marcado pela referência histórica, o romance é o resgate de um tempo anterior para a descoberta do tempo actual através de uma interacção efectiva. É uma obra excelentemente provocatória , elaborada com fina ironia e humor requintado que merece ser revisitada.
Esta obra é um excelente romance que se lê com total interesse desde a 1ª página à última. Almeida Faria teceu uma trama baseada no mito do Sebastianismo que actualizou na personagem principal. Um óptimo excerto do 1º capítulo do livro.
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