quarta-feira, 15 de junho de 2011

A finitude da vida


Inicia-se , hoje, o V Congresso Nacional do Idoso - Geriatria 2011 que  irá decorrer até  16 de Junho de 2011, no Centro de Congressos de Lisboa.
Entre as razões que são enumeradas para a sua realização estão as seguintes:" Apesar do declínio fisiológico determinado pela idade ser inevitável, e o processo de envelhecimento imutável, os profissionais de saúde podem e devem minorar a expressão da doença no Idoso, através da prevenção, do aconselhamento e do tratamento adequados. E, tendo em conta o aumento da esperança média de vida verificado nos últimos 30 anos, torna-se indispensável adequar a formação médica e os padrões sociais a esta nova realidade."
Numa reportagem emitida por um canal televisivo sobre gente que sobrevive, apareceu o registo de uma idosa , modista reformada, vivendo numa casa, quase em ruínas, na nossa bela capital, Lisboa, e tendo como rendimento uma pensão de miséria. Apesar de tanta adversidade, a idosa , movendo-se já com  dificuldade, residia sozinha, enfrentando os desafios diários naquele que era o seu lar , considerando que a vida era apenas uma passagem. A firmeza que a sustinha vinha-lhe, certamente, da tal  força interior que se cultiva ao longo da vida e que se afirma  também com o lugar de pertença, o chão da casa, o tecto das próprias raízes, nem que ele esteja a cair. 
Criar condições para que se dignifique uma existência, passa pelo auxílio na manutenção/recuperação das casas degradadas daqueles que nada têm para o fazer.Arrancá-los , no ocaso da vida, do  lugar de pertença, retirando-os das suas próprias casas , será condená-los a perder a própria identidade. A finitude da vida merece um olhar diferente daquele que, nestes dias de ira, leva a condenar os mais velhos a um ostracismo indesejado e a colocá-los, geralmente à revelia, em Lares da dita 3ª idade, impondo-lhes um  espólio de toda uma vida .  
Todas as políticas relativas a este grupo etário devem partir do respeito pela individualidade de cada um. Zelar pelos idosos é propiciar que  possam  preservar,  com dignidade, uma identidade subjacente a um percurso existencial que tem referenciais próprios que não podem ser apagados.
Pela sua  actualidade, transcreve-se um pequeno excerto de um romance que desenvolve esta temática:
 “(…)Quando acordara naquele dia não enxergara de imediato onde estava. A sua vida nos últimos anos obrigara-a a mudar constantemente de lugar, pelo que invariavelmente quando acordava tinha dificuldade em reconhecer o quarto.
Assim, quando respirou fundo e abriu bem os olhos e os sentidos todos começaram a funcionar, pareceu-lhe ouvir a seu lado um ruído descompassado, pesado e quase ofegante. Sentou-se na cama e viu-se num quarto sombrio, com uma claridade tenuemente difusa que se espalhava, mostrando-lhe mais duas camas onde jaziam também dois vultos que não foi capaz de identificar.
Então, recordou repentinamente a noite anterior. Tinham-na levado para o Lugar. Ali estava ela no meio de estranhos, não imaginando sequer quem eram eles, mas compartilhando já o quarto.
Apesar de tudo em qualquer das casas por onde andara, até na que deixara de lhe pertencer, tinha tido sempre um quarto só para ela. Os filhos tinham preservado essa sua necessidade mínima de independência. E era lá que se renovava e se refortalecia para os combates que foram sucessivamente travados num plano de  aparente desigualdade. Ela fora sempre vencedora, pois estava íntegra. Nunca fora tão forte a sua energia interior. Conseguira resistir aos desmandos dos filhos e aceitara de face lavada a entrada no Lugar.
E assim começava o primeiro dia da mudança mais radical e inesperada da sua vida. Sozinha no meio de tanta gente.
Como a história da vida, por vezes, trai. Tenta-se construí-la de uma maneira e ela desenrola-se de outra. Quando os filhos eram crianças, tinha sonhado criá-los a todos em casa, confrontando firmemente Mário Alberto que, de acordo com a época, teimava em interná-los em colégios para usufruírem de uma rígida educação. Sempre considerou que o ambiente familiar era o melhor suporte para um crescimento saudável, regulador de qualquer educação.
Todos estudaram em bons colégios particulares, mas em regime de externato. Assustava-a a ideia de os ver isolados entre estranhos, repartindo o quarto na noite grande e dominadora. Só a filha mais velha fora internada na fase da adolescência, aos catorze anos, quando completou o antigo 5º Ano do Ensino Liceal para seguir um curso de línguas estrangeiras, num colégio afamado que ficava distante.
Tornou-se uma jovem rebelde e fez um casamento desastroso com o tal inglês desvairado que a deixou sem meios e com três filhos. Foi progressivamente convertendo-se numa mulher amargurada e azeda. Atribuiu sempre ao internamento e, por tal, à consequente separação do ambiente familiar este evoluir da sua personalidade.
Afinal a história escrevia-se agora contra ela. Eram os filhos que  a tinham internado. E a noite grande e dominadora tinha sido passada num quarto partilhado a três.
Levantou-se e, lá ao fundo, descobriu uma porta. Era a casa de banho. Era grande, interior, mas bem iluminada por uma profusa luz artificial. Estava limpa e dispunha de uma grande banheira e de uma zona separada para o duche. Abriu as torneiras e a água começou a jorrar aquecida e transparente.
-“Que alívio”. Poderia tomar um bom banho e depois começar a reconhecer o Lugar.
Acabado o banho, retornou para o quarto e os vultos continuavam inertes nas camas impossibilitando o seu reconhecimento. As respirações prosseguiam ofegantes com intervalos irregulares, ora roncando sinistramente, ora sibilando titubeantemente. Seriam estas as suas companheiras dos tempos vindouros?
Tinha de sair rapidamente do quarto e libertar-se deste ambiente desolador. As forças necessitavam de ser retemperadas num processo preventivo de defesa.
- Será que poderei sobreviver neste Lugar? - pensou pela primeira vez em surdina e até com medo de se ouvir. “ 
Maria José Vieira de Sousa, in "O Lugar, memórias de um romance”, Junho de  2008                             

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