"Mário Dionísio é um nome fundamental do neo-realismo, sobretudo pela sua actividade de teórico, de crítico e de promotor. [...] Como ensaísta, deixa sobretudo um monumento durável que é o notabilíssimo ensaio A Paleta e o Mundo, o qual ficará, entre nós, no género, como um livro único e uma façanha difícil de repetir. [...]
Parece-nos que o relevo da sua actividade crítica e ensaística ajudou a relegar para uma certa sombra injustamente discreta uma poesia de qualidade musical muito subtil, um canto manso mas que se quer insistente, uma voz fraternal e bem cedo isenta de demagogia, vastamente merecedores de melhor atenção. A «discreta alegria do mundo», de que fala um dos poemas de O Riso Dissonante, é bem uma metáfora desta sedutora música de câmara de um poeta que, tendo começado com as proclamações polémicas, sonoras e urbanas da sua «Arte Poética», bebida em Álvaro de Campos, bem cedo recolheu a ritmos mais subtis, originados talvez não tanto no seu amor a Éluard, como no seu próprio temperamento reflectido, recolhido e melómano."
Parece-nos que o relevo da sua actividade crítica e ensaística ajudou a relegar para uma certa sombra injustamente discreta uma poesia de qualidade musical muito subtil, um canto manso mas que se quer insistente, uma voz fraternal e bem cedo isenta de demagogia, vastamente merecedores de melhor atenção. A «discreta alegria do mundo», de que fala um dos poemas de O Riso Dissonante, é bem uma metáfora desta sedutora música de câmara de um poeta que, tendo começado com as proclamações polémicas, sonoras e urbanas da sua «Arte Poética», bebida em Álvaro de Campos, bem cedo recolheu a ritmos mais subtis, originados talvez não tanto no seu amor a Éluard, como no seu próprio temperamento reflectido, recolhido e melómano."
Eugénio Lisboa in "Poesia Portuguesa: do «Orpheu» ao Neo-Realismo"
ARTE POÉTICA
A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.
está nos olhos abertos para amanhã.
Mario Dionísio, in “Poemas”, Coimbra, 1941, Col. Novo Cancioneiro nº 2
("Não conhecemos poesia anterior a esta [Poemas] em que haja da parte de qualquer poeta a confissão de uma identidade absoluta com a massa dos homens [...] ainda que não com absoluta exclusão do eu que também é." Alexandre Pinheiro Torres)
O irrecuperável
recuperado ei-lo aqui sorrindo
com a boca torcida mas feliz
com os braços esmagados mas feliz
o que não volta eis volta
por ignoradas mãos
numa hora esquecida
entre as horas marcadas
possível o recomeço
possível o sobressalto
possível o sonho solto
possível um mundo novo
possível o impossível
outro é o destino do homem
Mário Dionísio, in “ O Riso dissonante” Lisboa: Centro Bibliográfico, 1950, col. Cancioneiro Geral nº4
CONSCIÊNCIA
Cada minuto uma questão
Mil fronteiras que venço ou que não venço
Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão:
ser o que penso
Mário Dionísio
(1916-1993)
in "Poesia Incompleta
Mil fronteiras que venço ou que não venço
Mas nenhuma de mais dura e duradoura combustão:
ser o que penso
Mário Dionísio
(1916-1993)
in "Poesia Incompleta
Mário Dioníso nasceu em Lisboa, a 16 de Julho de 1916 e morreu em Lisboa, a 17 de Novembro de 1993. Professor, pintor, ensaísta, crítico, poeta foi um resistente, um combatente ao serviço da justiça social e da Liberdade. Toda a sua variada escrita veicula a consciência da Modernidade, a de um homem íntegro empenhado com o seu tempo.
como sempre muito bom...
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