Por Baptista Bastos
Num dos seus mais estimulantes livros de ensaios literários, "Le Commerce des Classiques", Claude Roy cita Montesquieu: "Não há nenhum desgosto que uma hora de leitura me não console." Talvez resida algum exagero neste testemunho. Mas a paixão da literatura, o regalo de ler, a alegria da descoberta de uma frase bem boleada, estabelece uma cumplicidade entre autor e leitor difícil de explicar.
O melhor de nós é construído através dos livros; dos encontros, por vezes imponderáveis, que se fazem, casualmente, nas páginas honestas impressas em corpo 10 redondo. Tive um professor, Emílio Menezes, gramático distinto e consumidor entusiasta de clássicos, que dizia exortar muito bem o espírito dormirmos com, pelo menos dois livros à cabeceira. Ficou-me, para sempre, a recomendação, multiplicada por dezenas.
Claude Roy, outra vez: "A literatura não deve ser a arte desprezível de pensar noutra coisa; ela deve ser, ela é, a arte admirável de pensar mais profundamente, mais validamente as coisas." O ruído que por aí se escuta, o falazar insidioso de quem não tem nada para dizer, mas vai dizendo, é sinal da época e sintoma de vazio. Para nos precavermos desta agressão sem pausa, para nos resguardarmos das afrontas que nos provocam estes políticos sem brio, sem honra, sem ideias de seu, e sem gramática, recomendo uma visitação àqueles que se definiram por tentar definir-nos.
Por exemplo: António Borges Coelho, de quem acabo de ler o segundo tomo da sua História de Portugal - Portugal Medievo. É uma iluminação intelectual, pelo que nos propõe de reflexão e de achado. A probidade deste investigador (de quem só encontro paralelo em José Mattoso) é um banho lustral para a alma. Com 82 anos, uma obra de interrogação histórica monumental, uma necessidade de transmitir aos outros os resultados das suas pesquisas, António Borges Coelho não pára de questionar o "donde viemos", fornecendo-nos pistas de meditação das mais raras, originais e concitantes. E é o povo, na sua trivial realidade, e os movimentos que o impulsionam, que atraem e fascinam o grande historiador - simultaneamente um prosador de excepção.
Vamos sabendo o que nos foi acontecendo, e está a acontecer, frequentando títulos como Portugal na Espanha Árabe, A Revolução de 1383, Inquisição de Évora, a série Questionar a História, Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista, outros, muitos mais outros, além deste último, Portugal Medievo, cuja urgência em ser lido vos recomendo.
O que devemos a António Borges Coelho é impagável. Modesto, discreto, possuído da moral proletária do trabalho, longe dos atabales que se acrescentam ao barulho inútil da época, ele continua uma tarefa ingente - mas com pisar seguro porque sabe estar em chão sagrado.
Artigo de Opinião de Baptista Bastos publicado no DN de 23/Fev./2011
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