quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Ferreira Gullar, poeta da resistência (cont.)


Publicou-se neste espaço, no dia  1 de Novembro,  um artigo de Cimara Valim de Melo sobre Ferreira Gullar, vencedor do Prémio Camões 2010. A extensão do artigo publicado obrigou à supressão de algumas partes importantes e elucidativas sobre este grande poeta da língua Portuguesa e o seu enquadramento na época da Ditadura, altura em que foi uma exímia voz dissonante , um eloquente  poeta da resistência. Assim, continuamos, agora,  a  transcrição de outro excerto desse  artigo:
 " (...)O cenário brasileiro da segunda metade do século XX é marcado não apenas pelas contradições oriundas da massificação cultural e da tecnocratização do mundo, mas, além disso, pelos reflexos da ditadura militar no fragmentado 'todo' social. A repressão política atingiu visceralmente a sociedade, deixando abertas as feridas do autoritarismo que, aos poucos, tornaram-se profundas cicatrizes. Com isso, emerge na arte poética a resistência multifacetada, a tentativa de negar a dominação, de romper as amarras ideológicas. As décadas da segunda metade do século XX foram propícias à multiplicidade constante, à valorização do instável e mutável e à “resistência poética” que, conforme Alfredo Bosi, ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido, ora a melodia dos afetos, ora a crítica da desordem estabelecida. (...) É nesse grupo de autores – próximos em razão das metamorfoses por que passaram seus poemas e também eles próprios – que está inserido Ferreira Gullar. Esse escritor maranhense atravessou as décadas de repressão ditatorial brasileira em plena produção literária, chegando a representar um ‘perigo’ ao governo na década de 1970. Teve, em 1964, as publicações do ensaio "Cultura posta em questão" queimadas por militares. Em 1968, com a assinatura do Ato Institucional nº 5, é preso. Em 1971, quando morre seu pai, Gullar decide sair da vida clandestina e partir para o exílio. Entre as principais cidades em que passa a residir estão Moscou e Buenos Aires. Em 1975, ano em que é lançado no Brasil "Dentro da noite veloz", Vinícius de Moraes traz da Argentina "Poema Sujo", gravado em uma fita cassete.
Em 1977, o poeta volta ao Brasil e novamente é preso, mas libertado dias depois, com o apoio de amigos. Em 1980, lança " Na vertigem do dia" , e "Poema Sujo" é adaptado para o teatro. Sua importância literária cresce à medida que a ditadura dissolve-se e mais obras vão sendo conhecidas e publicadas. Em "Poema Sujo", doença, pobreza, sensações do submundo urbano são expressas em uma obra “suja de vida”. Cada facto quotidiano descrito em meio à narratividade, entrecortada pela fragmentação, é uma denúncia recriada por Gullar:

- E esta mulher a tossir dentro de casa!
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,
O perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de
dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)
E todos buscavam
   num sorriso num gesto
   nas conversas da esquina
   no coito em pé na calçada escura do Quartel
   no adultério
   no roubo
   a decifração do enigma
      - Que faço entre coisas?
       - De que me defendo?
                   (...)
Ferreira Gullar in “Poema Sujo”,1976 Toda Poesia. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001 "
Cimara Valim de Melo, in "A resistência poética de Ferreira Gullar", artigo publicado na Revista " Nau literária" da UFRGS , em 2005.

Outros poetas brasileiros foram vozes da Resistência produzindo uma obra poética de grande intensidade durante esse tempo negro da Ditadura. Iremos também revisitá-los.

Sem comentários:

Enviar um comentário