sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Estamos de novo cercados pelo medo


Quase seiscentos mil portugueses estão desempregados, informa o Governo. Os sindicatos dizem que são muitos mais. Tenham uns e outros as razões dos números, a verdade é que estes são extremamente elevados. Já passei por angústias semelhantes. Duas ou três vezes fui posto na rua, simplesmente por não estar de acordo e manifestar, subversivamente, o meu profundo desagrado. Não fiz mais do que devia fazer. Falo no facto para dizer aos meus Dilectos que sofro com dor de peito quando, nas televisões, e isto é diário, assisto a esse desfile de homens e mulheres despedidos de fábricas e empresas que todos os dias encerram.
Claro que os encerramentos se devem a "empresários" iletrados, a "patrões" irresponsáveis, a fraudulentas manigâncias. O "Jornal de Negócios" inclui, amiúde, nas suas páginas, o rol da infâmia. Pode viver-se assim num País cujos governantes não sabem acautelar as mais rudimentares normas de cidadania? Há anos. Nos tempos do fascismo, um grande jornalista português, Mário Ventura, já infelizmente desaparecido, fez o levantamento das nossas desgraças, assinando uma longa reportagem, "Viver e Morrer em Portugal", que, na época, causou grande sobressalto emocional. Em suma: Mário Ventura dizia-nos que gerações inteiras fugiam para o estrangeiro, por impossibilidade de existirem, aqui, com um mínimo de dignidade. Atribuíamos ao regime grande fatia dessa tragédia. E era verdade. Agora, porém, a quem assacar as culpas?
Vamos escrevendo sobre o assunto, alguns jornais (não todos, não todos) publicam reportagens dessa miserável condição de ser, mas parece que ninguém ouve, que ninguém está interessado em resolver o problema, que ninguém demonstra o mínimo interesse. Uma questão a esquecer. Porém, fazendo ilações aritméticas simples, verificamos que, pelo menos, há um milhão e meio de portugueses que sofrem, directa e indirectamente, este infortúnio.
Banalizámos a dor dos outros, ignorando que, mais tarde ou mais cedo, a dor tocará no batente da nossa porta.
Saúde-se o "Público" por ter alargado a primeira página (não se diz "capa", "capa" é de revista; diz-se "primeira página", a montra do jornal) a este magno acontecimento e, por uma vez, ter colocado em outro degrau as escutas, as corrupções, a cobiça e a cupidez daqueles que foram educados para isso.
Não é que estes problemas sejam desimportantes. Não. Mas eles são decorrentes uns dos outros, e há uma parcela deles que explica e determina o desemprego, o fechamento de fábricas e empresas. A impunidade com que sobrevivem parasitas, corruptos e corruptores, "patrões" sem qualificação mas qualificados para a prática das mais vis malandrices - chega a ser inquietante. E ninguém vai parar à cadeia.
Escrevi, em outro jornal, que a nossa sociedade está a desmoronar-se e ninguém lhe acode. Os laços sociais estão a desaparecer, substituídos por um sistema de valores em que impera a vacuidade, o poder da "competitividade" como força motriz - e não é. Há tempo para tudo, diz o Eclesiastes. Mas a verdade é que os "tempos" foram pulverizados pela urgência de não se sabe bem o quê. A frase mais comum que ouvimos é: "Não tenho tempo para"; para quê? A correria mina as relações de civismo e de civilidade; está a roer os alicerces da família; a família deixou de ser o núcleo das nossas próprias defesas; e vamos perdendo o rasto dos nossos filhos, dos nossos amigos, dos nossos camaradas, dos nossos companheiros. A azáfama nos locais de trabalho é o sinal das nossas fragilidades e dos nossos medos. Estamos com medo de tudo, inclusive de confiar em quem, ainda não há muito, seríamos capazes de confidenciar o impensável.
O medo instalou-se na sociedade portuguesa. Era atávico: a Inquisição tratou de nos emascular e o salazarismo continuou a tarefa. Mas, enfim, veio Abril e nós a pensar, como diz o outro, que mandávamos "nisto." A festa durou pouco. Estamos, de novo, cercados; e, desta vez, o cerco é "democrático." Temos medo de constituir família, medo de ter filhos, medo de ir para o emprego e o emprego já lá não estar. Isto não tem nada a ver com essa patetice da "asfixia democrática", da dr.ª Ferreira Leite, onzenada pelo Pacheco Pereira. Ou, se tem, nasceu com os dez anos de cavaquismo e com o culto criptofascista da juventude pela juventude, que conduziu ao saneamento dos melhores quadros nas empresas e à remoção de grandes jornalistas substituídos por gente "de confiança."
É cada vez mais necessário analisar as razões fundas do estado a que Portugal chegou. E não há inocentes. O rancor e o ressentimento não são, apenas, produtos das injustiças sociais. São-no, também, resultados do medo.


Artigo de opinião de Baptista-Bastos, publicado no Jornal de Negócios, em 20 de Novembro de 2009

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