"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
A pessoa humana na filosofia boeciana e seus reflexos posteriores
Boécio, 480-524 a.c., lançou aquele que seria considerado o primeiro e clássico conceito de pessoa humana, que ele assim precisou: “persona proprie dicitur naturae rationalis individua substantia”, ou seja, propriamente, diz-se pessoa a substância individual de natureza racional. Ou, ainda, como também disse Boécio, sem lançar qualquer alteração significativa no conceito, pessoa é “rationalis naturae individua substantia incommunicabilis”, isto é, substância indivídua e incomunicável de natureza racional.
Boécio, Anício Mânlio Severino Boécio, foi um homem de cultura enciclopédica e buscou elaborar uma filosofia romanizada, tendo sido conhecido como o último filósofo romano e o primeiro escolástico. (MONDIM, 1981, p. 151-153). Conhecedor da língua grega, teria sido o último a desfrutar do contacto directo com as obras de Platão e Aristóteles, fazendo com que o conhecimento do mundo antigo chegasse aos pósteros. (HAMLYN, 2003, p. 116). Ele foi o veículo mais expressivo de transmissão da cultura greco-romano ao Ocidente até o século XII, cabendo ainda observar que sua força filosófica foi memorável e seus escritos estimados na medievalidade. (FRAILE, 1956, p. 796).
A antropologia filosófica boeciana é um dos aspectos de seu pensamento que mostra a expressividade de suas reflexões, sobretudo, na formulação daquele que se tornaria um dos conceitos paradigmáticos de pessoa humana, o qual influenciaria os debates posteriores e, além disso, se fixaria na base das discussões ético-jurídicas contemporâneas em torno desse conceito. Foi sobre esse conceito que se deflagrou a elaboração do princípio da igualdade essencial de todo ser humano, não obstante as diferenças individuais e grupais, de ordem biológica ou cultural. (COMPARATO, 1999, p. 19).
Essa fundamentação dos direitos humanos remete também a outra reflexão, a qual faz pensá-los como direitos essenciais para a preservação da dignidade de todo ser humano. Trata-se de um libelo contra a banalização do mal e da própria intolerância, temas que se associam à indesejada união do poder com a violência, junção esta que tem enorme capacidade instrumentalizadora e é apta a colocar em risco ou mesmo aniquilar o ser humano em sua dignidade. (ARENDT, 2001, p. 35-59). Esse poder violento não conhece limites às deformações da natureza humana e da dignidade que lhe é própria. (LAFER, 1988, p. 8).
Talvez, não seja por outra razão que, ao traçar-se as grandes etapas históricas na afirmação dos direitos humanos, haja um retorno à chamada proto-história, iniciada na baixa medievalidade, até se chegar à evolução desses direitos, após a Segunda Guerra Mundial, com as declarações todas que foram e continuam sendo firmadas, ao longo dos tempos, até aos dias actuais. (COMPARATO, 1999, p. 33-55). E, quiçá, não seja também outro o motivo pelo qual se fala de uma era dos direitos humanos, não obstante a advertência de que já não basta declará-los, sendo necessário empreender todos os esforços para torná-los efectivos. (BOBBIO, 1992, p. 24).
De qualquer modo, é preciso notar que esses chamados direitos humanos regem-se por um princípio fundamental: o da complementariedade solidária, declarado de forma solene na Conferência Mundial de Direitos Humanos, em Viena (1993). Por esse princípio, firma-se a ideia crucial de que todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, cabendo aos Estados, independentemente de seus sistemas políticos, económicos e culturais, protegê-los e promovê-los a todos os seres humanos. A justificativa desse princípio está no postulado ontológico de que a essência do ser humano, em sua dignidade, é uma só, ainda que sejam múltiplas as diferenças individuais e sociais, biológicas e culturais, existentes na humanidade. Assim, ao se abordar a questão da própria democracia e da dignidade humana, a partir de uma ontologia do ser humano, vale dizer, de uma antropologia filosófica de matriz ontológica, percebe-se que esse tema comporta mesmo duplo enfoque: o histórico e o filosófico. O enfoque histórico remonta ao processo de formação do Estado de Direito, cuja origem deve ser buscada na constituição das monarquias nacionais européias, a partir do século XII. O filosófico discute a relação entre o modelo democrático e a sociedade política, interrogando-se sobre a idéia de melhor constituição. Entretanto, não se limita a isso. Ele também remete à inevitável relação entre a liberdade humana e o exercício do poder, tendo-se como referenciais os chamados direitos humanos e aquele pressuposto antropológico-filosófico que lhes dá sustentação: a dignidade da pessoa humana, como ser livre e racional, dotado de corpo, alma e espírito. (VAZ, 2002, p. 353-366).
Marcius Nadur,in "O SER HUMANO E SUA SINGULARIDADE COMO PESSOA"
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