"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
LE CLEZIO - "A Música da Fome "
" A Música da Fome "
Tipo : Romance
Autor: J.M.G. Le Clézio
Título original: Ritournelle de la Faim
Tradutor: Isabel St. Aubyn
Editora: Dom Quixote
N.º de páginas: 188
ISBN: 978-972-20-3825-6
Ano de publicação: 2009
Publicado pela Gallimard em Outubro de 2008, poucos dias antes da atribuição do Prémio Nobel de Literatura ao seu autor, este romance de J.M.G. Le Clézio vem de certa forma validar, se necessário fosse, a escolha da Academia Sueca. É um livro sólido, de escrita impecável, sem empertigamentos, sem pirotecnias, uma obra serena, com a textura e o ritmo certo dos clássicos. Um exemplo perfeito do que esperamos de um grande escritor no auge da sua carreira, quando já não precisa de provar nada a ninguém.
Para a personagem central, Ethel Brun, Le Clézio inspirou-se na sua própria mãe – «uma jovem que, involuntariamente, foi uma heroína aos vinte anos» – mas os traços autobiográficos da narrativa são ténues. Mais do que a história da sua família, originária da Ilha Maurícia como os Brun, o que o autor pretende recuperar são as marcas (palavras soltas, atmosferas, angústias difusas) de um tempo a cujo estertor ainda assistiu em criança. A ruína familiar é aqui metáfora da ruína da História, das feridas da guerra e de uma fome que foi literal, antes de ser simbólica: «Esta fome está dentro de mim. (…) Contém uma luz intensa que me impede de esquecer a infância. Sem ela, não teria com certeza conservado a memória desses tempos, desses anos tão longos, em que nos faltava tudo.»
A penúria absoluta é o que Ethel e os pais encontram, quase no fim do romance, em Nice (a «cidade de opereta» em que Le Clézio nasceu, em Abril de 1940). Mas antes disso há o relato minucioso da «queda» dos Brun, uma derrocada lenta que começa ainda nos tempos áureos da «amnésia tranquila e sem consequências», ao som das colheres minúsculas a tinir nas chávenas de porcelana, em tertúlias de domingo nas quais o nome de Hitler começava a ser soletrado, espalhando «uma espécie de veneno», capaz de corroer «tudo em volta, os rostos, os corações, e mesmo o papel pintado do apartamento» burguês da rue du Contentin.
Ethel cresceu numa redoma, algo distante dos progenitores (consumidos por atritos conjugais) mas pertíssimo dos seus focos afectivos: o tio-avô Soliman, antigo médico militar em África, que sonhava reconstruir para si o pavilhão que a Índia Francesa levou à Exposição Colonial de 1931; a amiga Xénia Chavirov, exilada após a revolução bolchevique, rapariga extrovertida que no cinzento de Paris «era uma mancha loura, um clarão»; e Laurent Feld, um inglês ruivo, honesto, que virá a ser o seu primeiro amor, a principal esperança, o futuro marido.
A morte de Soliman desencadeia a «engrenagem» da desgraça, que a inépcia do pai para os negócios apenas acentua e acelera. Enquanto o anti-semitismo cresce nas ruas, a família afunda-se. E será Ethel, obrigada a sair, à força, da infância que não chegou a viver para a dureza da idade adulta, quem levará a bom porto a «jangada de náufragos» familiar, que o «vento da realidade» empurrou para o «vazio vertiginoso da derrota».
Embora não seja discernível uma estrutura musical evidente, há linhas melódicas que se propagam através do livro, com uma certa cadência, uma certa entoação, repetindo-se aqui e ali como um retornelo (não por acaso, o título original é Ritournelle de la Faim). Também não por acaso, o único momento histórico em que Ethel e a verdadeira mãe do autor coincidem é a estreia do Bolero de Ravel. Essa peça que parece «uma profecia» e leva os instrumentos até aos seus limites, «até à estrangulação, até quebrarem as cordas e as vozes, até quebrarem o egoísta silêncio do mundo». O mesmo efeito que Le Clézio, com menos violência e menos estrépito, acaba por conseguir neste romance belíssimo, melancólico mas nunca resignado.
Avaliação: 9/10
[Texto publicado no suplemento Actual, do semanário Expresso]
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