quinta-feira, 30 de julho de 2020

E se lhe trouxer flores

Aprenda que não importa em quantos pedaços foi partido o seu coração, o mundo não pára para que o possa consertar. Aprenda que o tempo não é algo que possa voltar. Portanto, plante o  seu jardim e decore a sua alma, em vez de esperar que alguém lhe traga flores.
                                                          William Shakespeare

Quer a dança quer a música são bons adornos para qualquer jardim. São estas flores que lhe trazemos.
O grande coreógrafo francês Maurice Béjart coreografou a música do famoso compositor grego Mikis Theodorakis, " Danses Grècques". A companhia Ballet du XXe Siècle ou Béjart Ballet Lausanne, fundada, em 1987, em Lausanne ( Suíça) por Maurice Béjart,  apresentou este espectáculo de ballet no dia 19 Junho de 2014, no Versailles Festival, que, pela quarta vez, abriu com um tributo à obra deste extraordinário coreógrafo.

TRACKLIST:
01. ΣΤΑ ΠΕΡΒΟΛΙΑ (In the orchards) - 00:59
02. ΠΑΡΑΠΟΝΟ (Complaint) - 07:21
03. ΡΟΔΙΑ ΤΕΤΡΑΚΛΩΝΗ (Pomegrenate tree) - 10:26
04. ΝΑ ΄ΧΑΤ'ΑΘΑΝΑΤΟ ΝΕΡΟ (If I only had the water of eternal life) - 13:30
05. ΗΣΟΥΝ ΚΑΛΟΣ (You were good) - 17:08
06. ΣΑΒΒΑΤΟΒΡΑΔΟ (Saturday night) - 20:44
07. ΔΙΟΤΙ ΔΕΝ ΣΥΝΕΜΟΡΦΩΘΗΝ (Because I did not conform) - 25:06
08. ΚΛΕΙΣ' ΤΟ ΠΑΡΑΘΥΡΟ (Close the window

©Label and Copyright:Wahoo Production
MezzoChâteau de Versailles Spectacles
Foundation Maurice Béjart, Foundation Béjart Ballet Lausanne

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Booker Prize 2020

A longlist do Booker Prize 2020
"Já se conhecem os primeiros nomeados para o Booker Prize de 2020. A longlist do principal prémio de ficção em língua inglesa foi revelada online durante os primeiros minutos desta terça-feira, 28 de Julho. A lista inclui Hilary Mantel, apontada como uma das candidatas mais prováveis (a integrar a lista mas também a ganhar o Booker pela terceira vez), mas não o de Ali Smith, outra favorita. O número de escritores britânicos é, este ano, relativamente diminuto — são apenas três em 13, Mantel incluída — e são muitas as estreias.
Pelo contrário, os autores de nacionalidade norte-americana estão em grande maioria (nove dos 13 romances selecionados), o que poderá significar um regresso às vitórias americanas e uma derrota para Mantel e para o volume final da trilogia sobre Thomas Cromwell, The Mirror The Light. Depois de o Booker Prize ter mudado as regras para incluir escritores de língua inglesa outras nacionalidades que tenham obra publicada no Reino Unido, o prémio já foi atribuído duas vezes a norte-americanos — a Paul Beatty, por The Sellout, e a George Saunders, por Lincoln in the Bardo, em 2016 e 2017, respectivamente.
Em comunicado, o director literário da Booker Prize Foundation, Gaby Wood, referiu-se precisamente à predominância dos estreantes (mais de metade da lista), considerando ser “uma proporção alta pouco comum e especialmente surpreendente para os próprios jurados, que admiraram muitos livros de autores mais estabelecidos e que tiveram de os deixar ir”. “É talvez óbvio que histórias poderosas podem surgir de lugares inesperados e sob formas inesperadas; no entanto, esta lista caleidoscópica serve como lembrete”, afirmou.
Margaret Busby, presidente do júri do Booker Prize 2020, admitiu que cada um dos romances deixou “um impacto” nos jurados “que conquistou um lugar na longlist“, apontando que os livros escolhidos estão atentos à história, têm “personagens memoráveis” e representam “um momento de mudança cultural ou as pressões que um indivíduo enfrenta numa sociedade pré ou pós-distópica”.
“Alguns dos livros concentram-se nas relações interpessoais que são complexas, com diferentes nuances e emocionalmente carregadas. Existem vozes das minorias que não são ouvidas, histórias que são frescas, arriscadas e absorventes”, afirmou. “A melhor ficção permite ao leitor relacionar-se com a vida das outras pessoas; partilhar experiências que nunca imaginámos é tão poderoso como ser capaz de nos identificarmos com as personagens.
Os 13 romances que compõem a longlist de 2020 são:
  1. The New Wilderness, Diane Cook (EUA). Oneworld Publications;
  2. This Mournable Body, Tsitsi Dangarembga (Zimbabué). Faber & Faber;
  3. Burnt Sugar, Avni Doshi (EUA). Hamish Hamilton, Penguin Random House;
  4. Who They Was, Gabriel Krauze (Reino Unido). 4th Estate, HarperCollins;
  5. The Mirror & The Light, Hilary Mantel (Reino Unido). 4th Estate, HarperCollins;
  6. Apeirogon, Colum McCann (Irlanda/EUA). Bloomsbury Publishing;
  7. The Shadow King, Maaza Mengiste (Etiópia/EUA). Canongate Books;
  8. Such a Fun Age, Kiley Reid (EUA). Bloomsbury Circus, Bloomsbury Publishing;
  9. Real Life, Brandon Taylor (EUA). Originals, Daunt Books Publishing;
  10. Redhead by The Side of The Road, Anne Tyler (EUA). Chatto & Windus, Vintage;
  11. Shuggie Bain, Douglas Stuart (Escócia/EUA). Picador, Pan Macmillan;
  12. Love and Other Thought Experiments, Sophie Ward (Reino Unido). Corsair, Little, Brown;
  13. How Much of These Hills is Gold, C Pam Zhang (EUA). Virago, Little, Brown.
O júri da edição deste ano do Booker inclui, além da presidente, a editora Margaret Busby, os escritores Lee Child, Lemn Sissay, o jornalista Sameer Rahim e a classicista e tradutora Emily Wilson. A shortlist dos seis romances finalistas ao Booker Prize de 2020 será anunciada também online a 15 de Setembro e o grande vencedor, como é costume, em Outubro, no dia 27." Rita Cipriano, em Jornal Observador

terça-feira, 28 de julho de 2020

Sobre os inéditos de Mário de Sá -Carneiro

A revista do jornal Expresso de 10.07.2020 anunciava a descoberta da mala do poeta  Mário de Sá-Carneiro.
Perante este importante acontecimento, Teresa Rita Lopes ,em entrevista ao Jornal i, teceu fundamentadas  considerações  que contrariam este  anunciado achado. 
Teresa Rita Lopes é a  investigadora  mais classificada  sobre a obra de Fernando Pessoa. Dedicou-lhe uma vida inteira de pesquisa e intenso labor , impondo-se pelo seu profundo  conhecimento como a voz maior desse nosso grande bardo.
Poetisa, dramaturga, investigadora literária e ensaísta , nasceu em Faro em 1937. A sua vida  estendeu-se entre  Lisboa, Algarve e Paris,  cidade onde se exilou, em 1963 , para fugir às garras da  PIDE de Salazar.
Licenciada em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, doutorou-se em Paris com uma tese sobre Fernando Pessoa. Leccionou literatura portuguesa na Sorbonne. Regressou a Portugal depois do 25 de Abril de 1974, tendo participado na fundação da Universidade Nova de Lisboa, onde foi Professora Catedrática de Literaturas Comparadas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Colabora regularmente em diversos jornais e revistas: Jornal de Letras, Colóquio/Letras, Vértice, Magazine Littéraire, etc. Obteve vários prémios com os seus livros de poesia e os seus ensaios. Como especialista em Fernando Pessoa, tem publicado múltiplos e diversos trabalhos e inéditos do poeta, entregando-se à  organização de edições críticas da  sua obra e promovendo exposições internacionais sobre a mesma. Iniciou a sua própria produção literária com a peça Três Fósforos (1961), a que se seguiram várias outras. Algumas delas, levadas à cena em Portugal e no estrangeiro, permanecem ainda inéditas. No entanto, "a poesia é, indiscutivelmente, o seu domínio de eleição", e a ela tem dedicado muito do seu talento  criativo. Autora premiada é a mais relevante e habilitada  especialista de Fernando Pessoa.
Eis a entrevista ao Jornal i:
Teresa Rita Lopes. “Nada do que o Expresso apresentou pode ter saído da mítica mala de Mário de Sá-Carneiro.”
por Teresa Carvalho, Jornal i
"O Expresso fez a capa e a folia prometendo ter desvendado o último grande mistério do modernismo português: tinham achado a mítica mala de Mário de Sá-Carneiro, atolada de documentos valiosíssimos! Acontece que a montanha pariu um rato, e mesmo o rato cheirava a golpe. Teresa Rita Lopes põe tudo em pratos limpos.
Teresa Rita Lopes é um nome de forte ressonância para todos os que se interessam pela figura e pela obra de Fernando Pessoa, que fica a dever-lhe boa parte da sua longa e póstuma vida editorial. Sem os seus gestos dinâmicos, o espólio do poeta dos heterónimos poderia estar a morar hoje entre paredes britânicas. Foi por pouco. A ela se devem também alguns dos melhores ensaios que sobre a obra de Pessoa e a de Mário de Sá-Carneiro se produziram. A destacadíssima investigadora, “mulher de esquerda interior”, continua atenta. E não lhe passou ao lado o penúltimo número da Revista do Expresso, que fez capa da história dos papéis que o poeta Mário de Sá-Carneiro teria deixado numa mala, em Paris, no quarto de hotel em que se suicidou a 26 de Abril de 1916 com cinco frascos de estricnina.
A grande descoberta do Expresso aponta para inéditos de Sá-Carneiro, saídos da famosa mala nunca recuperada, e agora aparecidos em lugar improvável – o espólio de Aquilino Ribeiro, que se encontrava na capital francesa nos anos que foram conduzindo Sá-Carneiro ao desfecho fatal. Na opinião de Teresa Rita Lopes, é caso para dizer que a montanha de “emaranhada prosa” publicada naquele semanário pariu um rato, sem pernas para andar, inválido.
Debaixo das fugazes luzes da ribalta cultural, acima da literatura, alvo da curiosidade dos leitores que, vendo agitar-se num jornal a mítica mala perdida, correram a comprar a Revista do Expresso. Assim nos surgiu há dias o poeta de “Indícios de Oiro”. O ruído poderia ser interpretado como o regresso a um tempo em que o debate literário era fundamental, mas na verdade vem comprovar o contrário: a perda da centralidade da coisa literária no discurso cultural, entretanto substituída pelo culto da personalidade literária e pelo fetiche, no seu sentido literal – a substituição de um todo por uma parte simbólica; no caso, a mítica mala de Mário de Sá-Carneiro.

Quando é que chegou ao espólio de Fernando Pessoa?
No início de 1970, quando pude vir a Portugal, aproveitando a queda de Salazar (da cadeira ou na banheira) e a consequente primavera marcelista. Estava desde Novembro de 63 exilada em Paris, fugida à PIDE. O Espólio estava a ser inventariado por bibliotecárias designadas para o efeito, em casa da irmã de Pessoa, onde se encontrava a célebre Arca. Uma teósofa, poeta também, que conheci então porque consultei a biblioteca do Centro de Teosofia de Lisboa, Beatriz Serpa Branco, quando lhe contei o meu (casual) papel na manutenção da Arca em Portugal, disse-me, abrindo muito os olhos, que Pessoa me tinha incumbido de lhe preservar o espólio. Ri-me mas nunca mais me esqueci desse vaticínio – que se tornou uma responsabilidade.

Logo a partir daí?
É que lhe contei que, um dia em que fui à Biblioteca do Centro da Gulbenkian, em Paris, soube pelo seu director, o Prof. Veríssimo Serrão, que o espólio pessoano ia ser vendido para Inglaterra! Num terramoto mental, falei com o António José Saraiva, também lá exilado, por sorte irmão do então ministro da Educação José Hermano Saraiva – irmãos muito amigos embora ideologicamente opostos – que, posto ao corrente, mandou imediatamente arrolar o dito espólio, impedindo-o assim de sair de Portugal. Posteriormente, o José Hermano falou disso num dos seus programas televisivos e, com medo que o não acreditassem, acrescentou: “Perguntem à Teresa Rita!” Aqui estou a confirmar gostosamente: foi graças a essa medida que o espólio cá ficou. A família de Pessoa também me confirmou que essa transacção esteve iminente.

E o que aconteceu depois?
Na sequência dessa iniciativa do José Hermano Saraiva, três ou quatro bibliotecárias foram para a casa da irmã de Pessoa tentar catalogar os 27 mil e tal papéis que constituem o espólio. Vim então de propósito a Lisboa, depois de sete anos de exílio, e fui autorizada pelo então ministro Veiga Simão a frequentar esse templo. As pobres bibliotecárias empunhavam os papéis soltos que maioritariamente o constituem, liam-nos em voz alta, e concluíam, desalentadas, sem saber como os catalogar: “O homem era mesmo doido!” Arrumaram-nos em dossiês, com vagos títulos, pelo que, para encontrar o que quer que seja e refazer qualquer conjunto, é preciso percorrê-los a todos, um por um! Mas preservaram-nos – valha-nos isso!

Como é que foram os primeiros contactos com a irmã de Pessoa?
A Sra Dona Henriqueta Madalena era uma senhora delicadíssima, encantadora, que me dizia enternecidamente: “Quem havia de dizer que o Fernando viria a ser tão importante!” – desculpando-se de não terem guardado as cartas que ele regularmente escreveu à Mãe para a África do Sul, desde o seu regresso a Portugal, em 1905, até ao dela, em 1919.

E as dificuldades nesse tempo, eram mais que muitas?
Tive que comprar uma máquina de fotocopiar – uma bisarma, nessa altura – que funcionava em duas etapas: primeiro fazia-se um negativo que, posteriormente, se imprimia. E só estava autorizada a fotocopiar as partes do espólio em relação com a minha tese de doutoramento em curso, na Sorbonne, “Fernando Pessoa et le drame symboliste: héritage et création”, mais tarde publicada, cá e em Paris, com esse título. Todas essas fotocópias se desvaneceram com o tempo. Depois, já em Portugal (para onde vim definitivamente em 1976), continuei a frequentar o espólio, já na B.N., mas ainda directamente os dossiês do material autógrafo. Os microfilmes só apareceram muito mais tarde! O problema-mor então levantado pela abordagem do espólio é o mesmo, então e agora (comodidade à parte de dispor hoje do material microfilmado): 1º: ler a caligrafia do Pessoa, por vezes só adivinhável; 2º: identificar o texto, normalmente em folhas soltas, e integrá-lo no seu conjunto. Quando aparece um texto dactilografado é uma festa! Acontece que Pessoa nunca teve dinheiro para comprar uma máquina: usava as dos escritórios onde trabalhava, enquanto lá estava. A que, nas exposições, mostram como sua era do escritório do seu principal empregador, Moitinho de Almeida.

Quando é que foi a última verdadeira descoberta sobre Pessoa e os seus papéis?
A última ainda deve estar por vir! Não me canso desse rapaz porque continua a surpreender-me.

Pessoa faz algumas aparições no seu muito povoado universo poético. Da leitura da totalidade dos poemas que acolhem Pessoa, fica a sensação de que ele é uma espécie de sujeito de culpa, quer da sua tardia revelação poética, quer da intermitência com que os seus livros de poemas têm vindo a público. Pessoa é, aliás, responsabilizado pelo facto de as suas próprias arcas, com muitos inéditos sequer passados a limpo, terem ficado encostadas por causa da Arca. Pessoa deu-lhe cabo da vida poética?
Não farei como as velhas esposas que dizem ou pensam que desperdiçaram a vida com alguém que as não mereceu. Até porque ele – o meu “ele”! –  me incita a editar e reeditar todos os textos escritos ao longo da minha já longa vida: dele, sobre ele, e meus, somente meus. É o que vou fazer!

Se calhar, brincando, brincando, levei mesmo a sério a tal teósofa que me quis convencer que o Pessoa se tinha servido de mim para fazer com que o seu espólio se conservasse em Portugal. A verdade é que constato que tenho atendido, na vida, primeiro às obrigações e só depois às devoções – e Pessoa, Sá-Carneiro e arredores orfeicos tornaram-se a minha fulcral “obrigação”. Antes de ser pessoana e de partir para o exílio, Pessoa era apenas uma ocasional paixão: era conhecida como autora de peças, representadas e sobretudo proibidas (no Teatro Nacional, em 1962), e também de poemas, nas páginas literárias dos jornais e em colectâneas várias (“Poesia e Tempo”, em 61, com Ramos Rosa e outros do tempo). A “Poesia de cada dia”, como vou chamar à minha “poesia reunida” (que vou editar assim que o Vírus Coroado deixar) foi sempre, ao longo de toda a vida, o diário que nunca escrevi. E os diários a valer não se publicam: não faço esse streap-tease…
Como era a relação entre Pessoa e Sá-Carneiro?
Quando se fala de Sá-Carneiro, Pessoa vem logo à baila: “Ah, o amigo de Pessoa!” Tenho-me manifestado longamente sobre essa relação, essencial para entender Pessoa, que teria sido outro se esse amigo não lhe tivesse acontecido na vida. Para já, Álvaro de Campos não teria nascido: foi para mostrar ao amigo que era capaz de ser mais futurista que os futuristas que lhe enviou, em junho de 1914, a “Ode Triunfal”, logo por ele considerada a obra-prima dessa escola, então na berra, que tinha escolhido Paris para se manifestar. Também o Caeiro, nunca olhado por esse ângulo, foi criado para fazer poemas modernos, até futuristas, como constam numa lista de títulos, que em seguida passou a Campos, depois de o ter inventado, só 3 meses mais tarde (não no mesmo “dia triunfal” como Pessoa fez crer). O facto de ter feito o horóscopo do Orpheu harmonizando os de ambos exprime bem essa interaccção. A obra poética de ambos foi-se manifestando em diálogo, através das cartas trocadas: Sá-Carneiro dizia, no início, considerar-se apenas um novelista e Pessoa tinha-se estreado, na “Águia”, como crítico – o amigo instava-o para que se revelasse o poeta que era.

A história literária chega a apresentar Sá-Carneiro como um epígono de Pessoa...
Não foi, não senhor. Sem o empurrão de Sá-Carneiro, quem sabe se o Pessoa não teria continuado amalhado sob as asas da Águia, nacionalista e saudosista, admirador de Pascoais e Junqueiro! É Sá-Carneiro que o afasta deles: considera-os dois provincianos e ri-se deles. Mal inventa Alberto Caeiro, antes do nascimento de Campos, Pessoa põe esse poeta, então futurista, a dar uma entrevista no Casino de Vigo em que mete a ridículo os seus dois anteriores mestres. Vê, são descobertas como estas que me mantêm fã do “rapaz”. Aliás, já parcialmente feitas no meu “Pessoa por Conhecer”, em1990.

Visto assim, então Pessoa é que sofreu a influência de Sá-Carneiro?
Sim, não no estilo, cada um tem o seu, mas nas opiniões estéticas e até na aceitação dos caprichos do amigo. Aceitou-o como o menino mimado que era – escreveu, quando se suicidou: “Pobre criança!”. Pouco antes de se suicidar, Sá-Carneiro – imagine! – suplicou-lhe que fosse pedir à sua dedicada ama que lhe desse o cordão para ele pôr no prego!

E o Pessoa?
E ele assim fez, para lhe poder enviar com que pagar as suas últimas extravagâncias. “É tão belo fazer asneiras!” comenta numa dessas cartas. E pede-lhe assim desculpa depois de lhe dizer que se vai matar: “Não se zangue comigo!”

Se há suicídios rodeados de preparativos, o de Mário de Sá-Carneiro é um deles.  
O suicídio do Mário foi caso longamente pensado – isto é, preparado e encenado. Vestiu o seu melhor fato, tratou das unhas, emborcou os frascos de estricnina  e deitou-se na cama, à espera do efeito e do amigo Araújo que tinha convocado para ir ter com ele ao Hotel de Nice, a essa hora precisa. Fez tudo como se estivesse a escrever o desfecho duma novela sua. Só não contou com as tremendas cólicas que o acometeram e até o fizeram gritar por socorro. O amigo ainda tentou socorrê-lo, em vão. Não teria gostado de se ver no caixão, desfigurado, a elegante farpela estoirada por todas as costuras.

A posteridade literária, tantas vezes amnésica, também não foi deixada aos cuidados do acaso...
O que ele queria ainda publicar enviou pelo correio ao amigo Pessoa, arrecadado num caderninho - que encontrei e fotocopiei quando mergulhei no espólio, na arca, em casa da família, ainda nos anos 70. Se quisesse que mais algum texto lhe sobrevivesse, Sá-Carneiro tê-lo-ia aí incorporado ou acrescentado. Tive a intenção de fazer uma edição fac-similada desses poemas preparados para a edição de “Indícios de Oiro”, em escrita quase desenhada, mas quando ingressei na Universidade Nova, em 1976, acabei por dar cópia desse caderno ao então meu assistente, Fernando Cabral Martins, que sobre o Mário de Sá-Carneiro fez a tese de doutoramento, que dirigi e, mais tarde, uma edição dessa obra para a Assírio & Alvim.

Na arca do Pessoa havia mais alguma coisa de Mário de Sá-Carneiro?
Também nessa arca encontrei o bilhete que escreveu a Pessoa antes de emborcar a estricnina, de que o Expresso fala: “Um grande, grande abraço do seu pobre Mário de Sá-Carneiro” –  deixado bem à vista do amigo que convocou para assistir à sua agonia e fazer esses recados. Publiquei-o pela primeira vez na exposição pessoana que organizei em 1981, na Fundação March, em Madrid, e foi, depois, itinerante por toda a Espanha: “F. Pessoa, el eterno viajero” (título também do catálogo). A seguir, em 1983, viajou pelo Brasil: traduzi o título da exposição e do catálogo para “ F.P. Hóspede e Peregrino”.

E Portugal, não teve direito a essa exposição?
O Vasco Graça Moura, então à frente da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, impediu que a exposição fosse feita em Portugal para não ofuscar a edição da “Fotobiografia” de F.P., da sua amiga M.ª José de Lencastre então publicada, por sinal elaborada com material recolhido por mim directamente na arca e a ela fornecido clandestinamente pelo fotógrafo José Fabião que o Instituto Português do Livro tinha posto ao meu serviço para fotografar o material da arca, a usar na exposição e no respectivo catálogo… No comment!

No seu penúltimo número, a Revista do Expresso agitou a famosa mala perdida de Mário de Sá-Carneiro e diz que, afinal, nem tudo é perdido. Há papéis agora aparecidos no espólio de Aquilino Ribeiro. Como é que lá terão ido parar?
Não importa saber quem confiou essas peças a Aquilino, alguém lhas deu, é tudo! É apenas evidente que nada disso poderia ter saído da mítica mala. Da mesma forma que se vestiu elegantemente e até tratou das unhas e do cabelo antes de se estender na cama a esperar pelo efeito da estricnina, Sá-Carneiro cuidou da apresentação para a posteridade de toda a sua obra. Só não teve tempo de publicar o seu segundo livro de poemas, “Indícios de Oiro”, que para isso enviou, pelo correio, a Pessoa, pouco antes do agendado suicídio, prontinho para publicação. Se quisesse que algo mais lhe sobrevivesse, tê-lo-ia igualmente confiado a Pessoa, até pelo mesmo correio.


Então, nada do que estava no interior da famosa mala pode ter reaparecido no espólio de Aquilino Ribeiro, como diz o Expresso?
Os documentos relacionados com Mário de Sá-Carneiro que agora apareceram no espólio de Aquilino não estavam certamente na célebre mala, retida em Paris, no Hotel de Nice, pelo respectivo gerente que reclamava o pagamento da conta em dívida. O articulista do Expresso [João MCDonald] embandeirou em arco afirmando que “este espólio é uma evidência material que acresce à tese de o contido na mala não ter desaparecido na totalidade”. Acontece que as peças por ele aí apresentadas é que são a própria “evidência material” de que não podem ter pertencido ao dito espólio." 
Teresa Carvalho, Jornal i , 20.07.2020
Leia  a entrevista completa  AQUI 

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Amigos sinceros

Uma amizade sincera 
por Clarice Lispector
"Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seu amores. Experimentávamos ficar calados – mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes.
Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto – eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco. Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou. 
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incómoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando pistolões para o meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade – posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura – seja dito de passagem, com vitória nossa – continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separámo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros."
Clarice Lispector, in "Todos os Contos", Relógio D'Água Editores, Lisboa, Março de 2016, pp.277-279


Algumas notas biográficas
Este conto, publicado em 1971, integra o livro  A Legião Estrangeira, juntamente com outros  contos da autora. 
Clarice Lispector nasceu a 10 de Dezembro de 1920 na Ucrânia e morreu a 9 de Dezembro de 1977, no Rio de Janeiro. Os pais eram judeus e o seu nome de baptismo Chaya Lispector. Foi para fugir à devastação da guerra civil que os Lispectors emigraram para o Brasil em 1922, fixando-se primeiro em Maceió e depois no Recife, seguindo-se o Rio de Janeiro. Naturalizou-se brasileira , tendo concluído  o curso de Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além de grande ficcionista foi  tradutora, ensaísta, cronista e jornalista. Dominava  sete línguas, mas como tradutora trabalhava 'apenas' com o inglês, espanhol e francês. A sua obra está  traduzida para lá de dez  idiomas.

domingo, 26 de julho de 2020

Ao Domingo Há Música

O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis. 
                                                        Fernando Pessoa

São  esses momentos que   nos trazem aqui e agora. Momentos vividos  que se tornaram inesquecíveis  porque ficaram únicos, quando aconteceram . E porque são  também inexplicáveis , fomos retomá-los em nova edição para que todos nós os possamos reapreender.
Os incomparáveis  Pink Floyd , em  The Great Gig In The Sky , do Álbum Pulse .

Filmado ao vivo em 20 de Outubro de 1994,  em Earls Court, London, UK. Remasterizado e editado  do original,em  2019, em Pink Floyd's 'The Later Years'  Esta nova edição é composta por 18 discos (5xCDs, 6xBlu-Rays, 5xDVDs,2x7”), abrangendo o  material composto por  David Gilmour, Nick Mason e  Richard Wright,  desde  1987.
Licenciado ao YouTube por LatinAutor - PeerMusic, LatinAutor,

Pink Floyd, em  Comfortably Numb, do Álbum Pulse.
Esta canção foi remasterizada  e integra   o  Pink Floyd's 'The Later Years' , de 2019. Faz parte do   concerto de  20 Outubro de 1994, em  Earls Court, London, England. A  edição original  foi  gravada em   VHS  e posteriormente, em 1995, em  Laserdisc.
Licenciado ao YouTube por Pink Floyd (em nome de Columbia); LatinAutor - PeerMusic, ARESA, LatinAutor, UNIAO BRASILEIRA DE EDITORAS DE MUSICA - UBEM, BMI - Broadcast Music Inc., Abramus Digital, CMRRA, Pink Floyd Music Publishers, BMG Rights Management (US), LLC e 15 sociedades de direitos musicais.

sábado, 25 de julho de 2020

Viver e amar


Viver
"Onde é que eu li aquilo de um condenado à morte que no momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés – e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene -, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço de um archin, a sua vida toda, mil anos, a eternidade...preferiria viver assim do que morrer imediatamente? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver!"
Fiódor Dostoiévski , in  Crime e Castigo, Editorial Presença

O amor
"Lamento não poder dizer-lhe nada mais consolador, porque o amor vivo, em comparação com o amor sonhado, é uma coisa cruel e assustadora. O amor dos sonhos anseia por uma obra rápida, de satisfação imediata e aos olhos de todos. Aqui, é verdade, chega-se ao ponto de sacrificar a própria vida, só para que a obra não seja muito demorada, mas rápida, como no palco do teatro, e que toda a gente olhe e louve. Ora, o amor vivo é trabalho e paciência e, para alguns, toda uma ciência."
Fiódor Dostoiévski , in Os Irmãos Karamázov, Editorial Presença

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Um livro proibido


A função do leitor/2
"Eram os cinquenta anos da morte de César Vallejo e houve celebrações. Em Espanha, Júlio Vélez organizou conferências, seminários, edições e uma exposição que mostrava imagens do poeta, da sua terra, do seu tempo e da sua gente.
Mas por esses dias Júlio Vélez conheceu José Manuel Castanón; e então qualquer homenagem lhe pareceu pequena.
José Manuel Castanón fora capitão na guerra espanhola.
Lutando por  Franco, perdera uma mão e ganhara algumas medalhas.
Uma noite, pouco depois da guerra, o capitão descobriu, por acaso,um livro proibido. Espreitou, leu um verso, leu dois versos, e  já não conseguiu libertar-se. O capitão Castañón, herói do exército vencedor, passou a noite acordado, preso a ler e a reler César Vallejo, poeta  dos vencidos. E no amanhecer dessa noite, renunciou ao exército e recusou-se a receber mais uma peseta do governo de Franco.
Depois,levaram-no preso; e foi para o exílio. "
Eduardo Galeano , in O livro dos abraços, Editora Antígona, pp.15, 16

Saiba mais sobre CESAR VALLEJO

quinta-feira, 23 de julho de 2020

terça-feira, 21 de julho de 2020

Poemas para uma gatinha

OS OLHOS DO GATO
EM VERSOS DE CINCO SÍLABAS

Nos olhos de um gato
há sempre segredos
que trouxe do mato,
onde houve folguedos
e também mistérios
que não desoculta.
Percorreu impérios
onde o perigo avulta,
andou sobre os mares,
sentindo os medos
que pairam nos ares
e tecem enredos.
O gato aprendeu
o que só ele sabe
e que escondeu
antes que se acabe!
Nos gatos, os olhos
indicam saberes
que até são aos molhos,
com outros poderes.
Com os olhos, avisa,
mas só uma vez:
depois não precisa
dizer que o fez!
                            08.07.2020
Eugénio Lisboa, 
que ama os gatos mas não tem a pretensão de supor que lhes decifrou todos os mistérios!

A MINHA COMPANHEIRA ÍSIS

Cabias na palma da minha mão,
quando chegaste, naquela manhã.
Ver-te, tão pequenina, que emoção:
tu, mínima e peluda castelã!

Ficaste, logo ali, de mim cativa
e eu, cativo de ti, sem remédio,
ao ver-te tão pequena e já tão viva,
e tão arisca ao mais pequeno assédio!

Mínima promessa de tanta graça,
eras meiguice e eras travessura,
vendedora de doçura e de pirraça,

o negro e branco pelo à mistura!
És hoje um lindo tigre gracioso,
que é, embora mínimo, fogoso!
                                    13.07.2020
Eugénio Lisboa, 
que dedica este soneto à sua gatinha Ísis, em sinal de gratidão pela boa companhia que ela lhe tem feito, nestes dias sombrios.

domingo, 19 de julho de 2020

Ao Domingo Há Música


                                            A  música é a língua  das emoções
                                                                           Emmanuel Kant

                                         Sei que canto. E a canção é tudo.
                                         Tem sangue eterno a asa ritmada.
                                         E um dia sei que estarei mudo:
                                         – mais nada.
                                                 Cecília Meireles, Antologia Poética

Roubámos esta estrofe ao poema "Motivo",  de Cecília Meireles. Quer a poesia  quer a música são sempre um motivo maior para nos rendermos. E se traz consigo sonoridade de uma voz límpida e ritmada , a música expande-se   e sublima-se em  linguagem de emoções.  
Ilse de Lange & New Amsterdam Orchestra, em I still cry.
 Ilse de Lange & New Amsterdam Orchestra, em Miracle

sábado, 18 de julho de 2020

O Preconceito Linguístico

Preconceito de linguagem 
Por  António Torres
"Na Roménia, segundo dizem os jornais franceses, que agora muito se interessam por tudo quanto diz respeito aos moldo-valáquios, na Roménia há certas palavras que em todas as outras línguas cultas têm significação nobre e que entre os romenos têm significação pejorativa. Chamar, por exemplo, a algum romeno marquês, ou condessa a alguma romena, é cometer injúria e grande. Entre eles, não se diz príncipe em romaico, porque esta palavra tem a significação analógica de jogral; de sorte que adoptaram lá a palavra francesa prince, para designar qualquer membro da família real. A palavra rei também é injuriosa. Tanto assim que, na tradução do livro bíblico dos Reis, escrevem os romenos Livro dos Imperadores!
Em português há também palavras de significação primitivamente honesta e que entretanto agora não podem ser pronunciadas diante de pessoas de respeito. No norte de Minas, por exemplo, como no Norte de todo o país, chamar dama a uma senhora é arriscar a pele. Dama, lá por aquelas plagas, é “mulher perdida”.
A palavra moça pode ser pronunciada diante de quem quer que seja. “Esta menina está ficando moça” — “Sua filha é uma bela moça” — são expressões correntes. Entretanto, querendo alguém referir-se à amásia de alguém diz: “A moça de Fulano”!
Rapariga! É uma das palavras mais lindas da nossa língua. Em Minas, entretanto, rapariga aplica-se mais às mulheres do serviço doméstico, isto é, amas, cozinheiras, arrumadeiras, etc. Aqui, já vai tendo significação pejorativa: casa de raparigas é o mesmo que bordel. Ora, é um absurdo isso. Rapariga é simplesmente feminino de rapaz. Seria encantador poder toda gente dizer, como ainda há dias ouvi dizer a um espírito eminente, que me dá a honra da sua amizade: “V. não imagina que rapariga valente é a  minha mulher”.
Mãe! Não se discute a beleza desta suavíssima palavra. Pois também a palavra mãe vai assumindo significação equívoca. Em certas locuções é um vocábulo pelo menos suspeito. Os jornais já começam a substituí-lo por progenitora. É incrível! Que qualquer palavra possa derrancar com o tempo compreende-se; mas a palavra mãe? O noticiário elegante tem receio de dizer: “Faz anos hoje a Sra. Dona Fulana, muito digna mãe do nosso amigo Sr. Beltrano”. Em vez de mãe, escrevem progenitora, que é uma palavra erudita, seca, como todas as coisas eruditas, fria e pernóstica. Mãe é alguma coisa tépida, doce, nobre como o colo materno. Progenitora é simplesmente uma delicadeza de moleque bem-falante."
Mãe, colegas, mãe! Devemos escrever “a mãe do Sr. Fulano”, da mesma forma que escrevemos “O pai do Sr. Beltrano” e “o filho de Dona Sicrana”. Ninguém diz na intimidade — “vou beijar minha progenitora”, mas simplesmente — “vou beijar minha mãe”.
É para desejar que os jornais abandonem de uma vez a palavra progenitora, que é, etimologicamente, muito mais grosseira do que mãe. Progenitora compõe-se do prefixo pro e da raiz genite, de gigno, gignis, genui, genitum, gignere, que quer dizer gerar. De maneira que, posta em bom vernáculo, progenitora é a pró ou antegeradora do Sr. Fulano. Não sei onde está a delicadeza desta expressão…. Por conseguinte, de uma vez para sempre, estabeleçamos que os homens têm virtuosas e dignas mães, e não ridículas e pernósticas progenitoras." 
António Torres, em António Torres:Uma antologia, Rio de Janeiro, Topbooks, 2002, pp.153

sexta-feira, 17 de julho de 2020

A poesia e a vida

A poesia e a vida
por Edgar Morin
“Para mim, o problema da felicidade é subordinado àquilo que chamo de “O problema da poesia da vida” ou seja, a vida, a meu ver, é polarizada entre a prosa- ou seja, as coisas que fazemos por obrigação, que não nos interessam, para sobreviver e a poesia – o que nos faz florescer, o que nos faz amar, comunicar. E é isso que é importante.
Então, eu digo que o verdadeiro problema não é a felicidade – é a questão que faço a mim -, porque a felicidade é algo que depende de uma multiplicidade de condições, e eu diria mesmo que o que causa a fragilidade é frágil, porque, por exemplo, no amor de uma pessoa, se essa pessoa morre ou vai embora, cai-se da felicidade à infelicidade. Não se pode sonhar com uma felicidade contínua para a humanidade.
É impossível porque a felicidade, repito, depende de uma soma de condições. Então, por outro lado, o que se pode dizer, pode-se tentar favorecer tudo o que permita a cada um viver poeticamente a sua vida e, se  vive poeticamente  encontra momentos de felicidade, momentos de êxtase, momento de alegria e, na minha opinião, é isso.”
Edgar Morin, Revista Prosa Verso e Arte

quarta-feira, 15 de julho de 2020

A homenagem de Barbara Hendricks a Claude Nobs


Barbara Hendricks  presta homenagem a Claude Nobs, no concerto organizado no Auditorium Stravinski de Montreux, a  8  de Fevereiro de  2013. Mathias Algotsson acompanhou-a ao piano.
A  24 de Dezembro de  2012, na véspera do Natal, Claude Nobs  sofreu um acidente de ski. Mergulhando num  coma, acabou por morrer aos 76 anos,  a 10 de Janeiro de 2013, em Lausanne, Suiça. Foi fundador e director do Festival de Montreux, um dos mais importantes do mundo não só na cena do jazz, mas principalmente por ter levado, pela primeira vez à Europa, uma lista de artistas importantes de todo o mundo desde os  Estados Unidos, África, Ásia ao Brasil. Era o jovem Secretário de Turismo de Montreux, quando visitou a gravadora Atlantic, em Nova Iorque, e de lá saiu com uma ideia. Em Junho de 67, os jazzistas Keith Jarrett e Jack DeJohnette foram as principais atracções da primeira edição do que se tornou um dos maiores festivais do planeta: o Festival de Jazz de Montreux.
L'hommage du Montreux Jazz Festival:
"Cher Claude,tu nous a quitté ce jeudi 10 janvier, quelques jours après ton accident à Caux-sur-Montreux, dans ces montagnes que tu aimais tant, surplombant un lac que tu as si bien mis en valeur. Dans ton regard, il y a toujours eu cette étincelle lorsque tu surprenais les gens. Pour nous qui t'avons croisé, tu resteras celui qui a remis en question les certitudes.
Pourquoi pas? Ta question revenait sans cesse lorsque nous t'expliquions ce qui empêcherait un projet de se concrétiser. La réalité n'est jamais à la hauteur des rêves mais tu préférais les seconds. Le Festival en est la preuve la plus visible, mais pas la seule. En chacun de nous résonne cette audace, mélange d'envie et de partage, qui t'a permis de donner et de recevoir au-delà du raisonnable.
erci de nous avoir amené là où nous ne pensions pas pouvoir aller. Et comme il se doit, tu es parti par surprise pour nous rappeler que dans la vie comme dans la musique, chaque jam peut être la dernière. Tu voulais une sortie à l'image de ta vie, tu as réussi. Nous portons et porterons en nous tout ce que tu nous a appris.
Merci Claude.
Ton équipe d'hier, d'aujourd'hui et de demain.
Montreux, le 10 janvier 2013"

terça-feira, 14 de julho de 2020

Saudação a Che Guevara


Che Guevara
Saudação a Che Guevara
                                                   
No sonho da liberdade
onde cada mártir renasce,
onde não há homem sem terra
onde não há povo sem face.
Num tempo..., gesto de sangue
no sangue..., gesto de amor,
no amor de quem se deu
como um perfume de flor.
E nessa flor de montanha
aberta pro continente,
nesta beleza tamanha
na minha fé deslumbrante
tu estás, meu Comandante,
numa saudade bem clara
dos que morrem e que renascem
contigo, Ernesto Guevara.

No nosso ódio indigesto
na voz da  rebelião,
na passeata de protesto
em cada homem sem pão,
em cada cidadão livre
que é metralhado na rua,
no seio de cada greve
no salário de quem sua,
na opressão e na fome
nesse mal que nos consome
como farol claro e forte
surge tua imagem, teu nome
teu braço de guerrilheiro
teu sonho e tua verdade
nos apontando o roteiro
em busca da liberdade.

Nas pátrias negociadas
desta América sofrida,
na ditadura instalada
na terra não repartida,
em toda prisão injusta
em todo estudante morto
em cada homem sem rosto
de quem outro vive à custa.
No massacre dos mineiros
e na luta que liberta.
Nos punhos do militante
e na rubra flor do combate,
tu estás, meu Comandante.

Enquanto a noite se escorre
na garganta da ampulheta
as gerações se preparam
para a estação da colheita.
A semente está brotando                                                                
na flor da revolução
e a consciência do povo
vai tomando posição.
Tu semeaste a bom tempo
os grãos dos frutos por vir
que levados pelo vento
no estampido dos metais
brotam nos campos ao sul
das terras continentais.

Adios, adios, hasta siempre
meu imortal Comandante...
na terra há flores se abrindo
no peito a fé triunfante
no tempo um caminho aberto
e nele os homens sorrindo
num largo gesto de hermano
na busca de um mundo novo
da pátria purificada
para a alegria do povo.
                                 Curitiba, Outubro de 1968
Manoel de Andrade, in " Poemas para a Liberdade, Edição Bilíngue, Editora Escrituras, São Paulo Brasil

Nota de Livres Pensantes
Manoel de Andrade foi perseguido após a divulgação deste poema. A ditadura militar, que martirizava o Brasil,  não permitia quem saudasse Che Guevara e  ainda menos quem aspirasse  à Liberdade. Manoel de Andrade foi obrigado a abandonar o Brasil, a exilar-se e iniciar  uma longa diáspora pela América Latina.