segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Um caso de vida ou de morte

Um Prémio Salvífico
Por Eugénio Lisboa
“Os prémios literários são, com uma frequência assustadora, controversos. Mesmo os prémios mais prestigiosos – Nobel, Goncourt, Pulitzer – não fogem, muitas vezes, a mostrar preferências, no mínimo, discutíveis. De aí, o cepticismo de tantos escritores em relação a prémios literários. As razões por que eles são atribuídos mas, também, as razões por que não são atribuídos raiam, com frequência, o bizarro, para não dizer: o cómico. Bastaria, para se chegar a esta conclusão, vasculhar os arquivos, por exemplo, do Prémio Nobel e verificar as razões de atribuição  ou de não atribuição do galardão, ou, nalguns casos, a demora de anos, o arrastar de pés, até que, finalmente, embora com alguma relutância, o júri se digne conceder a renitente honraria. Os casos de André Gide e de Anatole France, entre outros, permitiriam, a este respeito, reflexões interessantes.
Talvez, por isto mesmo, os prémios, apesar do tumulto que ainda se levanta à volta deles, se tenham, ao longo do tempo, desacreditado. Ao ponto de um escritor como Jean Cocteau ter afirmado que um verdadeiro escritor tem a obrigação não só de não aceitar qualquer prémio, mas, até, de não o merecer.
Mas hoje venho aqui falar de um prémio atribuído não só com corajosa justiça, mas até, segundo a percepção do galardoado, com efeito salvífico: refiro-me ao Prémio Goncourt atribuído, em 1919, ao romance de Marcel Proust – À l’ombre des jeunes filles en fleur – publicado nesse mesmo ano.
É de todos mais ou menos conhecida a dificuldade que Marcel Proust sentiu em afirmar, aos olhos de editores e leitores, a sua obra-prima – À la recherche du temps perdu – que começou a publicar em 1913. Gide torcera o nariz ao primeiro volume do livro – Du côté de chez Swan – desencorajando Gallimard de o publicar: em grande parte, por preconceito em relação ao personagem mundano e superficial que via em Proust e talvez também por uma alegada falta de coragem deste relativamente a um homossexualismo não abertamente assumido (coragem que o próprio Gide tivera, ao publicar, contra a expressa opinião dos amigos mais chegados, o seu controverso Corydon).
O manuscrito deste primeiro volume do que viria a ser um longuíssimo “folhetim psicológico” – como Régio gostava de lhe chamar – teve má recepção de editores. O livro não era, à primeira vista, atraente: a estrutura do romance desviava-se completamente do romance bem construído do século XIX, com uma história contada com princípio, meio e fim. Era um manuscrito compacto, estranho, com períodos intermináveis, sem intervalos para respirar, quase sem diálogos ou com diálogos raros e não separadamente visíveis, antes “afundados” na massa espessa e densa do texto. O editor Fasquelle, contactado, achou por bem rejeitar liminarmente o manuscrito. Ferido e humilhado, Proust estava disposto a uma rendição completa: pagar do seu bolso as despesas da edição e fazer o editor, dono da chancela, partilhar os lucros, se os houvesse. Tinha de publicar aquilo em que apostava a sua vida e a sua imortalidade. Proust sabia que era esta, finalmente, a grande obra que trazia dentro de si, na qual estava a pôr tudo quanto  de melhor tinha para dar.Tudo o que publicara antes era, por assim dizer, irrelevante e secundário. Esta era o grande investimento da sua vida: que lhe traria a glória, se conseguisse fazer  que reparassem no livro. Mas tinha, em primeiro lugar, de o fazer publicar. Depois, tudo teria de congeminar para o impor.
O seu amigo fiel e dedicado, Louis de Robert, opôs-se firmemente à ideia de Proust pagar os custos e partilhar, mesmo assim, os lucros com o editor. Fez-lhe ver que isso traria um indesejado descrédito para si e para a obra. Mas lembrou-se de que tinha boas relações com um personagem – Humblot – que dirigia a livraria e editora Ollendorff. Contactado, Humblot prometeu ler o livro rapidamente e pronunciar-se sobre a viabilidade da sua edição. E assim o fez. A sua carta de rejeição pertence hoje à história da literatura, pelas más razões: “Caro amigo, sou talvez um burro chapado, mas não consigo compreender que um narrador possa empregar trinta páginas a descrever como se vira e revira na cama  antes de conseguir adormecer.” Mais do que uma nota de rejeição, era uma ofensa. Robert pediu-lhe que redigisse, caridosamente, uma segunda carta mais convencional e suave, que pudesse mostrar ao autor e amigo. E assim se fez, embora Proust, astuto e desconfiado não mordesse a isca.
Depois destes dois fracassos, o autor de Swan resolveu não perder mais tempo (tempo era o que menos tinha, com a asma a matá-lo lentamente) e propôs ao editor Bernard Grasset fazer publicar o livro com a chancela da casa, mas com as despesas por sua conta. Foi assim que o livro se viu finalmente publicado.
A recepção não foi brilhante, embora a obra não tenha passado completamente despercebida. Gide leria o livro já com outros olhos e faria “amende honorable”, E Gallimard passaria, a partir do segundo volume, a ser o editor de À la recherche du temps perdu.
Entretanto, meteu-se de permeio a guerra e, durante os quatro anos que ela durou, não foi possível pensar em editar a sequela de Swan. Mas, em 1918, terminada o conflito, fez-se a composição e impressão de À l’ombre des jeunes filles en fleur, que seria posto à venda em 1919.
O livro começava a impor-se, um pouco mais rapidamente que Swan, mas Proust não estava satisfeito. Tinha perfeita consciência da estranheza do seu escrito, da dificuldade de acesso que mesmo o leitor da maior boa vontade deveria sentir, diante de uma obra tão diferente, tão densa, tão interminavelmente longa e de diálogo raro e obscuramente encalhado naquela massa de texto. Tinha de arranjar maneira de fazer consagrar, de modo espectacular o seu livro. Tinha de salvá-lo de um oblívio quase certo. Precisava de angariar uma garantia de qualidade que captasse, para sempre, leitores. Pensou então no Prémio Goncourt e comunicou a Louis de Robert a sua intenção de se candidatar. Era um acto de alguma ousadia, tanto mais que as dificuldades eram enormes. Havia, para esse ano de 1918, pelo menos outro candidato de peso: Roland Dorgelès, que acabara de publicar um excelente romance de guerra, baseado na sua própria experiência de combatente nas trincheiras. Proust, devido à doença que o consumia – a asma – não fora combatente, o que era, para o caso, uma clara desvantagem. Por essa altura os do Prémio Goncourt tendiam a favorecer, desde que tivesse um mínimo de qualidade literária, uma obra sobre a guerra, cujo autor tivesse sido combatente. Obras desta natureza eram vistas como um esforço sério no sentido de se fomentar um desejável horror à guerra e, se possível, evitar que se repetisse a carnificina. Ora a obra de Dorgelès – Les Croix de Bois – satisfazia plenamente este não explícito mas existente caderno de encargos. Além do mais, Proust era tido como rico, isto é, não necessitado. Ser rico e não ter sido combatente, além de o seu livro nada ter que ver com a guerra – parece que tudo estava contra ele. Mas tratava-se, para o escritor, de um caso de vida ou de morte e por isso não hesitou, pedindo aos amigos chegados  que fizessem “lobby” cerrado junto de alguns membros do júri, sobretudo de Léon Daudet, que admirava Marcel. O “trabalho” foi tão bem feito, que Proust viria a vencer, angariando 6 dos dez votos . Houve, é claro, forte reacção da parte dos adeptos de Dorgelès. Inclusivamente, o romance deste foi posto à venda, com uma cinta de papel, dizendo em letras de grande formato: Prémio Goncourt. E, só depois, em letras minúsculas: 4 votos em 10. Quem olhasse de longe ficava a supor que Les Croix de Bois ganhara o Goncourt. O efeito do Prémio foi sensacional. Proust recebeu perto de 900 cartas e as reimpressões do livro sucederam-se. Os artigos de peso começaram a surgir. A sua glória consolidava-se e, quando morreu, três anos mais tarde, não lhe restavam dúvidas de que conseguira salvar a sua obra, captando, para sempre, a atenção dos leitores. O Goncourt não foi o único instrumento dessa consagração definitiva. Mas ajudou, de uma maneira decisiva, a que um grande livro se instalasse, mais rapidamente, no imaginário das pessoas. Sem ele, talvez Proust tivesse morrido, em 1922, sem ter a certeza de ter salvo do esquecimento a sua Recherche."
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no JL nº 1236, de 14 a 27 de Fevereiro de 2018

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