quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Uma vigilância eterna

"É provável que Thomas Jefferson nunca tenha dito que "o preço a pagar pela liberdade é uma vigilância eterna", mas não há dúvidas de que outros americanos da sua época o disseram. Quando hoje em dia pensamos nesta frase, imaginamos a nossa própria vigilância justiceira voltada para o exterior contra uma ideia que fazemos dos outros pautada pela insensatez e pela hostilidade. Vemo-nos como uma cidade edificada numa colina, uma fortaleza da democracia, da qual espreitamos em busca de possíveis ameaças vindas do estrangeiro. Mas o sentido da frase era inteiramente diferente: a natureza humana é de tal ordem que a democracia americana tem de ser protegida dos americanos que seriam capazes de tirar partido das suas liberdades com o intuito de a ver derrubada. Na verdade, foi o abolicionista americano Wendell Phillips que disse que "o preço a pagar pela liberdade é uma vigilância eterna". E acrescentou  que " o maná da liberdade popular deve ser colhido todos os dias, caso contrário acaba por apodrecer".
O historial da democracia moderna europeia veio a confirmar a sabedoria dessas palavras. O século XX testemunhou esforços sérios no sentido de expandir  o direito de voto e de instaurar democracias duradouras. Contudo , as democracias que surgiram  após a Primeira Guerra Mundial ( e a Segunda) acabavam não raras vezes por sucumbir  sempre que um partido único alcançava o poder  através de uma  qualquer combinação variável entre eleições e golpe de Estado. Um partido encorajado  pelos resultados  favoráveis de uma eleição ou motivado por uma ideologia , quiçá ambos, poderá mudar o sistema por dentro. Quando os fascistas, os nazis ou os comunistas  se saíram bem nas eleições das décadas de 1930 e 1940, o que daí resultou foi uma combinação de espectáculo, repressão e estratégia selectiva, em que as facções da oposição foram descartadas  uma por uma.  Na sua maioria , as pessoas andavam desatentas, algumas haviam sido presas e outras simplesmente subjugadas.
O protagonista de um romance de David Lodge diz que não sabemos, quando fazemos amor pela última vez, que estamos de facto a fazer amor pela última vez. Votar é algo semelhante. Alguns dos alemães que votaram no Partido Nazi em 1932 tiveram por certo em mente que essas poderiam ser as últimas eleições livres realmente relevantes durante algum tempo, mas tal não foi o caso da maioria. Alguns dos Checos e eslovacos que votaram no Partido Comunista checoslovaco em 1946 teriam provavelmente a consciência de que estavam  a votar a favor  do fim da  democracia, mas na sua maioria  estes votantes  supuseram  que outra oportunidade lhes seria dada. Não há dúvidas de que aos russos que votaram em 1990 não ocorreu que essa seria a última eleição livre e justa na história do seu país, o que de facto ( até agora)  acabou por se comprovar. Qualquer eleição  pode ser também  a última, ou pelo menos a última no decorrer da vida da pessoa que exerce  o seu direito de voto.  Os nazis  permaneceram  no poder até terem perdido uma guerra mundial em 1945, os comunistas checoslovacos até ao momento em que o seu sistema se desmoronou em 1989. A oligarquia russa  estabelecida depois das eleições de 1990 permanece em funcionamento. "
Timothy Snyder, in "Sobre a Tirania - Vinte lições do século XX", Relógio d'Água Editores, Julho de 2017, pp. 24, 25

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