sábado, 16 de setembro de 2017

Carta aberta a meu pai

Querido Pai
Todas as cartas que lhe escrevo são abertas. Deixou de ter morada certa. Apenas ficou em mim, para sempre. E será um sempre muito precário. Também partirei qualquer dia. É esta a nossa maior premonição. Prever a nossa finitude. Sem hora, dia e ano, mas certa. Sem erro. Acontecerá. 
Não sei e nem tenho a certeza se me juntarei a si, pai. Quem dera que assim acontecesse. E que me  estivesse esperando com a mãe. Pensaria , então, que estaria a regressar da Escola ou talvez da Faculdade, quando alguns cabelos brancos adornavam já a sua cabeça. Que de solicitude havia em vós. Transformava-se em carinhosas e preocupadas  perguntas sobre o dia.   Se tinha sido  frutífero,  compensador,  agradável. E eu beijava-vos e contava-vos o que descobrira, o que me assombrara naquele percurso diurno . Era o tempo do meu crescimento.
Crescer, pai. Cresceram já os meus filhos . Hoje  são os meus netos que partem e regressam da Escola. Olho-os diariamente e revejo todos aqueles momentos tão semelhantes, mas irrepetíveis. Feita em saudade, tenho agora a mesma  idade, desse vosso/nosso  tempo distante
“Parece que crescemos mas não crescemos/ foram as coisas grandes que há/ o amor que há, a esperança que há/ que ficaram mais pequenos.” Palavras belas de um poema de Manuel António Pina. O mundo mudou muito desde que partiu , pai. Ontem , em Londres , houve um outro atentado terrorista. Não, não tem qualquer semelhança com o tempo do IRA. Há, sim e apenas,  um rótulo que se diz religioso, também. São atentados em nome de um grupo que se reclama islamita. E o mundo ficou exposto à facínora mão de alguém que aparece sem ser visto, sem marca , sem identificação mas cruel. Mata porque quer matar. Morre-se , sem idade, sem doença, sem previsão, em qualquer parte deste mundo, pelos planos obscuros de um grupo de loucos que invoca um deus que não pode existir. Sim, existir. Como é possível existir um deus que deseja e permite tantas mortes e tanto sofrimento em seu nome?
É este o nosso tempo.  Um tempo de muito (des)amor. Partiu, pai, antes que tudo isto se mostrasse. Diria que desejou tanto a Liberdade  , neste nosso Portugal, que não compreenderia como foi possível  o mundo ficar à mercê de grupos ignotos. Viveu os dias de Democracia. Veio do dealbar da República . Enfrentou a opressão da ditadura. Lutou e viveu a vitória da Liberdade: o reconhecimento de que nos projectamos em cada um . O rosto do outro é a nossa imagem. Era esta a nossa divisa.
Não é mais, pai. Nem sei se ela vingou. Quando e como? Talvez entre nós, enquanto família. E convosco entre nós.
Hoje é dia do seu aniversário. Nasceu há 107 anos. Ultrapassa um século. O mundo mudou muito. Assistiu a muita dessa mudança.  Outras vieram . Nem todas fizeram o mundo pior. Há momentos de grande progresso. De consciência interplanetária. De descoberta científica e de um progressivo sentir ecológico. 
O Homem tem novas ferramentas para ser feliz e tornar o mundo melhor. Basta apenas descobrir o caminho que chegue a todos e a cada um, em completude. 
Quero, entretanto, dizer-lhe que permanece intenso e incólume o amor ,o carinho que sempre lhe tive. A  saudade aumenta e dói porque me faz falta, pai.  Como  seria  bom  poder felicitá-lo, como sempre o fiz. Eram dias maravilhosos. Só na memória os vivo intensamente. Consumo-os com ardoroso afecto. Enchem-me o coração.
Parabéns, pai.

6 comentários:

  1. Parabéns Maria José pelo escrito e sentimento que a mim também diz muito. Bjs

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  2. Excelente texto sentido, muito sentido, nota-se!!.
    Parabens.

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  3. Lindo, Maria José! Um grande abraço.

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  4. Maravilhoso, e sentido o texto apresentado.
    Parabéns e um grande abraço amigo.
    Ana Godinho

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  5. Olá minha Tia,muito bonito e sentido o texto em memória ao aniversário do nosso saudoso AVÔ.
    Beijinhos do sobrinho que tanto a admira.Serginho

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  6. A lembrança de um pai é também em si mesma a lembrança da construção de nós mesmos. Pois... A 5 de Setembro, que passou, o meu pai teria feito 112 anos, se fosse vivo... Parabéns , Maria José, por ter tido um pai como o descreve, com os fios do amor que lhe dedica agora e sempre, num solilóquio deveras admirável, que nos deixa suspensos!... Não será sempre a nossa verdade?!... Evidente que é. Os que amamos estão sempre em nós!...

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