segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Deixa-me dizer...

"Sandra. Se soubesses como tenho pressa de falar de ti. De estar contigo longamente. De te recuperar desde o teu nome. Não é bonito o teu nome. Explicaste-me  como to deram, já não sei se sei.  E todavia. Lembra-me uma fruta exótica, talvez  oriental . Uma fruta. Coisa de se saborear na boca e ter aí uma cor. Castanho-claro, talvez. E um sabor tenro, de doçura esmaecida. Mas tu  eras uma figura breve, toda facetada  no teu modo racional de ser. Os teus dentes. Pequena serrilha, não eram bonitos. Cerzidos. Um ou outro já escurecido, tocado pela destruição - tão poucas vezes tos vi. Mas estou a falar de ti e ainda não é tempo - em que tempo é? Estás entretecida a todo o meu ser, podia lembrar-te agora. Podia figurar-te  já em Penalva, que é para onde me apetece agora ir. Podia imaginar-te lá, neste modo de igualar o real e o imaginário, que tudo é real. Porque mesmo encontrada na cidade de Soeira, a Cidade universitária. Um mestre explicou-me  - ou eu imaginei? Que Soeira vinha  de Solária, a Cidade do Sol. Fica numa colina, o sol bate-a de todo o lado. Mesmo só encontrada aí, atravessas-me a vida para o passado e o futuro. Deixa-me dizer-te que te amei. Oh, tu irritavas-me tanto, não foi fácil saber-to dizer. Discreta polida asséptica - deixa-me dizer. Estou cheio de necessidade de falar de ti. Mas tenho de ir a Penalva, é lá que quero começar. Não sei porquê. Há muita coisa antes que quero lembrar, enquanto lá de baixo, na tarde sufocante, ouço-o. Ouço-o  sempre, canto da alegria da vida , que é triste por ser longe. É uma voz sem dono, não vejo quem canta, não sei donde vem. Aparece no ar, ecoa na distância, sem a força, selvagem da germinação da terra. Tenho de ir  a Penalva, enquanto me sento na cama de Xana  e acendo um cigarro.  Tenho de ir chamar Deolinda para combinar tudo.  Tenho de ir - tens que ir? Tens só que estar.
Como se houvesse mundo além, há só aqui. Tanto tratado escrito sobre a infância, a juventude, a idade adulta, que é a idade do homem. Em todas elas se fala de ir  - a velhice é estar. Queria ter , do calor com que se fazem ideias  precisas sobre isso. Precisas limpas agradáveis - a velhice tem tanta sujidade. Todas as idades fazem parte  da vida , a velhice é um sobejo. É só o que sobra lhe pertence.  O que sobra da mesa, das leis,  da paciência.  Do espaço que se ocupa - mas tenho de ir a Penalva. Dos fatos que se usaram, das ideias  que nos remexeram,  do calor com que se fazem  ser as pessoas  coisas animais - mas tenho de ir.  Passa o carro da História, atira-lhe com poeira para cima. Passam os proprietários  do poder, os fabricadores  da civilização,  os criadores da ciência, artes e letras , os agentes  do comércio e do progresso económico, ela encosta-se à valeta, fica coberta de lixo orgânico - mas vão sendo horas . Na realidade  - como é que me disse a tia Luísa? eu ia fazer o exame da quarta classe. Era uma noite  de Verão, nós sentávamo-nos ao balcão a ver a lua nascer. "
Vergílio Ferreira, in para sempre , Livraria Bertrand,Lisboa, 1983,  pp. 49,50

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