quinta-feira, 17 de agosto de 2017

E Há o Amor

A minha foto
Livres Pensantes vai fazer uma pausa . Regressará em Setembro. Em jeito de despedida , celebra o AMOR. Talvez para lembrar que, neste mundo tão precário, é urgente tornar os afectos mais duradouros.
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís Vaz de Camões,Poesia Lírica de Camões, Ulisseia

O Amor o que é?

O amor é
um nome de mulher
na boca de um homem.


O amor é
uma flor perfeita
na lapela de um homem só.

O amor é
um continente sem fronteiras
para que tudo aconteça.

O amor é
a alegria do corpo
sem vergonha de amar.

O amor é
dividir somente
o que se pode partilhar.

O amor é
uma cidade azul
no dorso de uma nuvem.

O amor é
um rapaz loucamente
apaixonado por uma rapariga.

O amor é
tão fácil e tão simples
que até se torna difícil.

O amor é
tudo aquilo que um dia
ganhamos coragem para ser.


O amor é
gostarmos de nós
e sabermos porquê.
José Jorge Letria, in O Amor o que é?, Edição Ambar, 2006
O Amor como em casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.
Manuel António Pina, Poesia Reunida. Lisboa, Assírio &Alvim, 2001

Recusa das almas evidentes

Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à baínha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.
Natália Correia, in  Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, 1999
Assim o amor

Espantado meu olhar com teus cabelos
Espantado meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa
Sophia Mello Breyner Andresen,Antologia -Círculo de Poesia,
Moraes Editores, 1975

Não Posso Adiar o Amor
Não posso adiar o amor para outro século
não posso ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa",Edições Ática, 1960
Um Olhar

Um olhar brando, claro, temeroso,
um gesto doce, quente, fugitivo,
quase ousado; um tremer ilusivo,
um fulgor de seio macio e sedoso;

um pudor ousado, um tentar medroso,
um sentir pensando, grave e modesto,
um dizer que sim, como se em protesto,
 percurso de alma limpo e sinuoso;

um sensual recuo; uma doçura,
um medo que se atreve; um ar sereno,
um sofrer doce e amargo de quem vive;

eis a magia, o veneno, a tortura,
o sentir, o viver, o gozo pleno
que, por ti, sem o ter, eu sempre tive.
                                            Londres, 7.4.1980
Eugénio Lisboa, in “ a matéria intensa”, Ed. Peregrinação
Vício

Vou vivendo na vontade
Que tenho de me atirar
No incêndio dos teus braços

a procurar no final
voltar de novo ao início
entre a poesia e o voar

pois escrever e amar
é arder
no mesmo vício
Maria Teresa Horta, in “ Poesis”, Publicações D. Quixote, 2017


Carta de Amor

Ouve-me!, se é que ainda
Me podes tolerar.
Neste papel rasgado
Das arestas da minh'alma,
Ai!, as absurdas intrigas
Que te quisera contar!
Ai os enredos,
Os medos,
E as lutas em que medito,
Quer dê, quer não dê por isso,
Sem descansar
Um momento...!
Quem sofre - pensa; e o tormento
Não é sofrer, é pensar.
O pensamento
Faz engolir o vómito de fel...
Ouve! se sou cruel
Neste papel queimado
Dos incêndios da minh'alma,
é de raiva de que embalde
Te procure dizer sem falsidade
Coisas que, ditas, já não são verdade...
E procuro eu dizê-las,
Ou procuro escondê-las?
E procuro eu dizer-tas,
Ou procuro a vaidade
De mas dizer, a mim, de modo que mas ouçam
Esses mesmos que desprezo,
E cujo louvor me é caro?
Não me acredites!
O que digo,
Antes ou depois, o peso;
E não!, não é a ti que me eu declaro!
Sei que me não entendes.
Sei que quanto melhor te revelar
O meu mundo profundo,
O fundo do meu mar,
Os limos do meu poço,
O antro que é só meu (sendo, apesar de tudo, nosso)
Menos me entenderás,
Tu..., - a minha metade!
Por isso me não és senão vaidade,
Meu amor!, meu pretexto
Deste miserável texto...
Vês como sou?
Mas sou pior do que isto.
Sabe que, se me acuso,
é só por vício antigo
De me lamber as mãos e agatanhar o peito,
De me exibir a Cristo!
Sabe que a meu respeito
Vou além de quanto digo.
Sabe que os males que ora uso,
Como quem usa
Cabeleira ou dentadura,
São a pintura
Que esconde os mais verdadeiros,
De outro teor...
E sabe que sou pior!:
Sabe (se é que o não sabes)
Que ao teu amor por mim foi que ganhei amor.
Que a ti..., sei lá se te amo.
Sei que me deixam sozinho
Ante o girar dos mundos e dos séculos;
Sei que um deserto é o meu caminho;
Sei que o silêncio
Me há-de sepultar em vida;
Sei que o pavor, a noite, o frio,
Serão jardim da minha ermida;
Sei que tenho dó de mim...
Fica tu sabendo assim,
Querida!,
Porque te chamo.
Mas amar-te?!
Não!, minha vida.
Não! Reduziram-me a isto:
Só a mim amo.
Ama-me tu, se podes,
Sem procurar compreender-me:
Poderias julgar que me encontravas,
E seria eu perder-te e tu perder-me...
Ao menos tu..., desiste!
A sobre-humana prova que te peço,
A mais heróica!,
A mais inglória e a mais triste,
é essa..., - é este o meu preço.
Mais que o despeito, o ódio, a incompreensão
Dos por quem passei sereno,
Estendendo a mão afável
Ao frio, pérfido, amável
Aperto da sua mão,
Me punge,
Me pesa no coração,
O fruste amor dos que me interpretaram.
Ai!, bem quiseram amar-me!
Bem o tentaram.
Mas nunca me perdoaram
O não serem dominados
Nem poderem dominar-me...
E assim o nosso amor foi uma luta
De cobardes abraçados.
Entre eu e tu,
Tão profundo é o contrato
Que não pode haver disputa.
Não é pacto
Dum pobre aperto de mão:
Entre nós, - ou sim ou não.
Despi-me..., vê se me queres!
Despi-me com impudor,
Que é irmão do desespero.
Vê se me queres,
Sabendo que te não quero,
Nem te mereço,
Nem mereço ser amado
Pela pior
Das mulheres...
Poderás amar-me assim,
(Como explicar-me?!)
Por Qualquer Cousa que eu for,
Mas não por mim!, não a mim...!

Beijo-te os pés, meu amor.
José Régio, in “ As Encruzilhadas de Deus” , Portugália Editora



 Se tu viesses ver-me hoje à tardinha
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
Florbela Espanca, in “ Charneca em Flor”, Editorial Estampa

Na Orla do Mar

Na orla do mar
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
( e mora, secreto
intenso, solar,
todo o meu desejo)
aí vou eu colher
a rosa e a palma. 
Onde a pedra é flor 
onde o corpo é alma.
Eugénio de Andrade, in "Até amanhã", Assírio & Alvim
Para Sempre
“Leve como uma pena, a luz apagada, a incrível  doçura do teu corpo. Frágil  minúsculo na ponta dos dedos da minha mão. Apanhar-te toda , amachucada toda na palma da minha mão. Friso subtil  dos meus nervos, ah, o veludo do teu calor.(…) Tanto como te sonhei e imaginei  no meu querer  de crise e estava agora ali total, tinha medo de te tocar, destruir. Tão melindrosa evanescente. (…)
Assim estive longo  tempo, mas eu precisava tanto de te tocar. Recuperar a tua realidade inacreditável, a tua presença no centro do universo. A mão suave  na fronte, o lume  de um meu dedo na fímbria do teu corpo. A respiração subtil da minha boca  na tua face. O halo fugidio  da minha presença na tua – e tu rodaste sobre ti , um apagado  ciciar da tua boca. Pregado na noite como uma vigília, irradiada de uma luz viva e trémula – dorme.  Que é que eu amo em ti? Não é o teu corpo, não é o teu espírito, mas a transfiguração de um pelo outro, a transcendência da tua carne frágil, a abordagem de quem tu és no mais profundo de ti, na posse compacta de toda tu, no espasmo de um punho cerrado- dorme. Não posso dormir, não quero. Como perder esta hora máxima de ser, de tocar toda a tua realidade  secreta, drasticamente separada, segregada da minha ânsia  em agonia? Porque tu eras para mim o puro irreal e imaginário, o subtil incorpóreo, a pura iluminação sem consistência, a aparência  do não-ser, a terrível beleza intocável, a graça aérea imaterial Como dormir  e perder-te  e acordar depois  - tu não estares  aqui e ser tudo fantástico  de impossível? Estendo a  minha  mão , és tu real na febre da minha mão. Então rolaste de novo sobre ti e eu tive  medo. Medo do meu excesso, na aflição da minha angústia. Tremente perdido 
  - Sim?
   ousei  a tua face a súplica de que fosses de novo verdadeiramente real. E a tua mão de infância procurou a minha e num interstício de suspeita respondeu. Meu Deus.”
Vergílio Ferreira , in “ para sempre”, Livraria Bertrand
“ Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezassete anos.
Amava Simão uma sua vizinha , menina de quinze anos, rica herdeira , regularmente  bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume  da ferida que fizera  no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o  
Teresa de Albuquerque devia ser , porventura, uma excepção no seu amor.
O magistrado e sua família eram odiosos a Botelho o pai de Teresa , por motivos de litígios , em que Domingos lhes deu sentenças contra.(…)
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se  e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava  que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património. Espanta  discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um património!
Na véspera da sua ida para Coimbra , estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos  daquela voz  que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como um tigre contra as grades inflexíveis da jaula. (...) com o amanhecer esfriou-lhe o sangue e renasceu a esperança com os cálculos.(…)
Simão, porém,  entre mil projectos, achara melhor  o de ir para Coimbra,  esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.
Quando descera o académico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs , e beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestação severa, aponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria, se ele caísse em novas extravagâncias.  Quando metia o pé no estribo, viu  a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe  a mão aberta como quem  pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel.
Sobressaltou-se o moço; e , a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas:
“ Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua causa.. Sofrerei  tudo por amor  de ti. Não me esqueças  tu,  e achar-me-ás no convento, ou no Céu, sempre tua  do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás-de responder à tua pobre Teresa.”
Camilo Castelo Branco, in “ Amor de Perdição”, Porto Editora, Lda

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Entardecer

Entardecer

Vejo as vermelhas caudas do crepúsculo
e o verde fulgor do mar.
Lenta é a tarde
e quero demorá-la em densas pálpebras,
consagrando-a à companheira imóvel
na melancólica quietude do casario
em que as consoantes são de espessa pedra e surda plenitude.
Neste murmúrio de sombra ainda tão solar
quero envolver-me cúmplice dos muros
e da côncava expansão do tempo,
até às praias distantes de um sossegado azul.
Assim me alongarei nas mãos da sombra imóvel
com o fogo do silêncio e a melancolia das colinas,
vivendo o instante de um dinamismo lento
em que estar é ser seguro na igualdade.
António Ramos Rosa, in Facilidade do Ar, Editorial Caminho, Abril de 1990
 


 


Pores do Sol
"Se eu fosse pintor , passava  a minha vida a pintar o pôr do Sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos , quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes(…).Tardes violetas , neste ar tão carregado de salitre que torna a boca  pegajosa  e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia  e os alicerces  dos velhos fortes  abandonados…
Um poente  desgrenhado, com nuvens  negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido  que bóia  nas águas – e não quer morrer…
Há na areia uns charcos onde se reflecte  o universo –o céu , a luz, o poente. Não bolem  e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E como o poente é oiro fundido sobre o mar inteiramente verde , que a noite  vai empolgar não tarda , os charcos, entre  a areia húmida  e escura,teimam em guardar  a luz  concentrada e esquecida.
Em todo o dia , o mar não se viu nitidamente. Névoa esbranquiçada, grandes rolos  de poeira  e sol misturados , água de que se exala um hálito verde envolvido nas ondas. Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinária.”
Raul Brandão, in " Os Pescadores", Publicações Europa -América




terça-feira, 15 de agosto de 2017

Do jazz


  O Jazz é o produto de seus músicos e cantores.
O executante é o centro desse mundo.
                                    Eric Hobsbawm.

Há muitas definições para Jazz. Não pretendo enumerá-las , nem sequer tentar definir estes sons tão especiais e únicos. 
Para mim Jazz é música. E isso ouve-se com o coração e com  todos os sentidos abertos.

Eis A Love Supreme, a  única versão ao vivo da suíte completa , executada no Festival Mundial do Jazz de Antibes, França, em 26/07/1965.  Uma excepcional interpretação de John Coltrane, no Saxofone; Jimmy Garrison, em  Contrabaixo; Elvin Jones, na  Bateria e McCoy Tyner, no Piano.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Deixa-me dizer...

"Sandra. Se soubesses como tenho pressa de falar de ti. De estar contigo longamente. De te recuperar desde o teu nome. Não é bonito o teu nome. Explicaste-me  como to deram, já não sei se sei.  E todavia. Lembra-me uma fruta exótica, talvez  oriental . Uma fruta. Coisa de se saborear na boca e ter aí uma cor. Castanho-claro, talvez. E um sabor tenro, de doçura esmaecida. Mas tu  eras uma figura breve, toda facetada  no teu modo racional de ser. Os teus dentes. Pequena serrilha, não eram bonitos. Cerzidos. Um ou outro já escurecido, tocado pela destruição - tão poucas vezes tos vi. Mas estou a falar de ti e ainda não é tempo - em que tempo é? Estás entretecida a todo o meu ser, podia lembrar-te agora. Podia figurar-te  já em Penalva, que é para onde me apetece agora ir. Podia imaginar-te lá, neste modo de igualar o real e o imaginário, que tudo é real. Porque mesmo encontrada na cidade de Soeira, a Cidade universitária. Um mestre explicou-me  - ou eu imaginei? Que Soeira vinha  de Solária, a Cidade do Sol. Fica numa colina, o sol bate-a de todo o lado. Mesmo só encontrada aí, atravessas-me a vida para o passado e o futuro. Deixa-me dizer-te que te amei. Oh, tu irritavas-me tanto, não foi fácil saber-to dizer. Discreta polida asséptica - deixa-me dizer. Estou cheio de necessidade de falar de ti. Mas tenho de ir a Penalva, é lá que quero começar. Não sei porquê. Há muita coisa antes que quero lembrar, enquanto lá de baixo, na tarde sufocante, ouço-o. Ouço-o  sempre, canto da alegria da vida , que é triste por ser longe. É uma voz sem dono, não vejo quem canta, não sei donde vem. Aparece no ar, ecoa na distância, sem a força, selvagem da germinação da terra. Tenho de ir  a Penalva, enquanto me sento na cama de Xana  e acendo um cigarro.  Tenho de ir chamar Deolinda para combinar tudo.  Tenho de ir - tens que ir? Tens só que estar.
Como se houvesse mundo além, há só aqui. Tanto tratado escrito sobre a infância, a juventude, a idade adulta, que é a idade do homem. Em todas elas se fala de ir  - a velhice é estar. Queria ter , do calor com que se fazem ideias  precisas sobre isso. Precisas limpas agradáveis - a velhice tem tanta sujidade. Todas as idades fazem parte  da vida , a velhice é um sobejo. É só o que sobra lhe pertence.  O que sobra da mesa, das leis,  da paciência.  Do espaço que se ocupa - mas tenho de ir a Penalva. Dos fatos que se usaram, das ideias  que nos remexeram,  do calor com que se fazem  ser as pessoas  coisas animais - mas tenho de ir.  Passa o carro da História, atira-lhe com poeira para cima. Passam os proprietários  do poder, os fabricadores  da civilização,  os criadores da ciência, artes e letras , os agentes  do comércio e do progresso económico, ela encosta-se à valeta, fica coberta de lixo orgânico - mas vão sendo horas . Na realidade  - como é que me disse a tia Luísa? eu ia fazer o exame da quarta classe. Era uma noite  de Verão, nós sentávamo-nos ao balcão a ver a lua nascer. "
Vergílio Ferreira, in para sempre , Livraria Bertrand,Lisboa, 1983,  pp. 49,50