sexta-feira, 30 de junho de 2017

99º Aniversário de Cândida Ventura

Caldas de Monchique (Algarve)
Cândida Ventura nasceu há 99 anos, em Lourenço Marques, Moçambique.
“Nasci em Lourenço Marques , mas passei a maior parte da minha infância nas Caldas de Monchique, termas a 250 metros de altitude , no vale  da serra de Monchique (Algarve), apenas  a 20 quilómetros da Praia da Rocha e a 290  quilómetros de Lisboa.” 
Assim nos informa Cândida Ventura, uma mulher extraordinária que marcou a luta contra a opressão, no século XX. Fê-lo com risco da própria vida , abdicando do conforto que lhe daria um futuro que se desenhava promissor. A Liberdade foi sempre o seu dicionário. Promoveu-a  em todos os lugares por onde passou, tentando resgatá-la do jugo de qualquer credo ideológico totalitário. 
Quando jovem aluna da Faculdade de Letras de Lisboa, aceita entrar para o Partido Comunista Português por acreditar na autenticidade dos seus ideais . Mais tarde, na União Soviética, descobre o regime de Estaline e a força dogmática que alicerça a sua ideologia que se   mantém através do uso   indiferenciado de todos e quaisquer meios.  
Na Checolosváquia, Cândida Ventura trabalha e  assiste à Primavera de Praga.  Em Portugal , após a revolução de Abril, em 1976,   corta todas as amarras com o PCP e dedica-se ao que sempre a norteou: a Liberdade dos povos. 
Nunca deixou de ter uma voz activa e atenta.
Tive o imenso prazer de conhecer esta grande mulher. Privilegiou-me com a sua amizade. Vivi  momentos de intensa partilha e descoberta através de extraordinários relatos da sua longa vida. Ela era a História que eu pude ter perante mim. Nunca saberei agradecer-lhe. Ficou, contudo, no meu coração. E a saudade é a lembrança de alguém que me tocou para sempre.
No dia do seu falecimento, muitos artigos foram publicados. Alguns foram  referidos  e/ou transcritos neste espaço. Hoje publicamos um outro testemunho  de alguém que a conheceu .
Cândida Ventura
Morreu a camarada André
por Zita Seabra
Observador,17/12/2015, 10:30
"Cândida Ventura regressou a Portugal em 1976. Abandonou o PCP e deixou de ser comunista. O PCP apagou-a da sua história, do seu passado, dos seus livros, das suas narrativas heroicas. Como sempre faz.
Morreu Cândida Ventura: a camarada André. Era sempre referida internamente por esse seu pseudónimo. Álvaro Cunhal e os outros dirigentes do PCP que a conheceram chamavam-lhe assim. Na clandestinidade todas tínhamos pseudónimos masculinos para enganar a Pide. Cândida era André.
Ninguém pode negar que “André” foi um dos mais destacados militantes e dirigentes intelectuais comunistas portugueses, alguém que o PCP tentou apagar da história nesse seu «direito» de reescrever o passado e determinar quem pode ou não figurar na galeria dos heróis da resistência.
Cândida foi apagada e colocada na triste memória de vala comum de silêncios e calúnias em que já nem se sabe do seu passado e, no presente, só existe para modelo de traição. Recordo-me, por exemplo, de se falar dela no último andar da Soeiro Pereira Gomes, num gozo mal contido do dr. Cunhal, dizendo, entre risos e escárnio: «O camarada André aceitou um lugar no Ministério dos Negócios Estrangeiros, arranjado pelo Mário Soares.»
Ficou assim marcada, assinalada, logo no dia em que regressou ao país em 1976. Como se o mesmo não tivesse acontecido a toda a gente, a todos os comunistas que vieram de Paris ou da Suíça e tiveram que ser reintegrados num qualquer trabalho e refazer a sua vida profissional. Cândida não podia. Vinha com o estatuto de dissidente e não lhe era permitido ter passado, nem presente, nem trabalho, nem dignidade.
Posteriormente, muitos anos mais tarde, eu própria ouvi muitas vezes como acusação, e li escrito em jornais, o nome de Cândida transformado em insulto. Acusavam-me de estar «a ficar igual ou pior que a Cândida». Escreveram-no contra mim, quando a minha vida foi uma pálida sombra do que foi a desta grande senhora. Senti e sinto ainda vergonha da acusação, porque eu não tinha, nem a minha vida teve, dimensão para ser aceitável tal comparação.
Cândida entrou para o PCP muito nova. Chegou através das lutas estudantis universitárias nos anos 36/39, em plena guerra civil espanhola. Licenciada em Histórico-filosóficas, tinha uma imensa cultura, rara em mulheres da época. Teve um curto casamento com Piteira Santos e frequentou a vida cultural da capital. Escreveu em jornais e revistas e foi amiga de toda a gente marcante das letras e das artes portuguesas. Nesse período, trabalhou directamente com Álvaro Cunhal na Federação das Juventudes Comunistas.
Foi durante todos estes anos uma destacadíssima militante e a primeira mulher a integrar o Comité Central do PCP.
Brilhante, culta, inteligente, corajosa, muito, muito bonita (Cunhal dizia que parecia uma conhecida atriz francesa em moda na época), marcou este período conturbado da vida do PCP como activista dos mais importantes movimentos legais ou semi-legais existentes (Socorro Vermelho, por exemplo). Muito jovem, logo que acabou o curso, deixou, porém, tudo o que tinha na vida e tudo o que fazia para passar à clandestinidade. Ao PCP entregou a juventude, e todo o seu futuro. Viveu anos e anos (dezoito) uma duríssima vida de privações e perigos na clandestinidade, até ser presa.
Na clandestinidade, Cândida integrou de imediato um pequeno grupo destacado de dirigentes comunistas que fizeram a célebre «reorganização» dos anos 1940.
Mais tarde, quando se viveram tempos conturbados de lutas internas, Cândida foi acusada de fraccionismo pois era o André da famosa fracção «André e Montes», que levou à sua despromoção do Comité Central e suspensão (em 1954). Foi readmitida em 1956 e ficou para sempre a camarada André, o que lhe deu igualmente uma auréola muito especial de ex-fraccionista.
Enquanto clandestina foi uma das muito poucas mulheres com trabalho de organização. Controlou grandes sectores do PCP e, além disso, escreveu muito, colaborando em numerosas publicações clandestinas. A menos importante, mas significativa, e que pessoalmente não resisto a sublinhar, foi o jornal que criou e que eu própria vim a «dirigir» anos mais tarde: «O Jornal das Amigas das Casas do Partido», que era distribuído, depois de impresso em copiógrafo manual, a todas as mulheres que tomavam conta das casas e das tipografias clandestinas.
Presa pela PIDE em 1960, foi condenada a 15 anos de cadeia e medidas de segurança, mas veio a ser libertada por estar entre a vida e a morte, ao fim de três anos vividos na cadeia de Caxias.
Quando recuperou a saúde, o PCP colocou-a como representante sua na Checoslováquia, onde integrou a redacção da mais importante revista teórica do movimento comunista, a «Revista Internacional – Problemas da Paz e do Socialismo».
O Partido Comunista Checo era um partido com uma importante elite intelectual, que incluía numerosos escritores, gente das artes e dos meios universitários. Cândida, que era responsável pelos comunistas portugueses que residiam na Checoslováquia, integrou-se plenamente na vida do país que caminhava para a célebre «Primavera».
Tem-se escrito, diminuindo-a em minha opinião, que foi ganha para a Primavera de Praga porque era amiga e vizinha de Arthur London, que a terá influenciado. Era evidentemente amiga de Arthur London e ele próprio prefaciou o livro que Cândida publicou anos mais tarde, mas ela foi um dos mentores e intervenientes na Primavera de Praga, amiga de muitos a começar por Dubcek. Esteve com os que tentaram renovar o comunismo por dentro, democratizá-lo, os que viveram o drama da ilusão de uma pacífica e democrática «revolução» interna, feita na sua maioria por comunistas, uma revolução impossível que terminou debaixo das lagartas dos tanques soviéticos.
Aliás, ao longo dos muitos anos de militante e dirigente comunista, Cândida foi marcante num partido de centralismo democrático por ter pensamento e caminhos próprios raros, direi mesmo raríssimos. Não foi só a fracção «André e Montes», mas também o pai da sua filha, Américo Sousa (que participou na fuga da cadeia do Aljube com Carlos Brito), que acabou despromovido, ao chocar novamente com Cunhal nos anos em que, após a fuga de Peniche, ele tomou o poder no PCP.
Na Primavera de Praga, Cândida não era dissidente nem se comporta como tal. Cândida era comunista e, como muitos outros comunistas, queria renovar, democratizar, destalinizar. Tinha dado toda a sua vida por essa causa. Só quem não imagina o que é entregar uma vida inteira a uma ideologia, passar 18 anos clandestina, seguidos dos anos na prisão de Caxias e depois no exílio, é que não pode perceber ou atingir o que foi a vida desta mulher e como viveu estes anos de Praga, entre a alegria de um comunista convicto que procura o impossível – democratizar o comunismo – e a tristeza da invasão das tropas do pacto de Varsóvia.
Ainda há dias li contra ela a acusação de não ter subscrito o abaixo-assinado de Flausino Torres contra a invasão soviética, como quem lhe atira o atestado final do julgamento da história. Valeu tudo ao longo da sua vida até ao presente para o Partido Comunista lhe apagar o passado, a diminuir, caluniá-la em contraste com os seus heróis em muitos casos falsos, com biografias forjadas e até antifascistas que nunca o foram. Tudo servido por diligentes funcionários que transmitem a história e por intelectuais igualmente diligentes que a tentam escrever em livros que assegurem que o passado será como querem que seja.
Cândida Ventura regressou a Portugal em 1976. Abandonou o PCP e deixou de ser comunista. O PCP apagou-a da sua história, do seu passado, dos seus livros, das suas narrativas heroicas
Morreu ontem e merece ser lembrada por tudo o que deu na sua vida à luta pela liberdade em Portugal e recordada como a primeira mulher membro do Comité Central do PCP, bem como a primeira dissente mulher do comunismo português. Sobretudo, a camarada André merece muito mais do que estas linhas." Zita Seabra

quinta-feira, 29 de junho de 2017

Crescem de repente

Antes que elas cresçam 
Por Affonso Romano de Sant'Anna
“Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
É que as crianças crescem. Independentes de nós, como árvores, tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir licença. Crescem como a inflação, independente do governo e da vontade popular. Entre os estupros dos preços, os disparos dos discursos e o assalto das estações, elas crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual maneira; crescem, de repente.
Um dia se assentam perto de você no terraço e dizem uma frase de tal maturidade que você sente que não pode mais trocar as fraldas daquela criatura.
Onde e como andou crescendo aquela danadinha que você não percebeu? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços, amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal?
Ela está crescendo num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. E você está agora ali, na porta da discoteca, esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins, cabelos soltos sobre as ancas. Essas são as nossas filhas, em pleno cio, lindas potrancas.
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incómodas mochilas da moda nos ombros ou, então com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.
Pois ali estamos, depois do primeiro e do segundo casamento, com essa barba de jovem executivo ou intelectual em ascensão, as mães, às vezes, já com a primeira plástica e o casamento recomposto. Essas são as filhas que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias e da ditadura das horas. E elas crescem meio amestradas, vendo como redigimos nossas teses e nos doutoramos nos nossos erros.
Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos próprios filhos.
Longe já vai o momento em que o primeiro menstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco de trás e passaram para o volante de suas próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne route, bonne route”, como naquela canção francesa narrando a emoção do pai quando a filha oferece o primeiro jantar no apartamento dela.
Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de colagens, posteres e agendas coloridas de pilô. Não, não as levamos suficientemente ao maldito “drive-in”, ao Tablado para ver “Pluft”, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.
Elas cresceram sem que esgotássemos nelas todo o nosso afecto. 
No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de sorvetes e sanduíches infantis. Depois chegou a idade em que subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora é hora de os pais na montanha terem a solidão que queriam, mas, de repente, exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.
O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer connosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isso, é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que elas cresçam.”
 Crónica de Affonso Romano de Sant'Anna

Sobre o auitor
Affonso Romano de Sant'Anna, nascido em Minas Gerais,  é um marco na literatura brasileira, tendo publicado mais de 40 livros e já tendo recebido vários prémios, inclusive o Prémio da União Brasileira dos Escritores. Desde os anos 60, tem influenciado e participado em  movimentos que transformaram a poesia brasileira, além de fazer parte dos movimentos políticos e sociais do país.  Nos tempos de ditadura militar quando  as expressões artísticas eram fortemente reprimidas pela censura, publicou audaciosas obras nos mais importantes jornais do país, em páginas de politica. Muitos poemas do autor foram transformados em posters, placas e cartazes e difundidos aos milhares como forma de resistência.

terça-feira, 27 de junho de 2017

A necessidade de equilíbrio

“ A tendência para o equilíbrio, que nos é íntima, profunda  e permanente, está-me sempre a ser falseada. As bases  em que ela devia assentar jogam muito , comprometem-na a todo o momento.
Não nos basta cabeça, não. Nós que somos senão ordem e desordem constante? Cabeça ai, ai! Mas esta tendência para o equilíbrio, esta ânsia de segurança e de fé, de orientação e de paz, com que se podia animar? Com o trabalho  que nos vence , com o bem sentimental que nos satisfaz? Com o conhecimento ou com o desconhecimento das paixões dos outros? Com a nossa abstinência ou interferência nelas?
Este sentido ou esta necessidade de equilíbrio  é uma qualidade de instinto de conservação, nosso todo psíquico…Mas contentá-lo? Sim, dar-lhe força, como?”
Irene Lisboa , em Solidão,(volume II), Editorial Presença, 1992, p.159 

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Entrevista a Eugénio Lisboa

 Eugénio Lisboa apresentando a obra “Efémera Liberdade"
da escritora moçambicana Amilca Ismael

Eugénio Lisboa: "Não acredito que alguém dê pela verdadeira grandeza do Fernando Pessoa em tradução"


Entrevista
Por Diogo Vaz Pinto ( Jornal i ), 25 de fevereiro 2017
Intelectual cosmopolita, Eugénio Lisboa diz que é um "enraízado com múltiplas raízes": Nasceu em Moçambique, viveu em Inglaterra, Suécia, África do Sul, e está há 23 anos em Portugal. Foi homenageado na edição deste ano do Correntes d'Escritas, onde o i o entrevistou.
Na sua 18.ª edição, o Correntes D'Escritas celebrou a sua "maioridade", com alguns dos intervenientes que se tornaram já 'loiça da casa' a ressalvarem insistentemente que maior já ele era há muito, tendo sido pioneiro entre todos os festivais literários que hoje pontuam, de norte a sul, o mapa e o calendário.
A cerimónia de abertura contou com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que consagrou este festival como “o principal” evento no género, tendo tido o mérito de fazer da "Póvoa de Varzim uma porta de entrada da literatura mundial no nosso país". Aqui um parêntesis chato, o melhor mesmo é o leitor ignorá-lo e passar à frente: (À entrada do Casino, uma manifestação de duas dezenas de trabalhadores deste exigindo a actualização dos salários, congelados desde 2009, caiu como uma mancha na camisa, logo escondida pela gravata. Do cimo das escadas, olhando para baixo, escritores e editores ou se alhearam ou riram como se a manifestação viesse acrescentar mais colorido a um dia de festa. A Sala D’Ouro do Casino ficou com a lotação esgotada, e durante as intervenções, em que todos se congratulavam com um evento que, segundo o vereador da cultura da Póvoa, Luís Diamantino, colocou a cidade “no mapa universal da literatura”, o assunto nem mencionado foi.)
O festival, que deve muito do seu encanto ao lado provinciano, gozando o encosto ao mar, numa cidade balneário que tende a fantasmagorizar-se na época baixa, conta nesta edição com cerca de 80 escritores (50 deles repetentes) de 13 nacionalidades, e que irão passar pelas várias mesas, debates, apresentações de livros e outras iniciativas. O evento volta uma vez mais a buscar a representação de toda a lusofonia, só faltando nesta edição algum escritor vindo de Timor. Marcelo saudou este aspecto como a vertente ecuménica do festival. "Sou testemunha da abrangência ideológica, temática e estilística" do Correntes D'Escritas, disse, destacando ainda o papel essencial da articulação com as escolas, por onde os escritores vão passando nestes dias. O Presidente referiu-se também a Luís Filipe Castro Mendes, numa rábula em que notou que este chegava ali na qualidade do ortónimo poeta que estava a concurso para o prémio Casino da Póvoa, e com o seu heterónimo ministro da Cultura.
Tendo entretanto sido anunciada a atribuição do prémio ao poeta Armando Silva Carvalho, pelo livro "A Sombra do Mar" (Assírio & Alvim, 2016), Marcelo adiantou que Castro Mendes podia consolar-se sabendo que o seu ortónimo "tinha já ganhado o coração e admiração dos portugueses" pela sua obra poética. A outra menção do chefe de Estado foi para Eugénio Lisboa, ensaísta de 86 anos homenageado nesta edição do festival – sendo-lhe dedicado um dossier na revista Correntes D’Escritas –, com quem tem em comum a terra natal, Lourenço Marques. Referindo-se ao escritor como seu "mestre", Marcelo lembrou como este foi não só uma figura cultíssima como irreverentíssima, superlativos que mantém em sentido mesmo com a sua avançada idade. O presidente deixou ainda uma nota pessoal de afecto, agradecendo o facto de nos volumes das memórias que o ensaísta tem publicado ("Acta Est Fabula", na editora Opera Omnia), recordar a sua mãe, Maria Fernandes Duarte, e lembrou como foi pelos olhos da sua mãe que primeiro aprendeu a admirar Eugénio Lisboa. Recordou os vários encontros numa livraria na capital moçambicana, e confessou que tinha o hábito de vigiar os títulos que o ensaísta comprava para conhecer "as escolhas do mestre". Na sua intervenção, Lisboa foi sucinto, admitindo que é sempre bom ser reconhecido, mas notando também que é próprio dos artistas e escritores sofrerem de algum narcisismo, daí também a sua reserva em participar em festivais. Agradeceu a homenagem e retirou-se. Na véspera tinha apresentado o seu mais recente título, "Diário de Viagens Fora da Minha Terra" (também editado pela Opera Omnia), outro livro que alinha no registo desassombrado, lúcido e tantas vezes abertamente crítico das suas memórias. Com uma prosa que, em muitos aspectos, é o mais fiel espelho do retrato que tantos amigos e colaboradores dele pintam nas homenagens que lhe têm dirigido, destaca-se como um verdadeiro "homem de palavra(s)". De resto, Eugénio Lisboa nunca turva as águas da sua escrita para as fazer passar por mais profundas do que são. Nas suas crónicas no "Jornal de Letras" como nos ensaios, sente-se que a escrita existe por referência à vida. Não pretende que esta seja um fim em si mesmo, que rapte os sentidos do leitor, antes os expanda e devolva ao mundo; exerce a sabedoria como uma educação virada para fora, sendo um dos mais fulgurantes exemplos do espírito cosmopolita que foi marcante no perfil da elite portuguesa em Lourenço Marques.
Depois, há a candura nas suas palavras, a forma como continua a ter a paciência de quem parece ser eterno, a afabilidade na resposta a quem o procura. Em sua homenagem, houve já quem se lembrasse do que escreveu certa vez Paul Valéry, palavras que lhe assentam perfeitamente: "Os homens verdadeiramente grandes estão muito próximos dos outros pela mesma simplicidade que os afasta até ao infinito. Porque os homens verdadeiramente grandes conservam, na sua relação com as coisas profundas e difíceis com as quais estabelecem sua intimidade, as mesmas atitudes que têm com toda a gente; são ao mesmo tempo familiares, delicados e verdadeiros." O i aproveitou para entrevistá-lo, focando as questões na sua experiência nos países da lusofonia ou em defesa da cultura, seja enquanto escritor seja na qualidade de diplomata. Eugénio Lisboa passou a sua vida nas latitudes e longitudes mais diversas, tendo referido em 2010 que tinha "38 anos de Moçambique, onde nasci, 17 de Inglaterra, 23 de Lisboa, um ano de África do Sul e um ano de Suécia".
Ao fim destes anos todos, e de tantas viagens, que terra sente particularmente como a sua terra?
Costumo dizer que não sou um desenraizado, mas um enraizado com múltiplas raízes. Mas a minha terra é aquela onde nasci, Lourenço Marques, em Moçambique. Embora esteja também já muito ligado a Portugal. Vivo aqui desde que regressei das minhas viagens. Estou cá há 21 anos. Diria que o meu coração está partido entre Lourenço Marques e Lisboa.
Quais lhe parece que são actualmente os desafios que enfrenta a lusofonia?
Não há nenhum grande desafio senão o do seu próprio desenvolvimento. A língua portuguesa é uma das línguas europeias com mais falantes, mas estou convencido de que o que há a fazer, muito mais do que divulgar a nossa cultura através de traduções – que é sempre, a meu ver, um processo de segundo grau... Não acredito que os nossos grandes poetas possam ser reconhecidos enquanto tal por via da tradução. Eles têm de ser lidos no original. Portanto, muito mais do que despendermos energias e dinheiro em traduções (o que também tem de ser feito, diga-se de passagem), o importante é trazer mais pessoas ao conhecimento da nossa língua. É divulgar a nossa língua lá fora, através de escolas, de universidades, de maneira a que os falantes da nossa língua lá fora aumentem e eles possam tomar conhecimento directo da nossa cultura e não pelo veículo mais fraco da tradução.  A divulgação da língua deve ser feita lá fora a partir do ensino básico e secundário. Nós em geral investimos no ensino da nossa cultura e da língua nas universidades, mas estas têm de ser alimentadas de baixo. É muito importante, em países como a Inglaterra e a Alemanha, que o português se ensine ao nível da primária e secundária. É pela educação de indivíduos capazes de ler e escrever o português, que a nossa cultura pode ser divulgada como merece. Não acredito que alguém dê pela verdadeira grandeza do Fernando Pessoa em tradução. Vão atrás da historieta romântica dos heterónimos mas na verdade a grandeza da linguagem poética do Pessoa não se transfere numa tradução, a não ser muito raramente. Há uma tradução magnífica do “Tabacaria” feita em Inglaterra pela Suzete Macedo, mas isso é a excepção. De uma maneira geral as traduções são relativamente medíocres. Como notou o poeta sul-africano Roy Campbell, a poesia é que se perde na tradução. Aquilo que não se traduz é que é a poesia.
Se a língua portuguesa tem um número tão expressivo de falantes, por outro lado, e em comparação com o mundo anglófono ou hispânico, parece haver uma fractura dentro da lusofonia, havendo menos intercâmbio cultural entre os países que a compõem.
Há um problema que está na base disto tudo e que se prende com a força económica dos países. O mundo castelhano tem por detrás um poder económico e financeiro, para não falar do mundo anglo-saxónico, que conta com a Grã-Bretanha, EUA, parte do Canadá, Austrália, África do Sul... Há todo um motor de arranque financeiro que esses mundos têm que nós não temos. Nós temos o Brasil, mas até esse parece ter-se vergado sob o seu próprio peso. Angola e Moçambique não têm, por enquanto, esse poder. Quando o mundo lusófono for economicamente significativo, e puder alimentar esse motor de arranque, creio que a situação mudará. Hoje quando comparamos o universo editorial, o espanhol é uma coisa espantosa, a diversidade das colecções e catálogos que eles têm... Nós não dispomos dos mesmos meios, e sobretudo não temos a respeitabilidade económica, não temos força económica para nos tornarmos apetecíveis. Mesmo assim é impressionante as vias que temos aberto. Nomes como o Fernando Pessoa... embora a meu ver seja conhecido não da maneira adequada, mas é conhecido. O Eça de Queirós... Quando estive em Londres fiz uma reedição d’“Os Maias” e a crítica inglesa postou-se de cócoras perante a grandeza do livro. Simplesmente, são grandes clássicos que impressionam o mercado durante um determinado período e depois eles esquecem-se deles. Tem de se voltar a acordá-los daí a 20 ou 30 anos. A primeira vez que “Os Maias” abriram brechas no imaginário anglo-saxónico foi, salvo erro, em 1965, quando foram traduzidos pela primeira vez, e esteve na lista de bestsellers da Time Magazine durante semanas e semanas. Os fulanos diziam que para se encontrar universos comparáveis é preciso recorrer a Stendhal e Tolstói. Mas passados dois, três anos esquecem-se.
Este ano o Prémio Camões foi ganho pelo Raduan Nassar depois de ter sido traduzido para inglês um dos seus livros (“Um Copo de Cólera”), que recebeu destaque por ter figurado na short-list do Prémio Man Booker... Há também o caso da Clarice Lispector que para se afirmar comercialmente em Portugal como no Brasil esteve à espera do sucesso nos EUA, depois da biografia de Benjamin Moser. Não lhe parece que a lusofonia não só é frágil economicamente mas ainda se fragiliza culturalmente indo a reboque do que se passa lá fora?
Sim, há também isso. O desempenho da Clarice Lispector lá fora é uma fuga. O Machado de Assis também já foi traduzido, mas a literatura brasileira não faz parte do património corrente do mundo anglo-saxónico. Quando têm de se lembrar de um gigante na ficção nunca lhes vem à memória o Machado de Assis, o problema é esse. Nós ainda não nos implantámos de vez lá. Quando “A Ilustre Casa de Ramires” [romance de Eça] foi reeditado, o [crítico literário] Jonathan Keats, no “Observer", salvo erro, perdeu literalmente a cabeça com o livro. Ele dizia que se o Flaubert precisasse de matar a mãe para escrever um livro como este o faria. Mas isso não fica. Se agora for perguntar a um inglês nas universidades se alguma vez ouviu falar de Eça, ele nem faz ideia. Apesar dessas críticas absolutamente ditirâmbicas do Keats, e do que o próprio George Steiner disse d’“Os Maias”. No momento há uma série de ondas que se erguem, mas isso depois não se incrusta como património permanente.
Em reacção a uma das últimas entrevistas de Lobo Antunes, fez-lhe uma crítica devastadora depois de, a propósito de Fernando Pessoa, este ter questionado se um homem que não fodeu pode ser um bom escritor...Pensa que os escritores portugueses, talvez por não encontrarem um espaço próprio de afirmação cultural, acabam por alinhar no vaudeville para animar as hostes e chamar a atenção?
É aquilo a que eu chamo meter a mão na máquina. O Anatole France contava que um rapazito sofria muito porque os pais não lhe davam atenção, ele fazia trinta por uma linha para os cativar e eles não lhe ligavam meia. Em desespero, o miúdo meteu a mão numa engrenagem mecânica e perdeu um braço. Nesse momento os pais deram por ele. Quando vejo o Lobo Antunes meter-se nessas picardias digo que está a meter a mão na máquina.
Está prestes a encerrar a publicação dos seus volumes de memórias. No espaço da nossa cultura é cada vez mais raro uma figura dar-se ao trabalho de deixar o testemunho do tempo que viveu. Sente-se a gritar para um poço?
Espero que o livro deixe uma marca que, pelo menos, dure algum tempo, que não morra imediatamente a seguir. Procurei fixar momentos, situações, leituras que me marcaram profundamente, nalguns casos a fogo. A minha esperança e ambição é que isso não morra comigo. Que fique.
Nos encontros que teve, literários ou outros, quais foram as figuras que o marcaram decisivamente e que espera que o seu testemunho ajude a que sejam lembradas?
Há duas categorias: Uma é a das figuras públicas, a outra é a das pessoas que me são familiares, o meu sangue. O próximo volume das memórias, o epílogo, é dedicado à minha mulher que faleceu há sete meses. A figura dela e das minhas filhas, são figuras que gostaria que não fossem esquecidas. Entre as figuras públicas, aquelas que me marcaram foram, por exemplo, o José Régio. Alguém que, no convívio pessoal, quotidiano, epistolar, me marcou muito. Outra figura com quem estive um único dia e me impressionou profundamente foi o António Sérgio, o ensaísta. Das figuras que mais me marcaram houve, além destes, dois ou três professores no liceu. Influenciaram-me muito mais do que os professores que tive depois na Universidade. O Dr. Cardigos dos Reis, a Dra. Maria Luísa Soares, de quem eu falo nas minha memórias, são figuras que eu gostaria que ficassem como exemplares pela sua acção no campo da pedagogia, até da sua identidade e marca pessoal, foram pessoas que me deram vontade, quando era um aluno do liceu, de ambicionar ser como eles.
A diferença do liceu dos seus tempos, serve-nos de testemunho de um tempo em que os liceus tinham a verdadeira função de uma verdadeira universidade. Hoje nem o liceu nem, muitas vezes, as universidades têm esse carácter tão abrangente, tão exemplar, na transferência de conhecimentos. E hoje a maioria dos professores universitários não são sequer figuras muito marcantes no contexto público.
Sim, não são conhecidos nem deixam uma marca forte. Houve uma degradação de estatuto muito grave. Já senti essa diferença quando vim do liceu de Lourenço Marques para o Instituto Superior Técnico, onde tive dois ou três professores de grande calibre, mas o resto fazia-me ter saudades dos professores do liceu.
Parece-lhe que os últimos governos têm sabido valorizar o papel do ensino público para afirmar a cultura?
Tem de se aumentar a auto-estima do professor e o prestígio da imagem que eles projectam na sociedade. Os bons professores no meu tempo tinham uma influência enormíssima na sociedade. Eram gente grande. Acho que temos de voltar a transformar os grandes professores do ensino secundário e básico em figuras importantes do nosso meio social."
Diogo Vaz Pinto , em Entrevista a Eugénio Lisboa, publicada no Jornal i, em Fevereiro de 2017

domingo, 25 de junho de 2017

Ao Domingo Há Música

"ENCANTAMENTO é nisso precisamente que reside um dos elementos de sedução da música: ela representa a perfeição de uma maneira suficientemente fluida e ligeira para podermos prescindir do esforço."
                                       Albert Camus, in "Escritos de Juventude" 


Num tempo de algum desencanto, retomar obras que nos encantaram é talvez um caminho para celebrar a vida. 
Polovtsian Dances with Chorus  de  "Prince Igor", de Alexander Borodin, pelo USSR Radio Large Chor/Klavdi Ptitsa e a USSR Symphony Orchestra, sob a direcção do Maestro Svetlanov.


Sobre a obra 
"Químico de reputação internacional, Alexander Borodin (São Petersburgo, 12 de Novembro de 1833 — 27 de Fevereiro de 1887) é hoje mais conhecido como compositor, apesar desta actividade ter sido afectada pela sua carreira académica. Deixou por isso várias obras inacabadas, entre as quais a ópera O Príncipe Igor, embora  se tenha dedicado à sua composição durante 18 anos. Após a sua morte, a obra foi completada e parte da sua orquestração terminada por Glazunov e por Rimski-Korsakoff, sendo estreada em 1890. O libreto foi adaptado pelo compositor a partir de uma epopeia do séc. XII (cuja autenticidade não tem reunido consenso no meio académico) – Canção da Campanha de Igor – que relata as lutas entre um príncipe russo e um povo nómada de origem turca denominado polovtsianos.
As Danças Polovtsianas são uma das secções mais conhecidas de O Príncipe Igor, e encerram o 2º acto. A composição desta secção terá decorrido durante o Verão de 1875, e foram estreadas isoladamente em 1879. As Danças ocorrem num momento da ópera em que o protagonista, o Príncipe Igor, está preso no acampamento do chefe dos polovtsianos, Khan Kontchak, que o presenteia com um espectáculo em admiração pela sua valentia. O filho de Igor, Vladimir, também prisioneiro, está enamorado da filha de Kontchak, e este sentimento está subjacente ao cariz sensual da música desta secção. O ondular das melodias, o uso de instrumentos de sopro e a utilização de cromatismos realçam esta sensualidade e conferem-lhe um apelo particular, que poderá ter levado à sua adaptação na canção “Stranger in Paradise”, do musical de sucesso da Broadway Kismet (1953). Na ópera, as Danças incluem intervenções corais, que costumam ser omitidas em versão de concerto.
Na curta introdução, que acompanha a entrada em palco dos escravos polovtsianos e da corte de Kontchak, apontamentos solísticos nos instrumentos de sopro dão lugar à apresentação de um dos temas mais conhecidos  destas Danças pelo corne inglês: é a Dança das Raparigas de ‘movimentos ondulantes’, conforme descrição da partitura. A Dança dos Homens, caracterizada como ‘selvagem’ na partitura, também com solos de instrumentos de sopro, termina numa breve pausa, seguindo-se a Dança Geral e a Dança dos Rapazes. Todas estas secções vão sendo depois alternadas e revisitadas, num crescendo de energia que desemboca no clímax final."

sábado, 24 de junho de 2017

As grutas

Ponta da Piedade, Lagos, Algarve
As Grutas
"O esplendor poisava solene sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido — quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. E tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superficie das águas lisas como um chão.
As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadiIha da qual os pescadores dizem ser apenas água.
Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.
Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.
O meu olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.
Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras."
Sophia de Mello Breyner Andersen, in Livro Sexto, 1962, Ed. Caminho
Lagos, Algarve

quinta-feira, 22 de junho de 2017

A voz do Mar

A voz do Mar
"O Artur sentiu sobre a orelha uma coisa muito fria, com um som...
- O que é, mãe?
- Não ouves?
Sim, ouvia. Era um som pesado lá ao longe e que depois vinha, vinha e subia, e que depois se tornava mais brandinho, para logo voltar a vir de longe. Parecia música, mas não era bem música. E talvez fosse. Bom, não seria bem música.
- O que é, mãe? - voltou a perguntar. - Que barulho é este?
- É o mar... É a voz do mar...
- A voz do mar?!
- O mar fica longe, mas a voz meteu-se aí dentro. Isto é um búzio.
- E onde nascem os búzios?
- No mar.
-Então é por isso que se ouve...
- Pois é. As ondas fazem um barulho assim quando se ouvem ao longe. E a gente está longe. Não ouves a voz que lá vem?
- Oiço.
- E depois quebra-se assim como as ondas na areia.
- Então isto é o mar? O mar é o oceano. No mapa chamam-lhe oceano. Parece que há vários... . Eu já ouvi aos que andam no quarto ano: é o Oceano Atlântico, o Oceano Índico...
- Não achas que mar é mais bonito?
- Pois é, mar é muito mais bonito.
De repente, fechou os olhos e juntou as duas mãos sobre o búzio, apertando-o contra o ouvido.
- Agora deve ser um navio que lá vem. É mesmo, é, é um navio...
A mãe aproximou o ouvido, desviando o lenço.
- Não ouves?
Não, a mãe não ouvia. Mas o importante para ele era ter o mar apertado entre as mãos. Lá vinha uma onda... e outra."
Alves Redol, in Histórias Afluentes, Publicações Europa América

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Um dia de Sol

A DAY OF SUN

I love the things that children love
Yet with a comprehension deep
That lifts my pining soul above
Those in which life as yet doth sleep.

All things that simple are and bright,
Unnoticed unto keen‑worn wit,
With a child's natural delight
That makes me proudly weep at it.

I love the sun with personal glee,
The air as if I could embrace
Its wideness with my soul and be
A drunkard by expense of gaze.

I love the heavens with a joy
That makes me wonder at my soul,
It is a pleasure nought can cloy,
A thrilling I cannot control.

So stretched out here let me lie
Before the sun that soaks me up,
And let me gloriously die
Drinking too deep of living's cup;

Be swallowed of the sun and spread
Over the infinite expanse,
Dissolved, like a drop of dew dead
Lost in a super‑normal trance;

Lost in impersonal consciousness
And mingling in all life become
A selfless part of Force and Stress
And have a universal home;

And in a strange way undefined
Lose in the one and living Whole
The limit that I call my mind,
The bounded thing I call my soul.
Alexander Search
17.III.1908



"Alexander Search, banda criada pelo pianista Júlio Resende conta com o vencedor do Festival da Eurovisão, Salvador Sobral, como vocalista. “A Day of Sun” é a canção  apresentada .
O reportório que será editado em álbum é baseado na poesia de Fernando Pessoa, escrita em inglês durante a permanência do poeta e escritor na África do Sul nos tempos de adolescência e assinada, principalmente, pelo heterónimo Alexander Search.
Tanto Resende como Sobral, bem como os restantes elementos da banda, adoptam personagens fictícias que representam os vários heterónimos ingleses de Fernando Pessoa. Augustus Search (composição, direcção musical, piano e teclados), Benjamin Cymbra (voz), Marvel K. (guitarra), Sgt. William Byng (electrónica) e Mr. Tagus (bateria) são os cinco elementos dos Alexander Search.
Alexander Search é uma banda de língua inglesa que cresceu na África do Sul, mas que está radicada na Europa, mais concretamente Portugal, "paraíso à beira mar plantado" como dizia o seu maior poeta, Fernando Pessoa. A sua música mistura influências da indie-pop, música electrónica e rock. As letras foram escritas maioritariamente por Alexander Search, membro da banda que morreu tragicamente ainda jovem, mas que granjeia o respeito e admiração dos seus pares como "the greatest conquerer of the beauty of words", o maior conquistador da beleza das palavras.
Augustus Search é o compositor de serviço da banda, toca piano e sintetizadores e faz a direcção musical. Benjamin Cymbra é um cantor extraordinário e traz na sua voz a garra rock n'roll do passado e as angústias e esperanças do presente. O futuro "é a possibilidade de tudo", dizia também Pessoa.
Sgt. William Byng comanda a vertente computacional e electrónica. Marvel K. tem uma guitarrada cortante e espacial. E Mr. Tagus, ex-baterista de jazz, ainda tem na música e 'groove' de África uma das suas maiores riquezas.
Alexander Search é uma banda que gosta de ousar, impaciente, à procura, sempre à procura, da quintessência. Nunca o conseguiu. Este é o disco de mais uma tentativa falhada."
Benjamin Cymbra - Voice
Augustus Search - Keyboards and Piano
Sgt. William Byng - Electronics
Mr. Tagus - Drums
Marvell K. - Electric Guitar

terça-feira, 20 de junho de 2017

Um abraço de afago

Resultado de imagem para Imagens de paisagens queimadas
Perdi a minha família. 
Como é que uma avó vai ao funeral das netas?!
Não são frases que se escutam é a dor que nos chega. A dor daqueles que ficaram e se enxergam  em pungente sofrimento.
As imagens dos incêndios, que se sucedem,  mostram uma devastação chocante: o domínio do negrume, das cinzas e do silêncio que preenche o vazio, a ausência de vida.
Imagens semelhantes já nos foram mostradas, ao longo dos anos. Repetem-se sem que alguém as risque definitivamente. É a inoperância, a passividade de quem tem poder, a incompreensível agitação climática ou/e a difícil e nem sempre eficiente  gestão de recursos?
Mas a dor,  meu Deus, a dor não pode repetir-se incessantemente. E esta atingiu  o limiar do desespero. Morrer entre fogos. Haverá morte mais dolorosa? Não sei. Mas morreram muitos e isso não pode nunca mais repetir-se.
Aos que ficaram e se questionam por que sobreviveram  sem todos aqueles que lhe eram família ou entes próximos não há explicação que se baste. Há , isso sim, um dorido  e longo abraço de afago de quem se sente solidário e em estupefacta desolação.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Para ler em francês


Littérature française
L’homme qui s’envola
Antoine
Bello
L’homme
qui s’envola
Walker a tout pour
être heureux. Il dirige
une florissante entreprise
au Nouveau-Mexique…
(lire la suite)
Les vivants au prix des morts
René
Frégni
Les vivants au prix des morts
Lorsque le douzième coup de midi tombe du clocher des Accoules, un peu plus bas, sur les quais du Vieux-Port, les poissonnières se mettent à crier : « Les vivants au prix des morts ! » … (lire la suite)
Belle d’amour
Entretien
avec l’auteur
Franz-Olivier
Giesbert
Belle d’amour
Experte en amour, pâtisseries et chansons de troubadour, Tiphanie dite Belle d’amour a été l’une des suivantes de Saint Louis… (lire la suite)
De la bombe
Entretien
avec l’auteur
Clarisse
Gorokhoff
De la bombe
Dans un luxueux hôtel d’Istanbul, Ophélie a posé une bombe. Une bombe, elle rêve aussi d’en être une aux yeux de Sinan… (lire la suite)
Retourner à la mer
Raphaël
Haroche
Retourner à la mer
Un colosse, vigile dans les salles de concert, et une strip-teaseuse, au ventre couturé de cicatrices, partagent une histoire d’amour… (lire la suite)
Ma mère, cette inconnue
Entretien
avec l’auteur
Philippe
Labro
Ma mère,
cette inconnue
« Netka, il y a du slave dans ce nom qui sonne clair. Elle a cinquante pour cent de sang polonais dans ses veines…
(lire la suite)
Croire au merveilleux
Entretien
avec l’auteur
Christophe
Ono-dit-Biot
Croire au merveilleux
César a décidé de mourir. Mais une jeune femme sonne à sa porte et contrarie ses plans… (lire la suite)
Le cas Malaussène
Entretien
avec l’auteur
Daniel
Pennac
Le cas Malaussène
« Ma plus jeune soeur Verdun est née toute hurlante dans La Fée Carabine, mon neveu C’Est Un Ange est né orphelin dans La petite marchande de prose(lire la suite)
Le tour du monde du roi Zibeline
Entretien
avec l’auteur
Jean-Christophe
Rufin
Le tour du monde du roi Zibeline
Comment un jeune noble né en Europe centrale, contemporain de Voltaire et de Casanova, va se retrouver en Sibérie puis en Chine, pour devenir finalement roi de Madagascar…
(lire la suite)
Littérature étrangère
Les filles au lion
Jessie
Burton
Les filles au lion
En 1967, cela fait déjà quelques années qu’Odelle, originaire des Caraïbes, vit à Londres.
Elle travaille dans un magasin de chaussures mais elle s’y ennuie, et rêve de devenir écrivain… (lire la suite)
La nature exposée
Erri
De Luca
La nature exposée
Dans un petit village au pied de la montagne, un homme, grand connaisseur des routes qui permettent de franchir la frontière, ajoute une activité de passeur pour les clandestins à son métier de sculpteur…
(lire la suite)
Celle qui fuit et celle qui reste
Elena
Ferrante
Celle qui fuit
et celle qui reste
Après L’amie prodigieuse et Le nouveau nom, Celle qui fuit et celle qui reste est la suite de la formidable saga… (lire la suite)
Ailleurs
Dario
Franceschini
Ailleurs
Quand le notaire Ippolito dalla Libera comprend que ses jours sont comptés, il appelle au chevet du grand lit où il vit depuis des années, son fils unique, Iacopo, et lui révèle le secret de sa vie… (lire la suite)
Le vieil homme et la mer
Ernest
Hemingway
Le vieil homme
et la mer
À Cuba, voilà quatre-vingt-quatre jours que le vieux Santiago rentre bredouille
de la pêche, ses filets désespérément vides…
(lire la suite)
Dans une coque de noix
Ian
McEwan
Dans une coque
de noix
« À l’étroit dans le ventre de ma mère, alors qu’il ne reste plus que quelques semaines avant mon entrée dans le monde, je veille. J’entends tout. Un complot se trame…
(lire la suite)
À la mesure de l’univers
Jón Kalman
Stefánsson
À la mesure
de l’univers
Ari rentre en Islande après
avoir reçu une lettre de son
père lui annonçant son décès imminent… (lire la suite)
Le dimanche des mères
Graham
Swift
Le dimanche
des mères
Angleterre, 30 mars 1924. Comme chaque année, les aristocrates donnent congé à leurs domestiques pour qu’ils aillent rendre visite à leur mère le temps d’un dimanche…
(lire la suite)
Les douze balles dans la peau de Samuel Hawley
Hannah
Tinti
Les douze balles dans la peau de Samuel Hawley
Samuel Hawley n’est pas un père tout à fait comme les autres. C’est un marginal, un esprit libre qui a vécu sur la route pendant des années… (lire la suite)
Aux Cinq Rues, Lima
Mario
Vargas Llosa
Aux Cinq Rues, Lima
Le carrefour des Cinq Rues, qui donne son nom à l’un des quartiers les plus fréquentés de Lima, est ici le décor d’une brillante comédie de moeurs… (lire la suite)


Nouveautés
« Un roman ultrasensible et mélancolique qui réaffirme le pouvoir et les limites de la fiction. » Élisabeth Philippe, Les Inrockuptibles

« On n'arrive plus à lâcher ce livre qui vous colle aux mains, à la tête. » Patrick Williams, Elle

PRIX LIVRE INTER 2016
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Dans une ambivalente oscillation entre le roman et l'autobiographie, La faille explore avec une précision clinique les blessures d'une galerie de personnages d'une magnifique opacité. Au-delà d'une étude...
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#PDLFolio : La première édition du Prix des Lycéens Folio a réuni 556 établissements et recueilli près de 5000 votes. L’orangeraie de #LarryTremblay remporte le prix !

Larry Tremblay a reçu hier son prix des mains de David Foenkinos, parrain de l’édition 2016-2017, en présence de 80 professeurs et élèves participants.

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Retrouvez-le dans les librairies participantes à l'opération de l'été (2 Folio achetés = un cadeau offert) ! Qui ? Notre totebag de l'été avec sa citation d'#Hemingway bien sûr ! Saurez-vous comment le remplir ? Attention toutes nos nouveautés ne rentreront pas en même temps dans le sac ! #LireEnFolio
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24 mai 2017
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