quinta-feira, 25 de maio de 2017

Eugénio Lisboa faz 87 anos

Talento é acertar um alvo que ninguém acerta. Genialidade é acertar um alvo que ninguém vê.
                                           Arthur Schopenhauer

Celebrar a vida de Eugénio Lisboa é celebrar a Cultura. Ano após ano, não cessa de surpreender pela beleza e largueza com que semeia Cultura. A sua obra, nunca acabada, é um repositório magnânimo  e um manual precioso de como se deve fazer Cultura,  em qualquer parte do mundo. Portugal tem nele o obreiro mais insigne e engenhoso da actualidade.
Ler Eugénio Lisboa é descobrir a transcendente magia  da Literatura.
Ouvir Eugénio Lisboa é viajar por um mundo cheio de inesperados assombros que nos deslumbra e desassossega.
Conhecer Eugénio Lisboa é verificar como a simplicidade, a humildade vestem sempre um grande Homem.
A sabedoria tem nele uma vantagem: a partilha. Dá-no-la  em doses gigantescas , espalhando-a por sumptuosos ensaios, magníficas crónicas,  extraordinárias intervenções,   valiosos livros e na imperdível e rica obra memorialística, registada em seis volumes, com data prevista   para novo volume, no próximo Outono. 
Todos os títulos das obras de Eugénio Lisboa são ricos e sugestivos. Requisita-os com argúcia e apropriação que só um espírito sagaz e culto sabe fazer.
" Acta Est Fabula " é o título da vasta obra onde a memória se estende. Dos idos tempos de Lourenço Marques a S. Pedro de Estoril, a voz de Eugénio Lisboa faz a narração de uma vida singular: a sua. Com  ela,atravessamos quase um século  de descoberta e de encontros com vultos importantes da Literatura Nacional e Universal. Mas é Eugénio Lisboa que nos toca, que nos ensina como se constrói uma vida aberta à aprendizagem, ao conhecimento. 
Eça de Queiroz, o notável autor de "Os Maias", afirmava: Não tenha medo de pensar diferente dos outros, tenha medo de pensar igual e descobrir que todos estão errados! 
Eugénio Lisboa não teve medo  de o fazer. Nunca pensou igual. Fê-lo diferente e proficuamente.
A nós ,cumpre agradecer-lhe por ter praticado  a diferença ao produzir uma  obra que nos faz  mais felizes e igualmente mais sábios. 
E, porque homenagear um autor é celebrar a sua obra, transcrevemos um excerto do segundo volume das suas Memórias, Acta Est Fabula.
A nossa homenagem, hoje e sempre,  Eugénio Lisboa.
Lourenço Marques

VIAGEM
                                        “Aparentes senhores de um barco abandonado,
                                         nós olhamos, sem ver, a longínquas miragens.
                                         Aonde iremos ter? [...]
                                                  David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem

Saído o velho navio da barra, encontrámo-nos no dorso imperioso do Índico. O barco estava decrépito e em breve viríamos a saber que deveria ser a sua última viagem ou uma das últimas, antes de ir para a sucata.
 A viagem que, havia muito, me fora prometida, tinha começado, deixando para trás, intoleravelmente, a Lourenço Marques da minha infância e adolescência de descobertas e espantos. Esta não era apenas a minha maior viagem: era, na realidade, a minha primeira viagem. As que antes fizera – entre Lourenço Marques e Porto Amélia, no norte de Moçambique – tinham ocorrido em idades de que não guardo memória. Tirando modestas excursões – não frequentes – à Namaacha, a poucas dezenas de quilómetros de Lourenço Marques, vivera sempre na minha cidade natal. Joanesburgo, na África do Sul, era só para os mais ou menos endinheirados. Fora também a Marracuene – a trinta quilómetros – e à Catembe, do outro lado da baía. Viagens, portanto, só as da imaginação e as das leituras intensas dos grandes autores que ia descobrindo. Das páginas dos romances de Anatole France e Roger Martin du Gard, vislumbrara Florença e Paris, como, das páginas de Lawrence e das irmãs Brontë, entrevira paisagens inglesas, ou, das de Thomas Mann, pedaços da Alemanha, ou, com Pirandello e D’Annunzio, penetrara em cidades e vilas de Itália. Era também um modo de viajar – a partir da janela do meu quarto, na casa da Rua Mendonça Barreto. Já falei de tudo isto, no 1.º volume destas minhas memórias. E só o repito aqui, porque serve de fio condutor ou de ponte entre um livro publicado há três anos e este que agora tento redigir.
O ano em que esta viagem se iniciava era o de 1947, o mês, Setembro, e o dia, 10. Fazia um sol forte em cima do convés do “Nova Lisboa”: paisagem de ferragens desarrumadas, velha e desgastada, quase pelintra, a assinalar, de modo incompetente e desastrado, o que eu sonhara glorioso: o dia do começo da minha antecipada odisseia. Tudo era negativo: o cheiro da comida vomitada no convés por alguns dos meus companheiros de viagem, acometidos do enjoo provocado pela vaga larga do oceano; a decrepitude da nau; o meu próprio enjoo. Um deles, mais afoito, resolveu, temerariamente, curar o mal de forma radical (mordedura de cão cura-se com pelo do mesmo cão): após a agonia do vómito, voltou à sala do almoço e repetiu a refeição. A teimosia surtiu efeito.
Eu recusei simplesmente ingerir fosse o que fosse e fiquei-me a olhar, desamparado, para a desolação do convés do navio, a que nem o Sol dava vida: todos os meus sonhos desfeitos, na amargura fétida daquele palco indigno de tantas esperanças longamente alimentadas e acarinhadas. Foi a primeira e funda desfasagem, por mim sentida, entre o sonho e a realidade. Sentia-me pavorosamente logrado: o navio era uma paisagem hostil, feia, quase infame, indigna de tão ínclitos sonhos.”

Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memória-II-Lisboa, (1947-1955), Editora Opera Omnia, Out. 2016, pp. 15,16

1 comentário:

  1. Meu caro Eugénio,
    Homem de eclético saber, culto, memso muito culto, amigo de citações e aforismos, Regiano como já não existe nenhum, e amigo do seu amigo, e dotado de uma simplicidade estóica e engenhosamente bela e sábia.
    Parabéns!
    mesmo senhor de um profundo desgosto, lembre-e que a vida é para esgotar, a vida continua.

    Abraço demorado...

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