sexta-feira, 5 de maio de 2017

Aceitar ou não aceitar o novo

Le Rêve (The Dream) , Pablo Picasso , 1932
Aceitar ou não aceitar o novo
Por Eugénio Lisboa       
“As obras de arte – literária ou outra – trazem sempre algum desassossego, ao tentarem inserir-se na hierarquia mais ou menos estável do universo a que supõem pertencer. Mas não é fácil – ou não costuma ser fácil – fazer-se essa inserção. O génio inovador, pela sua singularidade, pelas diferenças que acarreta consigo, por uma iluminação nova que dá ao aparentemente percebido, torna-se incómodo e provocador. Dizia Goethe que “é um grande triunfo do génio fazer com que o comum pareça ser novo.” E o filósofo americano William James punha o problema, por outras palavras, de sentido não muito diferente: “O génio significa pouco mais do que a faculdade de apreender o real de um modo inabitual.” É este modo “inabitual” de apreender o real, é este mostrar novo o que parece velho, que insinua, aos desprevenidos, a perigosidade desse mesmo génio e do novo que consigo acarreta. Não é por isso de estranhar que os grandes escritores, ao aparecerem, tenham sofrido tratos de polé, mesmo às mãos de grandes críticos ou mesmo de outros grandes escritores (seus pares). Neste aspecto, Sainte-Beuve bateu o recorde do mau acolhimento prestado aos seus grandes (e emergentes) contemporâneos. Falando, por exemplo, de Stendhal, num dos seus famosos Lundis ( o de 4 de Janeiro de 1854), dizia isto: “Os seus personagens não são seres vivos, mas, antes, autómatos engenhosamente construídos.” E o grande Flaubert não fez melhor figura: “Quanto a Beyle, nunca compreendi o entusiasmo de Balzac por tal escritor, após ter lido o Rouge et Noir” (sic, carta a Louise Colet, 1852). O próprio Balzac não teve melhor sorte, nem às mãos de Sainte-Beuve, nem às de Flaubert. O primeiro – em Portraits Contemporains – debita esta jóia: “Ele [ Balzac ] tem todo o ar de estar ocupado a acabar como começou...por cem volumes que ninguém vai ler.” E o segundo cuspinhou um veneno não menos pérfido: “Que homem teria sido Balzac se tivesse sabido escrever!” Proust também encontrou “resistências” de não pequeno porte: a começar pelo eminente André Gide, que nunca lhe perdoou os tics mundanos nem o passar o melhor do seu tempo a cheirar o rabo às marquesas (sem falar no, para ele, pecado maior, de ter transformado um Albert numa Albertina...) E Paul Souday, eminente e influente crítico do Temps, caçoava, abundantemente, com a falta de gramática do autor da Recherche: “Acrescentai que as correcções pululam, que os particípios do Sr. Proust têm, como dizia um personagem de Labiche, um hábito lixado, por outras palavras, que eles concordam mal; que os conjuntivos não são mais conciliantes nem mais disciplinados, e não sabem mesmo defender-se contra a invasão do indicativo.” Paul Souday até era capaz de ter razão, gramaticalmente falando (pela mesma altura, embirrava também com os conjuntivos de outro grande romancista francês, então no começo da sua carreira: Roger Martin du Gard). O problema é que a grandeza de um escritor não se resolve apenas nas baias estreitas de uma gramática certinha. Ainda sobre Proust, este testemunho vergonhoso (já mais de vinte anos após a sua morte): “Proust é judeu, a sua arte é essencialmente talmúdica e traz as marcas da decadência e da deliquescência da raça eleita.” E ainda isto: “Esse sábio borboletear e esses subtis eflúvios literários são bem feitos para fazer pasmar os snobs, representantes de uma burguesia envilecida e arruinada, que se compraz na « vidência total», mas não são alimento, não podem sê-lo, de espíritos sãos, fortes e puros. Não é com estupefacientes que se forja uma raça.” (Au Pilori, 11.3.1943, sob a Ocupação). Esta denúncia feita também para benefício do exército alemão de ocupação mostra até que limites da infâmia pode chegar a chamada “resistência à mudança”. Ela é lamentável, mas deve dizer-se, querendo ser realista, que é normal. O romancista D. H. Lawrence, autor do celebrado romance Sons and Lovers não encontrou melhor maneira de demolir o filósofo Bertrand Russell (cujo cérebro fulgurante o indignava), do que dizer ao ficcionista William Gerhardie: “Já o viu em fato de banho? Pobre Bertie Russell! É um espírito sem corpo.” Russell devolver-lhe-ia a farpa, nestes termos acutilantes: “Lawrence insere-se numa longa linha de gente, que começa em Horácio e acaba em Hitler, gente cujo motor é o ódio derivado da megalomania, e arrependo-me de já ter acertado tão pouco ao avaliá-lo.” Nenhum deles era sensível aos valores de inovação do outro.
Em todos os sectores, não só no campo (de areias movediças e certezas poucas) da arte, se verifica este fenómeno muito humano de resistência à mudança. Mesmo em domínios de resultados mais verificáveis (as ciências, as tecnologias), a resistência à mudança é corrente e os futurologistas fizeram, com frequência, figura de parvos (incluindo cientistas eminentes, que disseram os mais rotundos disparates).
Em Portugal, no passado, foi como em todo o lado. Porém, de há poucas décadas para cá, as nossas elites (e por aí abaixo) passaram a revelar-se de um acolhimento à mudança e à inovação verdadeiramente surpreendente: acolhem sempre, com uma grande fluência, rapidez e entusiasmo, a inovação, mesmo a mais bizarra. Basta que um “clerc” de grande prestígio (merecido ou não) declare uma obra “genial” ou apenas “deslumbrante” ou “estimulante”, para que toda a arraia miúda se derrame em orgasmos de admiração, que invadem mestrados, doutoramentos e pós doutoramentos. Absorver a inovação já não requer tempo, meditação, estudo, paciência, leitura obstinada... Damos ao mundo, como se diz por aí (e os brasileiros também, parece...), um exemplo histórico de não resistência à mudança. Seria belo, se fosse sincero e profundo. Mas sê-lo-á? Dar, perante o novo e o diferente, saltos imediatos de contentamento e palmas prematuras de adesão – o entusiasmo aprovador antes da reflexão – parece-me suspeito. Andar-se-á a ser cândido ou simplesmente a “faire semblant”? A nossa república das letras estará a transformar-se num exemplo edificante ou, antes, numa feira de vaidades ocas? Ver-se-á."
Eugénio Lisboa, em artigo publicado na rubrica “Pro Memoria” do  JL 

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