sexta-feira, 12 de maio de 2017

A amizade em Aristóteles

          
 A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos.
                                        Aristóteles, EN VIII, 3, 1156 b 6-7

"Na verdade, na amizade perfeita, é de esperar que os amigos se encarem entre si como segundos eus. Parcialmente nesta base, Aristóteles argumenta que temos razão para amar os outros como nos amamos a nós — e temos realmente razão para nos amarmos a nós. Uma vez feita a distinção entre a auto-estima apropriada, que se funda numa concepção correcta do eu como ser racional, e não como um egocêntrico que procura o prazer, o dinheiro ou a honra, temos razão para considerar que temos valor intrínseco (Ética a Nicómaco 1168b 11-1169a 7). Nas amizades perfeitas entre parceiros igualmente virtuosos, contudo, um amigo irá partilhar o carácter do outro, de modo que o que um valoriza em si reconhecerá também no outro. O bem amado em nós será então igualmente realizado e amado no nosso segundo eu. Não havendo qualquer distinção relevante entre estas formas de bondade, um amigo, sugere Aristóteles, terá razão para sacrificar bens, riqueza e até a vida, pelo outro. Isto, é claro, é a passagem crucial, ou tentativa de o fazer, do eu para o outro, e portanto do egoísmo estrito para uma forma inegável de altruísmo, envolvendo um amigo na conduta centrada no outro.
Aristóteles sustenta esta sugestão apelando às condições originais do bem mais elevado, argumentando que a amizade é necessária para a auto-suficiência, a condição que quando é satisfeita dá origem a uma vida a que nada falta (Ética a Nicómaco 1097b 6-16). Como eudemonistas temos então motivação para procurar a nossa própria felicidade; alcançamos o florescimento humano, contudo, apenas na companhia de amigos indispensáveis. Quando temos amigos de grande bondade e carácter, reconhecemos previamente o seu valor: não são bons por serem nossos amigos, são nossos amigos por serem bons, e manifestam os traços que correctamente reconhecemos como bons em nós mesmos. Objectar que estaríamos assim a usar tais amigos em virtude da nossa própria felicidade é confundir a amizade perfeita com as amizades utilitárias.
De facto, o tratamento que Aristóteles dá ao fundamento filial do altruísmo tem dois aspectos discerníveis, que dependem talvez um do outro. Não os apresenta como argumentos diferentes, apesar de parecer que dependem de considerações crucialmente diferentes. É melhor apresentá-los emparelhados, de modo a sublinhar as suas diferentes fontes. Este processo ajuda também a destacar uma componente dos seus argumentos que muitas vezes passa despercebida, nomeadamente que se apoiam no que Aristóteles encara agora como doutrinas estabelecidas nas suas teorias metafísicas e psicológicas.
O primeiro argumento leva a sério a linguagem dos amigos como segundos eus (SE) (Ética a Nicómaco 1107b5-14):
  1. Se somos bons e virtuosos, então encaramo-nos adequadamente com amor-próprio.
  2. Se essas características são dignas de amor tal como ocorrem em nós, então não são menos dignas de amor se ocorrerem nos nossos amigos, que são os nossos segundos eus.
  3. Porque são nossos iguais em virtude, os nossos amigos manifestam na verdade as mesmas boas características que nós manifestamos.
  4. Logo, as boas características manifestadas pelos nossos amigos são dignas de amor.
  5. Se as suas características são dignas de amor, então isto dá-nos razão para cuidar dos nossos amigos por causa de quem são.
  6. Logo, temos razão para cuidar dos nossos amigos por causa de quem são (Ética a Nicómaco 1156a 19-11, 1156b 10, 1156a 17-18).
Com este género de base, Aristóteles conclui que “tal como o ser de cada pessoa é digno de escolha, também o ser de um amigo o é” (Ética a Nicómaco 1170b 7-8).
Christopher Shields, em "Viver bem: a ética de Aristóteles", Universidade de Oxford, Tradução de Desidério Murcho

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