segunda-feira, 3 de abril de 2017

Jack London

Jack London
Jack London, o mito permanente
Por Irapuan Costa Júnior
“Um dos mais vigorosos autores norte-americanos, Jack London, não teve até agora uma biografia à altura de sua vida, movimentada o bastante para preencher um livro onde se mesclariam aventura, drama, política, romance e tragédia. Fora alguns fracos relatos biográficos aqui e ali (incluindo um , escrito pela filha de Jack, Joan London, em 1938), dois autores intentaram descrever a sua vida: Irving Stone, em 1938, e mais recentemente, Alex Kershaw, em 2000. O livro de Stone foi traduzido e lançado, há anos, no Brasil, com o título: “A Vida Errante de Jack London”. Deixa muito a desejar, levando em conta que o autor fez trabalhos melhores, incluindo uma biografia de Van Gogh, e uma de Michelangelo, levada ao cinema no filme “Agonia e Êxtase”, com Charlton Heston.
Talvez os métodos de pesquisa, relativamente pobres na década de 1930, tenham limitado o trabalho de Stone. Kershaw teve mais sucesso, embora não se possa dizer que seja uma biografia definitiva. Com mais fontes ao seu alcance, encontrando dados organizados em bibliotecas, universidades e fundações mais recentes, ele conseguiu construir um livro mais profundo, aprimorado e ilustrado. Pena que ainda não haja tradução em português. Mas quem quiser conhecê-lo, pode conseguir a versão espanhola, “Jack London — Un Soñador Americano”, da Editora La Liebre de Marzo, de Barcelona. A internet põe qualquer livraria do mundo ali na esquina.
London escreveu o que viveu, e seus livros têm três cenários distintos: o mais apreciado é, sem dúvida, o da corrida do ouro no Alaska, vindo depois o das ilhas até hoje deslumbrantes do Pacífico Sul e finalmente o espaço político socialista (e comunista) norte-americano do fim do século XIX e início do século XX. Nesses três cenários, Jack London gastou intensamente a sua breve existência, viveu as emoções mais profundas, correu os riscos mais mortais, travou as mais duras batalhas. De facto, tinha o que relatar. Cumpriu o que prometia: “Mais vale uma existência curta, mas brilhante. Não passarei meus dias tentando prolongá-los; prefiro ser cinzas a ser pó”. Morreu aos 40 anos. Uma emenda: além dos relatos nesses três espaços que mencionei, Jack London também deixou uma produção curta, mas de qualidade, no que poderíamos classificar como ficção científica. E uma novela autobiográfica, “John Barleycorn, ou Memórias Alcoólicas”, na qual narra a luta com o alcoolismo.
Não podia, como todo homem inteligente, deixar de se perguntar: de onde viemos, para onde vamos? London buscou respostas em algumas fontes conhecidas: Spencer, Darwin, Marx e Nietzsche. Teve como livro de cabeceira, durante anos, “Os Primeiros Princípios”, de Herbert Spencer. Encantou-se com Charles Darwin depois das aventuras no vale gelado do Yukon, onde a sobrevivência era privilégio dos mais fortes. Achou que Karl Marx tinha as respostas quando a sensibilidade que ele escondia atrás de sua fortaleza indagava sobre as injustiças sociais. Foi um militante comunista. Mas en­­­cantava-se com a ideia de que havia seres superiores, mais fortes e mais aptos — condutores — destinados a apontar caminhos para as massas, como interpretava nas leituras de Friedrich Nietzsche (1844 — 1900), justamente o filósofo que inspiraria Hitler, meio século depois, a tentar esmagar o comunismo. No último ano de vida, ainda buscou respostas noutro psicólogo e psiquiatra: Carl Jung.
Jack London teve uma infância pobre e difícil, na companhia da mãe, Flora Wellman Griffith, abandonada pelo primeiro marido, e pai de Jack, que nunca o reconheceu, William Chaney, quando o garoto tinha apenas alguns meses. Aos quatorze anos, logrou terminar a escola secundária, mas a penúria não só o fez interromper os estudos, como o obrigou a um trabalho duro, de 12 horas diárias ininterruptas e miseravelmente pagas, numa fábrica de São Francisco, onde havia nascido. Vivia então em Oakland, do outro lado da baía de São Francisco. Autodidacta desde essa idade, nas horas vagas frequentava a biblioteca de Oakland. E foi então que, para fugir às agruras da vida, começou com a bebida, vício que não deixaria — embora o negasse — até a morte prematura. Outra consequência desses tempos duros foi fazê-lo abraçar, mais tarde, o comunismo, que nada mais era, à época, do que uma teoria promissora de igualdade e abastança, e só mais tarde viria, na prática, a mostrar a sua crua face de utopia esmagadora. London, em busca de  uma independência — já falava em ser escritor — passou por uma fase em que pilhava ostras nos viveiros da baía de São Francisco, em camaradagem com outros jovens piratas. Depois mudou de lado, e empregou-se na guarda costeira, que perseguia os piratas.
Aos 17 anos,trabalhou  num navio que se dirigia, na caça às focas, ao gelado Mar de Bering. Quase um ano no mar e ele desembarcou de novo ,na baía de São Francisco com algum dinheiro — pouco — no bolso, mas muitos livros lidos a bordo, muitas aventuras vividas e muitas ideias na cabeça para novelas e contos futuros. Foi dessa experiência que tirou mais tarde um dos livros de maior sucesso de sua carreira (e da literatura americana): “O Lobo do Mar”. O pontapé inicial de sua vida de escritor foi dado nessa volta: London ganhou um concurso para autores jovens que um jornal de São Francisco havia aberto, com o conto “Tufão nas Costas do Japão”. Não havia feito nada mais que contar, com seu talento nascente, uma experiência que o havia marcado para sempre, e que não se cansaria de mencionar em suas conversas: o quase naufrágio do navio caça-focas em que estava, quando enfrentou um furacão na costa japonesa. Passou dois anos acompanhando pelos EUA desempregados pela depressão de 1890 e frequentando reuniões promovidas pelo Partido Comunista Americano, uma criação de imigrantes alemães da década de 1840, a que Jack aderiu com entusiasmo juvenil, mesmo porque já era leitor de Marx.
Foi aos vinte anos, em 1896, que fez a última tentativa de concluir um ensino formal. Estudando só, e com muito esforço, desempregado, conseguiu ser aprovado na admissão ao curso de letras da Universidade de Berkeley. Não ficou um ano. Tinha que trabalhar, cuidar da mãe. E era muito inquieto para o formalismo dos bancos de escola. Convencido de que havia de ser escritor, começou a enviar trabalhos para revistas americanas, sem sucesso. Foi obrigado a aceitar alguns empregos menores para sobreviver, até que ouviu falar de Klondike, no noroeste do Canadá, onde o ouro era abundante e a fortuna era fácil. Conseguiu um empréstimo com a irmã de criação (Flora, a mãe, havia se casado pela segunda vez, com um viúvo, John London, que tinha um casal de filhos, e de quem Jack adoptaria o sobrenome) e, junto com o marido dela, partiu para o Alaska. Jack tinha 21 anos. Viajaram num navio onde se empilhavam centenas de aventureiros ansiosos pela colheita de ouro. Pouquíssimos conseguiriam algum sucesso, e muitos encontrariam a morte pela cansaço, pelo congelamento, pela fome, pelas disputas entre eles mesmos ou com os nativos ferozes. Depois de um ano e muitas dificuldades, incluindo um grave ataque de escorbuto, Jack estava de volta a São Francisco. Sem um grama de ouro sequer, mas com uma fortuna intangível na memória: lembranças para mais contos e novelas  a que ele chamou de o silêncio branco dos homens e animais que o desafiaram. Jack agora só queria escrever.
Leitor de Herman Melville, Robert Louis Stevenson, Zola, Flaubert e Turgueniev, sonhava com o sucesso deles. Acima de tudo, invejava Rudyard Kipling, então o escritor mais famoso do mundo. Chegou a copiar, à mão, as obras de Kipling, pensando assim absorver seu estilo. Logo London, dizendo-se comunista e admirando o mais colonialista dos autores. Durante quase um ano, a máquina de escrever de Jack trabalhou muito, mas os resultados não vinham. Jornais e revistas publicaram alguma coisa, sem grande repercussão. Por sobrevivência, London chegou a ocupar um posto inexpressivo nos correios, até, que em 1899, a maior revista da costa oeste americana, “Overland Monthly”, publicou o seu conto — que até hoje faz parte das grandes antologias do conto mundial — “O Silêncio Branco”. O sucesso foi imediato, e lhe abriu as portas de outras publicações, inclusive da então maior revista americana, a “Atlantic Monthly”, que fechou com ele um contrato para mais algumas estórias. Com a fama crescente vieram os contratos com as editoras, revistas e jornais, mas nunca a fortuna. London gastava sempre mais do  que ganhava e vivia atolado em dívidas. Alguns anos depois, num artigo na revista “The Editor”, daria conselhos aos pretensos escritores, e usaria uma frase que seria repetida e tornada famosa por Churchill décadas depois, no começo da Segunda Guerra: “Não deixe seu trabalho para escrever, a não ser que ninguém dependa de você. De todas as classes de obras, a ficção paga melhor e quando tem qualidade, se vende mais fácil. Uma boa piada vende melhor que um bom poema e, visto que você verteu sangue, suor e lágrimas, estará mais bem remunerado…”.
Entre 1902 e 1915 foram publicados os seus livros de maior sucesso, alguns ainda sobre o Yukon: “A Filha das Neves”, “O Chamado Selvagem” e “Caninos Brancos”, outros sobre a vida no mar: “O Lobo do Mar” e “O Motim do Elsinore”, os politicamente engajados: “O Tacão de Ferro” e “Martin Eden”, e os science-fiction: “Antes de Adão”, “A Praga Escarlate” e “O Vagabundo das Estrelas”. O livro “A Estrada”, de Cormac McCarthy, tem muito de “A Praga Escarlate”. Houvesse o que houvesse, Jack escrevia mil palavras por dia. Só assim pôde produzir tanto em poucos anos de trabalho (e de existência). Mas uma vida de bebedeiras, drogas (sim, já existiam) e péssima alimentação cobrou a conta. Ele não estava disposto a pagar. Sua saúde deteriorava-se rapidamente. O antigo boxeur tornara-se frágil. Matou-se, ingerindo morfina, em 1916, aos 40 anos. Alex Kershaw, inexplicavelmente, esconde ou lança dúvidas sobre esse acto. Inútil. É sabido que London até calculou a dose fatal antes de tomá-la.
Bonito, atlético, bem falante, e, no final, famoso, foi homem de muitas mulheres. Nunca amou, na verdade, a primeira mulher, Elizabeth (Bess) Madern, que lhe deu duas filhas, e que guardou ressentimentos até a morte por ter sido abandonada e trocada pela melhor amiga, Charmian Kittredge, ela, sim, o grande e permanente amor, correspondido, de Jack London, que teve ainda, ao lado de muitas aventuras ocasionais, um amor platónico: a bela judia Anna Strunsky, que acabou se casando com outro, para grande desgosto de Jack, mas que manteve correspondência com ele, por quem tinha grande admiração e amizade, até sua morte.
London é muito lido, até hoje, e não só nos países de língua inglesa. E já lá vai um século desde que morreu. Por que é tão lido? Jack London, como todo grande escritor, consegue agitar a  nossa alma. Aprofunda algumas de nossas perguntas mais renitentes e até consegue responder a outras. O faz, às vezes, num simples conto. London foi, como Tchekhov, acima de tudo um grande contista. Sugiro ao leitor dois contos,  reveladores da sabedoria da vida: “O Combate” e “As Tartarugas do Tasman”.
Os romances políticos, ainda que de um vigor incomum, não são o melhor de sua produção. Não foi Marx o seu maior inspirador. O que conta mesmo, em sua obra, e é conhecido por isso, é a descrição do que se convencionava chamar “struggle for life”. A luta que todos enfrentamos, em alguma ocasião, por nossa existência. O instante fatal, a que poucos conseguem emprestar o valor e o brilho — mencionado por Kipling admirado por London. E, embora com o coração tocado pela solidariedade, pela fraternidade e pela brandura, Jack London relatou o que viveu, e viveu a dura disputa pela sobrevivência, o homem contra outros homens, contra animais e contra a natureza, ora perdendo, ora vencendo.
Lutador pela igualdade entre os homens, sempre exaltou os mais fortes, e nunca deixou de enunciar a lei da natureza que contempla os mais aptos. Acreditou mesmo nessa igualdade inexistente? Defensor do internacionalismo, viu no Britânico qualidades superiores, de desbravador e civilizador, a ponto de sempre falar no “fardo do homem branco”, do poema de Kipling, cujos primeiros versos são mais que sugestivos: “Toma o fardo do homem branco/ Desterra o melhor de tua prole/ Obriga teus filhos ao exílio/ A servir as necessidades dos conquistados/ A esperar com pesadas cadeias/ Sobre um povo abatido e selvagem/ As recém aprisionadas desconsoladas pessoas/ Meio demónios e meio crianças”. O facto é que a lei da vida está presente em seus escritos mais atraentes, mais vigorosos e até mais verazes. Foi ela, com sua dureza, e não outra lei qualquer, por mais ideal e encantadora que fosse, que ele encontrou pela existência afora, como não poderia deixar de ser. Uma lição de sua obra é a de que podemos sonhar com outros mundos, mas a natureza inexorável nos traz de volta a este onde vivemos, tão logo abramos os olhos. Onde a brandura é mais rara que o ouro. A natureza não derrama lagrimas.” Irapuan Costa Júnior, em Ensaios, Revista Bula, Brasil

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