terça-feira, 28 de março de 2017

Viajar com Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa, 2017
… viajar é sempre um desafio mental, e até no que tem de mais difícil viajar pode ser uma iluminação.
Paul Theroux, A Arte da Viagem

Os viajantes mais apaixonados também são sempre leitores e escritores apaixonados.
Paul Theroux, A Arte da Viagem

Viajar com Eugénio Lisboa

Assisti , em 21 de  Fevereiro, à apresentação do último livro de Eugénio Lisboa, “Diário de Viagens Fora da Minha Terra”, no Cine-Teatro Garrett, durante o Festival Literário Correntes d’Escritas. Contrariamente ao famoso desafio  lançado pelo patrono  deste Teatro, Almeida Garrett, em “Viagens da minha Terra”,  Eugénio Lisboa convida-nos a viajar fora da sua ( nossa) Terra.
Aceitamos o convite e, sem que tenhamos partido, tomamos conhecimento de que esta obra diarística é  composta por entradas relativas a viagens realizadas durante o período abrangido pelo último e V volume das Memórias do autor. Trata-se, por isso, de um anexo àquela obra .
Curiosos, partimos, então, em viagem com Eugénio Lisboa. O voo primeiro destina-se a Montevideo. O registo do “Diário de Montevideo “ abre-se  a 14.09.1996
Voando para Montevideo.
Ontem todo o mundo avisava que era sexta-feira, dia 13. Cuidado, o melhor é não sair de casa. Apesar dos avisos, saí para o aeroporto. A viagem  era com escala por Madrid. Chegava ali às 21h15 e partia para Montevideo às 23h00. À chegada, a surpresa: havia um atraso grande e a partida de Madrid ficava para as 7h00 da manhã seguinte. Noitada no “Hotel Barajas”. Estava confirmada a previsão de azar. “Que las hay, las hay”, dirão os supersticiosos…
Nesta celebração pessoana, que vai ter lugar em Montevideo ( capital da cultura da América Latina, em 1996) , estava prevista a vinda do Saramago que, afinal não vem. Porque seria? A mim torna-me a viagem simplesmente mais agradável.
Eugénio Lisboa ia a Montevideo para participar num Seminário sobre Fernando Pessoa. Com ele, outros palestrantes que se lhe juntariam  em interessantes conversas e em passeios pela cidade:
15.09.1996
O dia está chuvoso e feioso. Chegado ontem à noite, depois de uma viagem tormentosa e alongada de 10 horas em cima das já muitas previstas, entrei no hotel, arrasado, de barba de mais de 24 horas – e dei com a Cleonice ( Berardinelli) e a Leyla ( Perrone Moisés), no hall, discutindo pormenores. Fui tomar banho, lavar os dentes, fazer a barba e desci para o jantar. Conversa animada e very friendly. Falámos de pessoanos e de feridas e intrigas pessoanas.
(…) Montevideo parece uma cidade bem maior  e mais interessante do que o meu preconceito  e a minha ignorância tinham feito supor.
Já Flaubert dizia –“Viajar torna uma pessoa modesta – vê-se como é pequeno o lugar que ocupamos no mundo. “ Acompanhar Eugénio Lisboa nunca deixa de ser um exercício de aprendizagem e de intensa descoberta.
Montevideo
19. 09.1996
O seminário chega hoje ao fim. (…) Hoje, falo eu, no fim. Estarão todos já cansados e fartos e mortos por se rasparem para casa. E eu a debitar-lhes as náuseas e os exílios de Pessoa.
(…) Ontem, com o Fernando Martinho e a Cleonice, fui, pela segunda vez, ver o Museu Torres Garcia. A secção de retratos é impressionante: o Goya, o Filipe II, o Leonardo, o Cézanne, o Greco e o Ticiano nunca mais me “aparecerão” a não ser nos traços inesquecíveis que lhes deu Torres Garcia. É, sem dúvida, um grande pintor.
Na manhã de ontem, passeio, compra de algum artesanato  e visita à Biblioteca Nacional, com a Cleonice. Investigámos um pouco o ficheiro. Eça de Queirós, bastante bem representado ( 1,5 cm de fichas). Machado de Assis, ainda melhor (2 cm de fichas). De Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, quase nada. De Pessoa, alguma coisa (pouca), mas nada do núcleo duro. Apenas o “Fausto”, “ O Banqueiro Anarquista” e quase mais nada.

Eugénio Lisboa dissertou sobre Fernando Pessoa, numa alocução subordinada ao título “ O exílio e o reino”,no final do Seminário, conforme estava previsto. Abriu e fechou este evento com  a claridade e justa sabedoria que lhe permite o seu extenso conhecimento e farta cultura. Dissertação que foi saudada e assaz ovacionada por todos os presentes.
Entretanto, as viagens prosseguem. Esperam-nos Los Angeles, Peru, Viena, Budapeste, Praga, São Tomé , Havana, Paris e Marrocos.
Se Peru, Viena, Budapeste, Praga e Havana foram viagens de recreio ou de carácter pessoal, as restantes tiveram como finalidade a intervenção em eventos culturais ou  literários. No entanto, há em todas estas viagens um traço comum , um denominador de intensa riqueza: o olhar perspicaz e profundo de um grande intelectual. Ver através desse olhar é ver diferente.
Senão vejamos:
Diário de Viagem ao Peru
22.08.2005
No avião, a caminho de Lima, via Caracas. Chegaremos à Venezuela, dentro de pouco. Agosto – o avião à cunha. O turismo de massa: um dos monstros congeminados  pelo século XX e agravando-se imparavelmente no XXI.
Durmo e leio, leio e durmo.  Faço quadriga  romana entre o TLS e um romance de Ludlum, “ The Prometheus Deception” . Desconforto máximo- desejo que isto acabe de pressa. E pensar que ainda vai haver regresso.
No TLS  debate, pela décima milionésima vez,  sobre se foi Shakespeare quem escreveu as peças e os sonetos. Um dos autores recenseados afirma ter gasto trinta anos de investigação  meticulosa e rigorosa para demonstrar que o autor de “ Macbeth” foi Francis Bacon. Trinta anos para chegar a um erro obviamente clamoroso. A aventura humana é também feita disto.
24.08.2005,
Há dois dias em Lima.
(…) No aeroporto, estava a Geninha ( a filha mais velha de Eugénio Lisboa) à nossa espera, de táxi em riste. Com todo o gás do costume, levou-nos para a nova casa, no mesmo condomínio que já conhecíamos e, em tudo, semelhante à anterior. As “ macnetas” estavam à nossa espera, acordadas e bonitas.(…)
Pachacamaca
1.09.2005
Lima
Hoje, passámos a manhã em Pachacamaca, a ver as ruínas do que foi um pequeno reino dos Incas. A pirâmide , de que pouco resta,  o templo do sol, o templo da lua (com a espécie de convento, onde as crianças eram sacrificadas e algumas “preparadas” para o sacrifício aos deuses).
Os sacrifícios… a quantidade de gente  morta (assassinada), a bem de um gesto feito aos deuses, sem a mais  pequena possibilidade de verificação de que tal gesto fora “ desejado” por um deus  que só supostamente existia e que só supostamente o tornaria eficaz. A monstruosidade de “ todas” as religiões, que têm , ao longo dos séculos , promovido mortes, perseguições, torturas, martírios, sacrifícios, guerras massacres – em nome  de um algo cuja existência não se consegue provar e que tudo indica não passar  da  criação tosca de espíritos amedrontados e um tanto mais fanáticos e cruéis quanto mais inseguros.
Pachacamaca e a memória de crianças assassinadas por decisão de chefes ignorantes e, à sua maneira, bem-intencionados. Não muito diferentes, nisto, da monumental estupidez dos suicidas muçulmanos que se esforçam, hoje com outras armas, por fazer regressar o mundo à idade das trevas.
Viena, Albertinaplatz ( Museu Albertina e Café Mozart)
 No Diário de Viagem a Viena, Budapeste e Praga, Eugénio Lisboa viaja com a mulher numa romaria particular que, apesar do encanto que lhe despertam esses lugares, não deixa de realçar, com insistente agudeza, os efeitos maliciosos da globalização.
11.06.2006
Viena
Chegámos aqui, ontem, às duas da tarde. E, do aeroporto, dirigimo-nos ao centro da cidade. Almoço no “ Café Mozart”, de greeneana memória, e passeio pelo “calçadão”.
Entrada numa livraria e visita rápida à Igreja de S. Stephan. À noite, jantar “típico”, isto é, um “schnitzel” intragável e uma sobremesa medíocre. Salvou-se o vinho – pago à parte.
O que vimos de Viena, charmoso que baste, mas, como tudo, conspurcado pela globalização, que arrasta as mesmas cadeias do mercado para todo o lado. O “Café Mozart” e a “Albertina” não têm de conviver, lado a lado, com o “ H&M" nem com a “Zara”.
Hoje vamos sair e ver, entre outras coisas, o “Prater”, que eu só conheço das novelas de Arthur Schnitzler.(…)
Praga
15.06. 2006
Praga
A grande cidade imperial, a de todas as pompas, mas , também, a de todas as frustrações, infortúnios e depressões. A de Kafka, que andou por aqui sem andar por aqui. Que aqui viveu, sem nunca ter vivido ou tendo vivido de um modo “estranho” a tudo o que se chama viver. (…)
Manhã inteira passeando a pé. Visita à catedral de São Vito, castelo, Praça Velha, o relógio monumental…Acabámos na Praça Venceslau, onde almoçámos, no “Restaurante Pelikan”, voltando para o hotel, estafados. São Vito é um espectáculo impressionante. Pobre Kafka, que acolhimento podia toda esta grandiosidade dar às tuas humilhações, ao teu não-ser, às tuas perplexidades e hesitações, ao teu sentido do absurdo? Capital pomposa de um império pomposo, vaidoso e cruel – como podias tu simpatizar com a vulnerabilidade estupefacta do autor de “ O Processo”? Que haveria de comum, quanto mais de cúmplice, entre a força bruta de toda esta beleza maciça e um frágil judeu, perdido de perplexidade perante uma existência que, para ele, não fazia grande sentido?

As viagens sucedem-se . Evocações, observações e preclaras impressões soltam-se  com elegante insistência , fazendo-nos  sentir que acompanhar  Eugénio Lisboa é um imperdível privilégio.  Em  Paris, leva-nos ao Grand Palais para ver a  exposição dedicada a Courbet   e registar o seguinte:  Poucos quadros vira dele, ao natural,e as suas  assombrosas “paisagens” não reproduzem bem, em livro. Que admirável – e forte, poderoso – paisagista! Os seus rochedos, o sombrio dos seus recantos arborizados não têm melhor em toda a pintura. E o retratista é também de monta. Uma revelação.
Paris
 E despede-se de Paris, embora , sem o prever, ali retorne em  2012.

24.11.2007
Partimos esta tarde. Adeus Paris: foi bom ter-te conhecido, em 1953, ter-te visitado, depois, uma dúzia e meia de vezes e ter estado contigo, agora, mais uma – que será, provavelmente, a última. Que milagre ter nascido e que milagre maior ter nascido entre aquele número muito reduzido de pessoas a quem foi dado conhecer cidades e tesouros como tu, Paris: com a tua cultura, a amplidão dos teus boulevards, a tua saborosa comida, o teu Sena, os teus “bouquinistes” e  até a tão francesa desenvoltura,” mal elevée”, de tantos dos teus habitantes.

Todo este livro é um guia de inexcedível riqueza. As anotações  surgem  ora em perscrutador olhar sobre a realidade que se lhe apresenta, ora em  rica observação, enformada por um conhecimento profundo dos referentes culturais do país. Todas se somam  e se  agregam num singular  e precioso contributo  para  um diferente e   mais completo entendimento de um país a visitar. Eugénio Lisboa desperta-nos o desejo adormecido que há séculos viaja no coração do homem: a descoberta do mundo.
Rabat
Termina este magnífico Diário com a viagem  a Marrocos, ( Junho de 2013), da qual o autor pouco registou, conforme explica nas últimas páginas:(…) Rabat e Marraquexe. Foi uma verdadeira descoberta. Infelizmente , não guardei desta visita, grandes apontamentos de diário: o calor sufocante e desgastante, próprio daquela época e daquele clima norte-africano mas , talvez também, o deslumbramento que tudo me causou – deixaram-me ,  quase sempre, à noite, sem grande  energia para registos diarísticos. O que aí fica – e é pouquíssimo – nem sequer dá conta , o que é cruelmente injusto, do motivo central da minha visita : proferir , em francês, uma conferência sobre Fernando Pessoa, no centro cultural da embaixada. Conferência que proferi perante uma sala cheia  e interessada, ao abrigo de uma organização impecável, a que não faltou uma evocação escultórica, muito imaginativa, do universo doméstico-criativo de Pessoa.

Um desassombrado livro de viagens a ler, um magnifico diário a descobrir, uma obra de  extraordinária relevância para todos aqueles que gostam de saber como se construíram os dias de um culto e arguto viajante, em  diferentes viagens pelo mundo.
 


“Diário de Viagens Fora da Minha Terra”
Autor: Eugénio Lisboa
Editora : Opera Omnia
Publicação: Fevereiro de 2017

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