sábado, 4 de fevereiro de 2017

Um diário é sempre falso

Vergílio Ferreira escreveu  entre os vinte oito e os trinta e três anos um Diário.  Diário que "foi sucessivamente começado, interrompido e recomeçado, como o autor explicita ao iniciar a segunda e a terceira tentativas: «8 de Setembro [1945]- Pela centésima vez começo um diário. Diabo! Não serei capaz de me obrigar a reflectir cinco minutos por dia?»; «30 de Junho [1948] - É a terceira ou quarta vez que tento o diário. Suponho que desistirei ainda.».
Mais tarde e contra tudo  o que preconizava neste diário inicial e inédito, e de acordo com as afirmações de Fernanda Irene da Fonseca , "Vergílio Ferreira iniciará a escrita de Conta-Corrente em 1969, com cinquenta e três anos, mas só em 1980 publicará o primeiro volume, a que se seguiram mais quatro e, depois de uma interrupção de alguns anos, uma «Nova Série» de quatro. No total, nove espessos volumes, perfazendo alguns milhares de páginas de uma escrita diarística que se foi tornando compulsiva e que, apesar da excelente recepção por parte dos leitores, Vergílio Ferreira sempre desvalorizou, considerando-a uma escrita menor: «Curiosa experiência do que é em mim o grau zero, o imediatamente espontâneo ao nível da escrita, o rés do chão de mim como ‘escritor’, a minha rasa banalidade com uma caneta e uma folha. É o que isto é.» (Conta-Corrente I, p. 204).
Retirámos  alguns excertos  do primeiro Diário deste escritor, o Diário Inédito, que  nos parecem validar estes pressupostos:
«19 de Julho [1944] - Minha Gina: vou hoje começar um diário para ti. Já mais de uma vez eu tentei escrever um diário, mas fatalmente, ao fim de duas ou três sessões, sentia-me fatigado. A razão vinha de eu pensar em publicá-lo o que o tornava artificial e estreito. Assim, visto que o diário é só para ti, não vou seleccionar o que hei-de dizer-te nem preocupar-me demasiado com literatices. Não quero porém que ele fique chato, vazio de interesse, tanto mais que desejo aproveitá-lo como treino para as outras empresas literárias.
Tu sabes que um diário é sempre falso. Nós somos quase sempre falsos até mesmo quando pensamos, porque o pensar é já um desnudar-se uma pessoa perante si mesma.»
«19 de Julho de [1944] /.../ Trabalhei, sem vontade, no Resto da Divisão [Vagão J], intercalando-lhe um pequeno episódio. Mas sem vontade. Cada vez me convenço mais de que só o interesse puro pelo que fazemos consegue a perfeição possível, e eu não descubro interesse em nada. Por outro lado, a arte deve ser sincera e se pensamos em dar a conhecer aos outros o que realizamos, sentimos um pudor prévio que é um travão. Quando escrevi os outros livros, via-me só diante das folhas em branco; agora, porém, vejo-me entre os leitores e envergonho-me.».
«8 de Setembro [1945] - Pela centésima vez começo um diário. Diabo! Não serei capaz de me obrigar a reflectir cinco minutos por dia? Certo o diário escrito com fins de publicação é idiota e pedante. Mas eu não vou escrever para publicar. Quero apenas tornar claras as duas ideias que por dia me couberem, ou forçá-las a nascer se me não couberem. Só isto!»
«Évora, 28 de Janeiro [1946] Faço hoje 30 anos. Que fiz eu até hoje? Como custa concluir que não fiz nada. Não percebo como pude jamais convencer-me de que tinha possibilidades de realizar grandes coisas. Há sete anos acreditei fortemente que viria a ser um bom escritor. Acabei detestáveis livros que a crítica dependurava nos cornos da lua e – o que é mais estranho – acha-os ainda hoje superiores. Durante estes sete anos escrevi três romances, um livro de contos, dois trabalhos de crítica, umas dezenas de artigos e conferências, o 1º volume de um romance. Tudo falhado. Mas será preferível acreditar realmente que não presto? Cruzar os braços? /.../ Confesso: sinto-me derrotado. Mas trabalho sempre.»
«30 de Junho [1948] - É a terceira ou quarta vez que tento o diário. Suponho que desistirei ainda. Tudo é a repugnância de ver que o papel me lê. Se eu não tenho feito versos é porque optei por me sentar em cima de mim. A ironia, essa confissão irresponsável, é o único meio que tenho à mão de condescender em me observar. Enfim, pela terceira ou quarta vez tento um diário. É que os resíduos de mim e do dia a dia já me pesam.
«20 de Agosto [1948] /.../ A coisa chegou a este remate. Ou o artista é o primeiro a falar de si e da sua obra, para que toda a gente se convença de que ele está convencido, ou desiste. Deve ser em parte por isso que eu escrevo um diário.»1
«Melo, 15 de Julho [1948] /.../ Trágica a morte cobriu o casarão vazio onde há dias da comprida e alta varanda de ferro, enforquei o velho Bruno da Fábrica para o romance que escrevo.» 
«28 de Julho [1948] Continuo puxando pelo romance Mudança. Puxar é sacrifício. Também o tabaco me torce os nervos e continuo a fumar. A literatura cansa-me desde que sei que os outros sabem que escrevo. Um círculo de olhares acesos fecha-se à minha roda, espiando o papel. Raro consigo vir sozinho para a mesa, com o papel e os cigarros. Essa malta entra logo em tropel para ver o que eu faço. Isso basta para que faça asneiras.»;
«Évora, 15 de Novembro [1948] Escrevi um conto sobre a liberdade de Sartre. Dei umas esporadas ao romance. E penso, desencorajado, que estou a capitular. Aqui diante de mim, busco as razões de uma falência inicial que me esgana a vontade necessária de escrever. /.../ Tanto limito, tanto aparo, tanto discuto comigo o interesse de um lance, de uma frase, que a coisa vem chupada, sem carne nem sangue, só ossos. »
« Évora, 15 de Novembro [1948]- /.../ O suor que me espremeu a descrição de uma manhã de nevoeiro! E todavia o nevoeiro, como a madrugada, as noites escuras têm para mim um segredo que sinto bem dentro, único, real no coração destas horas, e que um anel de ferro cerca e estrangula. /.../ Mas quando salto sobre ele ou o abeiro com cautela, as minhas mãos, secas de exactidão, deixam-no escapar como líquido. Sinto-o escorrer entre os dedos, coalhar de novo diante dos meus olhos, como o mercúrio, meter-se outra vez, como nódoa, nas coisas donde o tirei. 
«Évora, 20 de Janeiro [1949] - Acabei hoje mais um romance. Mudança lhe chamei eu. Não sei bem se o seu tema interessará. A mim diz-me muito, talvez por ter ainda à sua roda o calor com que o escrevi. Em arrefecendo, verei.»
« Évora, 2 de Março [1949] - A palavra é um espartilho das ideias, – diz-se. É pior. /.../ Agora mesmo eu estou aqui, difuso neste ambiente de fumo de cigarro, cansado, e tenho flores na secretária, cartas, retratos, o candeeiro apagado, livros, tinta, pés frios, uma carroça martela a calçada, – e tudo é presente ao mesmo tempo e tenho uma ideia sumária sobre tudo, e há gente na vizinhança falando, e portas cá em casa batendo, e um garoto assobia lá fora, mais carroças, um pássaro num telhado e o céu está azul, respiro fundo e repouso. Tudo isto é exacto e simultâneo. Como descrevê-lo porém sem lhe destruir a interpenetração e a verdade de ser simultâneo?»
Vergílio Ferreira, in Diário Inédito, Lisboa, Bertrand, 2008

1-Reitera esta afirmação pouco tempo depois, ao terminar uma outra exposição sobre a vaidade dos escritores: «15 de Setembro [1948] - /.../ O veneno é tão activo, que só nele vejo a explicação para esta minha necessidade de escrever um Diário, como julgo já ter dito por outras palavras ou pelas mesmas.»


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