terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Aquele abraço


( Nice, 1990 - Gil)
"Na plateia  do teatro superlotado , de pé, aplaudimos nosso Gilberto Gil, nosso por brasileiro e bahiano, amorável criatura, intérprete da luta e da esperança , da vida contra a morte, voz do povo desatada no canto anti-racista, no louvor  da natureza: marulho de onda, rugido de tempestade.
A música mestiça domina a assistência, os franceses cantam um português do Brasil, dançam  em afro-brasileiro, estamos na croisette de Nice ou no Largo do Pelourinho,  Eduardo  Jasmim Tawil, correspondente de  A Tarde, comanda o samba na sala de espectáculo, repleta, enlouquecida.
Recordo outros dois momentos de Gilberto Gil, duas emoções  que me tocaram o coração e os quimbas. O primeiro aconteceu no Teatro Castro Alves, em 1968, na Bahia: Gil e Caetano haviam saído da cadeia dos milicos, partiam para o exílio em Londres, foi-lhes prometido um show para que pudessem angariar um pouco de dinheiro.  Plateia de jovens contestatários da ditadura,  o clima é tenso e solidário. Gilberto Gil toma do violão e entoa Aquele Abraço,  samba de despedida  e de saudade. O teatro é protesto e vibração, canta em uníssono com Gil e Caetano: à frente dos jovens vejo o poeta Castro Alves em seu teatro. O coração dispara, o frio do pólo atravessa-me os ossos.
A outra vez foi em 1987, vinte anos depois, e o palco onde Gil cantava e deslumbrava  era o do Olympia, em Paris. Gil me dedica a canção que compôs para o filme Jubiabá, de Nelson Pereira dos Santos adaptado do meu romance. A multidão em transe o acompanha na oração do pai-de-santo Jubiabá, o nome  do personagem ressoa no teatro ilustre. Estremeço: calor no coração, frio nos quimbas, os olhos apertados."
Jorge Amado, in Navegação de Cabotagem, Publicações Europa-América, p. 380

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A velhice

Buenos Aires , Argentina
Elogio da sombra

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direcção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os actos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

Jorge Luis Borges, in Elogio da sombra, 1969, tradução de  Carlos Nejar e Alfredo Jacques, revisão da tradução: Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz, Editora Globo

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Ao Domingo Há Música


                O poema é feito de palavras necessárias e insubstituíveis.
                                                           Octávio Paz

Não sei de quantas  melodias é feita uma vida , mas acredito que, no fluir dos dias, haverá sempre uma  necessária e insubstituível sinfonia.

Moviola, de  John Barry , composição extraída do   Álbum Moviola (Film Score Re-recording Compilation) de 1992. 

John Barry Prendergast, (3 Novembro 1933 - 30 Janeiro 2011), nasceu em York, North Riding of Yorkshire, Inglaterra. Maestro e  notável compositor , escreveu , ao longo da vida ,  excelentes  bandas sonoras para filmes. No volumoso  espólio, destacam-se obras que foram produzidas, entre 1962 e 1987para 12 filmes de James Bond. Compôs trechos inesquecíveis  para vários filmes que se celebrizaram, tais como Midnight CowboyDances with Wolves e Out of Africa.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Da Ternura e da Música

Sei que a ternura
Não é coisa que se peça,
E dar-se não significa
Que alguém a queira ou mereça.
Estas verdades,
Que são do senso comum,
Não me dão conformação
Nem sentimento nenhum
De haver força e dignidade
Na minha sabedoria...
Eu preferia
- Sinceramente, preferia! -
Que, contra as leis recolhidas
No que ficou dos destroços
De outras vidas,
Tu me desses a ternura que te peço;
Ou que, por fim, reparasses
Que a mereço.
Reinaldo Ferreira, Poemas

De Frédéric Chopin, Piano Concerto No. 1 in E minor, Op. II - Romanza, pela  Slovak Symphony Orchestra.

De Jules Massenet , "Thaïs" Meditation, por Itzhak Perlman no Violino  e The Abbey Road Ensemble , sob a direcção do Maestro Lawrence Foster.

NOTA
Livres Pensantes vai fazer uma pausa . Não será longa, apenas o tempo de ter um outro tempo.  Voltará, com outros sons. Até Domingo. 

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Então desceu à sua memória...

 
O Fazedor
Por Jorge Luis Borges
"Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas também a cólera e a coragem, tendo sido uma vez o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, onde bem podia haver sátiros, tinha escutado complica­das histórias que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estre­las, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. «Já não verei — percebeu — nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moe­da sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho.
A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter com o seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como se o não ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um punhal de bronze, belo e carregado de poder, que a criança tinha furtivamente cobiçado. Agora segurava-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai dizia: «Que alguém saiba que és um homem», e havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e batalhas a obscuridade salobra. O que procurava era o preciso sabor daquele momento; não lhe importava o resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina ensanguentada.
Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe enviaram os deuses, tinha-o esperado na sombra de um hipogeu, e ele procurou-a por galerias que eram como redes de pedra e por declives que se afundavam na sombra. Porque lhe chegavam essas memórias e porque lhe chegariam elas sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?
Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mortais, onde agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deu­ses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.”
Jorge Luis Borges, O Fazedor, 1960, Obras Completas Vol.II, Lisboa, Teorema

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Ao Domingo Há Música

O segredo a descobrir está fechado em nós 
O tesouro brilha aqui embala o coração mas
Está escondido nas palavras e nas mãos ardentes
Na doçura de chorar nas caríc
ias quentes 
Dulce Pontes, " Brisa do Coração"

O segredo chega-nos na bela voz de  Dulce Pontes . Voz  que acaba de editar um novo disco. Assim,  os  sons  deste  domingo  soltam-se  em português.  Que  nos encantem.

Dulce Pontes, em " Meu Amor sem Aranjuez", uma composição do novo Álbum "Peregrinação". A Música é de  Joaquín Rodrigo, a  Letra de Dulce Pontes  a Orquestra Roma Sinfonietta acompanha-a  e o  Arranjo e Direcção são de  Paolo Silvestri, numa produção de ©OndeiaMúsica.

Do livro "Mensagem" de Fernando Pessoa , Dulce Pontes extraiu um poema,  Nevoeiro, como fez, em 1996, com “O Infante" e musicou-o. Nasceu uma nova canção,que se espraia "num forte ritmo sincopado onde se unem, em crescendo, piano, concertina, trio de saxofones e percussão."
Este tema também faz parte do novo trabalho discográfico de Dulce Pontes, intitulado “Peregrinação”, duplo Álbum.

E , por fim, uma bela e conhecida interpretação desta talentosa cantora e compositora "A Brisa do Coração" , num videoclip da Banda Sonora do filme "Sostiene Pereira", de Ennio Morricone.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

À volta de Orwell, Proust e outras notícias

Orwell (hijo) entra por fin en Huesca
Richard Blair asiste a la exposición de homenaje a su padre en la ciudad en cuyo frente resultó herido
Richard Blair, el hijo del escritor George Orwell, ha visitado este viernes la ciudad a cuyas puertas se quedó su padre hace 80 años: Huesca. La exposición Orwell toma café en Huesca recupera la memoria de la presencia del autor de 1984 en ese frente de la Guerra Civil, que tuvo que abandonar herido, sin llegar a poner un pie en la capital oscense, en junio de 1937. La muestra ofrece más de 600 registros, entre documentos, carteles, fotografías y escritos —algunos de ellos inéditos—, que documentan el paso de Orwell por la España en guerra.El escritor británico llegó a Barcelona en diciembre de 1936 con la intención de escribir artículos sobre la contienda. Tras afiliarse al POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), la unidad a la que pertenecía fue trasladada al cerco de Huesca, que nunca llegaría a ser recuperada por la República. Orwell estuvo en el frente entre el 17 de febrero y el 25 de junio de 1937 —precisamente las fechas en las que permanecerá abierta la exposición—, hasta que tuvo que abandonarlo por un disparo en el cuello. Después escribiría su libro Homenaje a Cataluña, el más vendido sobre la contienda española, en el que recoge un pasaje que ha dado nombre al título de la exposición: "Meses antes, tras la captura de Siétamo, el general que mandaba las tropas republicanas había dicho alegremente: 'Mañana tomaremos café en Huesca". Los republicanos nunca llegaron a tomarse ese café, ni Orwell tampoco.
El hijo del escritor sí se ha tomado este viernes, sin embargo, aquel café junto al hijo del comandante Georges Kopp, a cuyas órdenes sirvió Orwell, ha informado el comisario de la exposición, Víctor Pardo. Este asegura que el espíritu de la muestra es "viajar de la mano de Orwell" para acompañarle en su tránsito por España: de Barcelona a los "piojos, ratas y suciedad" de las trincheras de la sierra de Alcubierre. De su salida del frente de Huesca a su estancia en el hospital de guerra del Pueyo de Barbastro y su posterior marcha del país por el paso de Portbou, junto a su mujer Eileen.
En Orwell toma café en Huesca, organizada por el Gobierno de Aragón y la Diputación Provincial de Huesca, se exhiben originales y reproducciones de objetos, documentos, carteles, periódicos y libros de diferentes colecciones particulares y numerosas instituciones como el Archivo Histórico Provincial de Zaragoza, el Archivo Histórico Provincial de Huesca, el Archivo Municipal de Huesca y el Parlament de Cataluña. Según Pardo, la exposición muestra el compromiso del autor de Rebelión en la granja contra todo tipo de totalitarismo, el compromiso de un hombre que, ha subrayado, "pisó el barro del tiempo que le tocó vivir".
En el recorrido, en la llamada Sala de la Campana, el artista Javier Aquilué ha recreado con un montaje de imagen y sonido el ambiente opresivo, asfixiante, de la novela 1984. La instalación compara dos relatos en los que se refleja un ejercicio implacable del poder: la leyenda de la Campana de Huesca —que cuenta cómo Ramiro II el Monje, rey de Aragón, decapitó a 12 nobles que se opusieron a su voluntad— y el mundo distópico de la novela de Orwell, cuyo hijo entró en Huesca por él 80 años después
Orwell, superventas 67 años después de su muerte
El escritor Gerge Orwell fue capaz de imaginar una sociedad futura, pero seguro que no esperaba convertirse en un escritor de best sellers seis décadas después de morir.
La plataforma LibriRed publicó a finales de enero la lista de los 50 libros más vendidos en España en 2016: 1984 ocupaba el puesto número 34. Es el único clásico de un listado que recoge las ventas en unos 600 establecimientos.
En EE UU, el fenómeno ha sido aún mayor. Desde la toma de posesión de Donald Trump, las ventas se habían incrementaron "un 10.000%", según la editorial Signet Classics, que publica actualmente 1984. El libro ha estado desde entonces, además, entre los más vendidos de Amazon.” El País, 17.02.2017
Pode ter sido descoberta a única imagem filmada de Marcel Proust
“Um investigador canadiano assegura ter descoberto a única imagem filmada existente do escritor francês. A imagem mostra um homem com um fino bigode preto, a descer a escadaria de uma igreja de Paris.
De acordo com o jornal Le Point, um professor da Universidade de Laval (Quebeque), Jean-Pierre Sirois-Trahan, especialista em cinema, assegura ter descoberto num arquivo perto de Paris as primeiras imagens filmadas correspondentes ao célebre escritor francês Marcel Proust (1871-1922).
O investigador garante que o homem corresponde à fisionomia de Proust, então com 33 anos, e aparece num breve filme datado de 14 de novembro de 1904, no casamento de Elaine Greffulhe, filha da condessa Greffulhe.
Jean-Pierre Sirois-Trahan localizou o autor de "Em busca do tempo perdido" aos 37 segundos do filme, que tem a duração de um minuto e 11 segundos, quando descia os degraus, durante a cerimónia.
No vídeo, Marcel Proust estaria a abandonar o casamento de Armand de Guiche, um amigo próximo do escritor, e de Elaine Greffulhe, sobrinha de Robert de Montesquiou, que inspirou o Barão de Charlus, uma das personagens principais de "Em busca do tempo perdido".
"Tudo aponta para que seja Proust. (...) A silhueta e o perfil correspondem ao escritor, embora seja verdade que é sempre difícil identificar com segurança alguém num filme deste tipo, especialmente se só o conhecemos por fotografias em pose", apontou o professor canadiano.

O que é certo e comprovado, segundo os especialistas na sua obra, é que o escritor esteve na cerimónia que aparece na gravação e que se inspirou na família Greffulhe para desenhar a personagem de Oriana, a duquesa de Guermantes, na obra "Em busca do tempo perdido".
As imagens, conservadas no Centro Nacional de Cinema em Paris, mostram um Marcel Proust a rondar os 30 anos e vestido com um elegante fato da moda do começo do século XX, semelhante à de um dândi inglês (chapéu de coco e casaco cinza comprido).Embora existam várias fotos de Proust "seria a primeira descoberta de um filme com o escritor", disse Jean-Pierre Sirois-Trahan, que apresentou as suas descobertas à revista de Estudos Proustianos, um jornal literário especializado em Proust.” TSF16 de FEVEREIRO de 2017 - 12:39

Fundação Calouste Gulbenkian

Música

Domingo, 19 de Fevereiro, 10:30 às 19:00
Grande Auditório e outros locais
Entrada livre

Portas abertas - Rising Stars

Nesta nova edição do programa Rising Stars apresentam-se músicos seleccionados pela ECHO, a rede europeia de salas de concerto que a Fundação Gulbenkian integra. O clarinetista português Horácio Ferreira é o músico escolhido pela Fundação e pela Casa da Música. Ao longo do dia poderá ouvir os pianistas Christopher Park e Mariam Batsashvili, a violinista Tamsin Waley-Cohen e o Armida Quartet, em concertos de entrada livre. 

Saiba mais



100 links para clicar antes de morrer

A lista faz uma espécie de inventário das melhores dicas publicadas na Revista Bula ou compartilhadas em suas redes sociais na última década. Os links que compõem a lista contemplam os mais díspares perfis e abrange os mais diferentes segmentos e tendências: música, livros, cinema, fotografia, história, ciência, jornalismo, artes e humanidades.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Eugénio Lisboa, um espírito singular


         O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo.
                                                   Machado de Assis                         

Em Junho de 2015, Leonel Brito Produções gravou, em vídeo, um depoimento de Eugénio Lisboa, com a duração de quatro horas. A ideia e a proposta foram lançadas  pela Professora Teresa Martins Marques, investigadora e escritora.
Leonel Brito foi publicando  excertos por temas escolhidos. A versão final seria entregue na Biblioteca Nacional. 
Eugénio Lisboa é um dos mais ilustres  escritores da actualidade. Nasceu em Moçambique e publicou as suas Memórias  nos últimos cinco anos , em cinco volumes.
Recebeu, ao longo da sua vida, diversos Prémios Literários e foram-lhe prestadas algumas homenagens. Tem uma vasta e diversa  obra publicada.
Na 18ª edição do Festival Literário Correntes d'Escritas é a figura de destaque, o escritor homenageado.
Eis dois excertos do longo e rico depoimento registado pelo cineasta Leonel Brito e uma interessante entrevista efectuada pelo escritor Júlio Conrado, em Abril/ Maio de 2015, que traçam um singular retrato deste homem maior das Letras.


Entrevista
Eugénio Lisboa:
memórias de uma vida cheia
Por Júlio Conrado
"Eugénio Lisboa tem vindo nos últimos anos a escrever e a publicar as suas memórias num notável esforço para contar uma história de cidadão do mundo que viveu as vicissitudes do seu tempo com grande intensidade, irreverência e sempre apaixonadamente. Natural de Lourenço Marques (hoje Maputo), aí decorreram as suas infância e adolescência no seio de uma família modesta mas muito solidária e daí partiu para a Metrópole com a finalidade de cursar engenharia e cumprir o serviço militar. 
Em Lisboa, no Instituto Superior Técnico, completou a sua formatura em engenharia electrotécnica e, em Mafra, foi à tropa. Pelo meio, a devoção literária equiparável à paixão pelas ciências exactas, designadamente a matemática, estaria na origem dos altos voos realizados numa e noutra das especialidades (ensaísta, crítico, gestor, engenheiro, conselheiro cultural, professor de literatura, etc.) conjunto a que não faltou o reconhecimento académico (Doutor Honnoris Causa pelas Universidades de Nothingam e Aveiro), e diversas condecorações e prémios – o mais recente dos quais foi o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores/ Município de Castelo Branco 2012/2013, pela edição de Acta Est Fabula – o seu livro de memórias, neste caso o I volume. 
Julguei oportuno ouvir Eugénio Lisboa para o Triplov, colocando-lhe algumas questões cujas respostas, enriquecedoras, dão uma ideia da importância deste depoimento no qual a odisseia pessoal se cruza frequentemente com factos e “atmosferas” que caracterizam de maneira muito viva e informada o país que fomos num tempo histórico que também, em diferente contexto, partilhei.

JC -  O Eugénio, como já referi, foi distinguido recentemente com o Grande Prémio de Literatura Biográfica pela sua obra  Acta Est Fabula. Fale-me do que representa para si um prémio desta índole e do que pode significar num país onde “biografia” e “memórias” não são géneros particularmente cultivados e menos ainda venerados.
 
EL - Os prémios, como tudo, são controversos. Tolstoi recusou o Nobel que lhe iam dar, Shaw recebeu o diploma e a medalha, mas recusou o dinheiro e Sartre, diz-se, recusou o diploma e a medalha, mandando, no entanto, um recado subterrâneo, a informar que aceitaria o dinheiro. Il y en a de toutes les couleurs. Cocteau aconselhava-nos, não só, a não aceitarmos prémios, mas, até, a fazermos por não os merecer. Puro radicalismo, para épater le bourgeois: é ver se não aceitou a Academia, que também pode ser vista como um prémio. A verdade é que, ao ver-se a lista dos escritores que o Nobel ou o Goncourt deixaram de fora (verdadeiros gigantes), para, em vez deles, premiarem autênticas mediocridades, já esquecidas ou em vias de sê-lo, não se pode deixar de ficar céptico, em relação ao valor dos galardões, mesmo dos mais prestigiados.
Como não sou ingrato nem radical e como o júri do prémio que me foi atribuído era constituído por gente séria e competente – com o ligeiro inconveniente de serem todos meus amigos – confesso que fiquei feliz. Sobretudo por o livro galardoado ser um dos meus livros que particularmente acarinho: o 1º volume das minhas memórias. Se o prémio ajudar a levar para mais longe os momentos mágicos da minha infância e adolescência, em Lourenço Marques, ninguém ficará mais contente do que eu.

JC -   As suas memórias espraiam-se por cinco volumes (previstos) dos quais foram publicados três. Há mesmo um salto do I para o III, ficando por editar o II, “salto” que foi objecto de uma explicação do autor ao leitor. Apesar dessa justificação, gostaria que a replicasse sumariamente nesta entrevista para os leitores que a não conhecem mas que pode esclarecer uma questão, que lhe está ligada: a sua obra  Acta Est Fábula foi um projecto longamente amadurecido e os materiais preparados durante anos para quando fossem precisos, a pensar na posteridade, ou materialização de um desejo recente de pôr cá fora a sua experiência de vida? Ou os textos de  Indícios de Oiro, nos quais há basta matéria autobiográfica e que são apresentados como não “tendo tido um  script que precedesse a sua redacção”, seriam já o embrião das memórias, ainda que projecto não explicitamente assumido?

EL -  Escrever memórias, passados os oitenta, é um atrevimento. Planeá-las em cinco volumes é pura loucura. Ninguém me podia assegurar que viveria o tempo suficiente para os escrever todos. Por isso quis garantir que escreveria, pelo menos, sendo possível, os volumes I e III, que cobririam o total da minha vida em África: os anos de 1930 a 1947 e, depois, os anos de 1955 a 1976. Em África nasci e lá me fiz e ali gozei os melhores anos da minha vida. Estas dívidas devem ser pagas. Foi por isso – e só por isso – que saltei do 1º para o 3º. Depois, continuei em frente: publiquei, no ano passado, o 4º e estou agora mergulhado na redacção do 5º, a sair no final deste ano, se tudo me correr bem. O 2º será o último a escrever: é importante e será o mais difícil de fazer. Não tenho documentos (não sou grande guardador de papel e houve diásporas pelo meio), terei portanto de recorrer só à memória.
Quanto à posteridade, não gasto muito tempo a pensar nela e não fio dela fazer a justiça que me não façam os contemporâneos. Não vejo razão para pensar que a posteridade será mais justa e mais inteligente do que a contemporaneidade. Mas gostaria, é claro, que o registo dos meus momentos privilegiados durasse um pouco para além da minha vida na terra. Procurei torná-los vivos, dando-lhes tudo aquilo que tenho. O resto já não depende de mim.
Não, não guardei nada a pensar na posteridade. Não pertenço a essa paróquia. Sou um desarrumado e um despreocupado. Não consigo encontrar coisas que me são preciosas. Para escrever o 4º volume, tive que passar semanas nos Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a folhear as informações de serviço, que enviei da embaixada de Londres para Lisboa. Não guardara nada comigo. A correspondência que possuía (trocada com figurões) já não está cá em casa – mandei-a para a Biblioteca Nacional porque de lá ma pediram (Jorge Couto, quando era director). Se não, estaria para ali, na garagem, guardada em caixas. Faço questão de sublinhar que não a vendi – dei-a.
Há um tempo, já, que pensei em escrever as minhas memórias, pelas razões que assinalei. Ao fim e ao cabo as pessoas, cá, sabem pouco da vida em África, nas embaixadas e no polo norte… Como diz, há textos meus, publicados, que são de pura autobiografia. Mas quis agora fazer uma coisa mais abrangente, mais concertada, mais minuciosa, que desperdice menos pepitas… Aqueles outros textos podem, de facto, ser considerados, objectivamente, como embrião destes cinco volumes, mas não foram escritos com esse propósito: aconteceram apenas, ao abrigo das solicitações do momento.

JC -   A anedota é conhecida mas o seu caso é exemplar. Nunca perguntes a um alemão quanto tempo leva a escrever um livro. Pergunta-lhe que quantidade de esforço foi preciso despender para o conseguir. Eugénio Lisboa não é alemão mas é um trabalhador incansável. Dobrada a casa dos oitenta a sua escrita tem a frescura, a lucidez e a acutilância de um “jovem” quarentão. Como o consegue? 

EL - Tentando ser claro e verdadeiro. A mulher do grande pioneiro da imunologia – Sir Peter Medawar – perguntou-lhe um dia o que visava ele, no seu estilo, quando escrevia os seus admiráveis ensaios de cariz científico. Respondeu com uma só palavra: “Clarity.” A vivacidade translúcida de Voltaire, de Stendhal, dos grandes clássicos, em geral, que fui conhecendo e, um pouco mais tarde, de Russell, Sérgio, Schopenhauer e outros vacinaram-me, para sempre, contra a trapaça da opacidade deliberadamente procurada e vendida como “profundidade”. Gosto de conviver e de comunicar saudavelmente e um pouco de vivacidade e de honestidade ajudam. A leitura de bons filósofos e cientistas também. A falta que faz, nos cursos de letras, um pouco de filosofia! E uma saboreada introdução à ciência – lavaria tanta crosta pretensiosa e inútil na prosa dos nossos líteras…

JC -   No primeiro volume da série, em que exprime uma visão feliz da Lourenço Marques colonial “respira-se” uma atmosfera de paz social; diria que quase de naturalização da presença do colonizador na colónia. Não havia tensões sociais sérias na capital e no interior que traduzissem mal-estar pela presença do colonizador?

EL - Claro que havia e, se no 1º volume mal o insinuo, no terceiro volume (das minhas memórias), falo nisso claramente. No 1º era um pouco cedo. Eu tinha nascido ali, aquilo fora sempre assim, a separação e a injustiça eram parte da paisagem quotidiana. Quase não dava por nada. Houve alguns sobressaltos, mas insuficientes para muito fundas cogitações. Vivia realmente num paraíso dentro de um não-paraíso. É possível isso acontecer? É. Quando voltei a Lourenço Marques, concluído o curso, em 1955, essa “inocência” já não era viável. Foi ainda possível ser feliz, mas era uma felicidade minada. Conto isso tudo no terceiro volume.

JC -   Considerado o melhor aluno do Liceu (refiro-me a  Indícios de Oiro, obra que precede  Acta Est Fabula) sentiu-se, por isso, predestinado para um futuro de excepção? Se a resposta é sim, em que medida a literatura o ajudou a alcançar esse patamar, quando o destino começou por encaminhá-lo para a engenharia electrotécnica, em que se formou? Sendo a matemática uma das suas paixões, esteve ela na origem da sua opção académica inicial? Ou chegou a admitir não ser essa a sua verdadeira inclinação e partir para outra?

EL -  Claro que sim. Não sonhamos todos com isso? Com termos um destino de excepção?  Quis ser, sucessivamente, Voltaire, Stendhal, Eugene O’Neill, Roger Martin du Gard, Hemingway, Schopenhauer, Thomas Mann, Proust…  A seguir à leitura de Le Rouge et le Noir, pus-me a escrever, com muito afinco e convicção, uma História de Julião, no estilo mais stendhaliano que pude congeminar e, depois, fui à Bíblia buscar assuntos escabrosos, para, no estilo mais “realista” e nada bíblico, imitar algumas tragédias de O’Neill: tudo muito “rough” e deliberadamente escandaloso (“agora é que eles vão ver como as coisas são”). A seguir pus-me a cultivar o estilo seco e declarativo do Hemingway e, para provocar, levei isso para a prova de exame final de Português, no sexto ano do liceu, na cadeira de Português-Latim. Ia-me lixando: o que me salvou foi um 18 a Latim, que me colocou a média, na disciplina, em 16 – o Português foi punido com um 14, por causa da secura do autor do A Farewell to Arms…
Claro que queria ser alguém, sabia que podia ser alguém, mas não falava nisso a ninguém. Era tímido e calado e arvorava uma grande indiferença em relação ao futuro. Mas sonhava…
Eu gostava muito de Matemática e de Física, mas não gostava menos de Literatura e Filosofia. Eu deveria, talvez, ter escolhido um curso de Matemática e não de Engenharia, mas poderia, igualmente, ter escolhido Letras ou Filosofia. Nunca vivi “dicotomias”: ou Letras ou Ciências. Gostava das duas.
Quanto ao que consegui, na vida, não hesito em declarar que ficou muito aquém do sonho. Mas não fica sempre?

JC -   A sua primeira grande viagem – Lourenço Marques / Lisboa – foi realizada por mar (I. de  O.) sob o efeito vivificador dos feitos de Ulisses (personagem da literatura que só na literatura existiu) e de Camões, sob pressão, por conseguinte, do mito da viagem no seu imaginário. No regresso a Moçambique viajou de avião. Acha que se quebrou qualquer coisa no seu fascínio pela viagem romântica e conectável com o seu destino, nessa mudança de meio de transporte? 

EL - Não há comparação possível entre uma viagem e outra. A viagem de avião suprime o prolongado contacto com o mar, a chegada aos portos, os enredos e revelações a bordo, a sensação de uma deslocação lenta mas inexorável, demorada e insinuante, os conhecimentos que se travam, as perfídias que se tecem, os D. Juans de pacotilha, que topam, naquele terreno de caça em concentrado, a sua oportunidade – matéria-prima de tantos contos inesquecíveis de Maugham. Não há comparação possível. Um dos meus sonhos é realizar, antes de morrer, mais uma longa viagem marítima, a bordo de um navio de carga, com poucos passageiros…

JC - Considera a sua experiência em Portugal, durante a primeira estadia, positiva. Decerto nalgumas situações mais do que em outras. De todas aquelas que relatou nos seus livros qual a ou as que considera mais determinantes na sua formação como pessoa? A adaptação foi traumática?  

EL -  Muito traumática de início (Lisboa não era Lourenço Marques – e no não sê-lo já estava o mal –, por outro lado, o ensino superior não era aquilo que eu sonhara: fiquei a respeitar e a admirar três ou quatro professores num curso de seis anos e dezenas de cadeiras), foi, no entanto, uma experiência rica, intensa e variada. Algumas disciplinas foram realmente inspiradoras, conheci colegas que ficaram amigos para a vida – alguns, como o António Brotas, o Manuel Graça Baptista e o Costinha ainda estão felizmente vivos, embora o Alves Marques já tenha falecido –, reatei contacto com velhas grandes amizades, como o Zeca (Tiago) Oliveira, descobri grandes autores, que passei a não ter medo de ler no original, descobri a grande literatura espanhola, fiz uma primeira e prolongada estadia em Paris (mesmo com pouco dinheiro) e, last but not least, o meu mau comportamento militar em Mafra atirou-me, como oficial miliciano, para Portalegre, onde tive a oportunidade de conhecer uma das maiores figuras da nossa literatura e cultura, de quem fiquei amigo até à sua morte: José Régio. Ao lado da sua estatura intelectual, artística, espiritual e moral, tantas glórias trombeteadas, laureadas e apaparicadas, de hoje, parecem-me pigmeus descartáveis e um pouco risíveis. Conheci também , pessoalmente, por intermédio do meu amigo Tiago Oliveira, um homem fascinante  que havia muito admirava: António Sérgio, cuja influência sobre a juventude (e não só) tanto mau sangue fez a tanta gente que ambicionava lavrar o mesmo território. Vergílio Ferreira foi um exemplo. Mas não foi o único.

JC -  Apesar de não ser um romance  Acta Est Fabula conta uma história de amor. Paixão, companheirismo, lealdade, enfim, valores que se sedimentaram na sua união com Maria Antonieta. O facto de não terem feito um casamento religioso gerou anticorpos na sociedade local?

EL - Claro que gerou. Antes de nos casarmos, algumas pessoas avisaram a Maria Antonieta de que o não casarmos pela Igreja levaria a que certas famílias se recusassem a ter relações sociais connosco. Só há relativamente pouco tempo, a Maria Antonieta mo contou: na altura poupou-me a isso. Acho que respondeu que era para o lado em que dormiria melhor. Naquele contexto socialmente estreito e paroquial, ser “pessoa de bem” era ser católico apostólico romano, ir à missa, mesmo que com alguma irregularidade, casar pela igreja, baptizar os filhos e ser facialmente temente a Deus, à Pátria e à Família, ainda que, de caminho, se praticasse uma ou outra patifaria (nada de exorbitante).   
As minhas filhas nunca foram baptizadas (nem eu o fui). Note-se que tive e tenho bons amigos religiosos (nihil obstat) mas, para cá deste Marão, mandam os que cá estão. A minha admiração e amizade pelo Régio nunca tiveram nada a ver com religião.

JC -   Censura e pide. Episódios tão ridículos como a interpretação da polícia de que as capulanas verde rubras das moçambicanas constituíam um ultraje à bandeira nacional levou à barra dos tribunais o poeta Virgílio de Lemos, que as evocou num poema. Secundando o seu amigo e advogado Carlos Adrião Rodrigues, o Eugénio lá esteve no tribunal como testemunha de defesa. O processo chegou ao Supremo após recursos do Ministério Público, do qual obteve igual sentença: a absolvição. A pide não devolveu os livros mas pagou ao poeta uma quantia em dinheiro. A forma como Eugénio Lisboa descreve a peripécia é deliciosa e hoje faz-nos sorrir. Mas naquele tempo era preciso levar esse tipo de situações muito a sério… 

EL - Era. Fui mais do que uma vez incomodado pela PIDE e o meu Director-Geral da Total, em Joanesburgo, que tutelava Moçambique, disse-me um dia que tinha muita admiração pelo meu trabalho, em Lourenço Marques, mas que, se o Jorge Jardim lhe pedisse a minha cabeça, teria que lha dar. Confesso que nunca me passou pela cabeça que o Jorge Jardim fizesse uma coisa dessas. E não fez.
JC - Depreendo da leitura do seu livro de memórias que pelo poder em Moçambique passaram salazaristas “bons” e salazaristas “maus”: Baltasar Rebelo de Sousa, Sarmento Rodrigues, Jorge Jardim, Veiga Simão, entre outros, seriam os “bons”. Havia a noção, nessas alturas em que o poder era mais  inteligente, de que a pide e a censura afrouxavam na repressão? 

EL - Havia, claro, gente séria que acreditava, com convicção, no salazarismo. Como havia gente não muito séria que era da oposição. O problema é sempre de carácter e não de ideologia. Nunca escolhi os meus amigos por critérios ideológicos – e não me arrependo. Eu hesito em classificar o Jorge Jardim como “salazarista bom”. Era um homem com um espírito aventureiro muito acentuado, inteligentíssimo, dotado para o trabalho de gabinete e para a acção, com uma inesgotável capacidade de trabalho, mas fez coisas – com convicção, diga-se, e não por oportunismo – que eu estava longe de subscrever. Tinha, sem dúvida, “panache”, mas não era bicho da minha capoeira, mesmo se excluirmos as divergências ideológicas. Hoje, não estou muito certo de que, pelo menos nos últimos anos do império, ele ainda se revisse nas políticas do Estado Novo.

Quando analiso os meus adversários políticos, procuro fazê-lo com “fair-play”, mas não devem tresler-se as minhas palavras. Quanto a Baltasar Rebelo de Sousa, Sarmento Rodrigues e Veiga Simão, não lhes recuso o meu apreço, a despeito de tudo (que era muito) que nos pudesse separar (muito menos, pelo que toca a Veiga Simão).

JC -  O Eugénio “especializou-se” em demolir os textos medíocres de um tal Rodrigues Júnior, que ameaçou agredi-lo e de um tal Orlando Mendes que tentou em vão aliciá-lo para dar parecer favorável a um livro de sua autoria e que considerou “mau como romance”, mau “como história” e de um “humanitarismo de trazer por casa”. A reprodução integral do texto com que zurziu o Rodrigues Júnior é, quanto a mim, um dos momentos mais altos destas suas “memórias”, não tanto pelo tom humorístico-corrosivo do seu discurso como sobretudo pela implacável análise literária com que, a brincar, a brincar, arrasa tecnicamente o presunçoso escriba do sistema. Imagina possível uma crítica literária desse calibre no Portugal de hoje, sem que caiam em cima do autor uma data de processos?

EL -  Eu nunca pus Orlando Mendes ao mesmo nível de Rodrigues Júnior: seria uma injustiça. As obras de Orlando Mendes, até à independência, se não eram alta poesia, também não eram propriamente medíocres. Depois, com o advento da FRELIMO, tornou-se um “situacionista” primário, isto é acrítico e lambe-botas da espécie mais desprezível, e passou a escrever poesia muito popular e muito má. E passou a não conhecer os antigos amigos brancos, que, na véspera, adulava…O seu comportamento comigo atingiu as raias da ignomínia: literalmente, “apagou-me” da literatura moçambicana, como se costuma fazer nas ditaduras muito duras. Quero ser justo: acredito que ninguém lhe pediu esse frete. Fê-lo de livre iniciativa, para “mostrar serviço”.
Quanto ao que escrevi sobre o Rodrigues Júnior – era muito capaz de o fazer no contexto dos dias de hoje. Mas, como diz, talvez os tribunais substituíssem actualmente os censores e os PIDEs daquele tempo. Julgo que o meu texto só escapou ao lápis da censura porque esta não percebeu que eu estava a gozar o Rodrigues Júnior – tomaram provavelmente a sério os meus elogios enviesados…

JC - Uma sua carta aberta ao primeiro-ministro Passos Coelho no jornal  Negócios e que se tornou viral na Internet é uma reminiscência desses tempos de polémica acesa na Lourenço Marques pré-independência? É que a polémica chegava a ser inter-pares: Alfredo Margarido, Rui Knopfli, o próprio Eugénio Lisboa…

EL - É possível que tenha havido também um pouco disso: ter querido matar saudades. Mas não foi só isso ou não foi sobretudo isso: o que este governo, com a cobertura desta incrível “Europa” neoliberal e descarada, andava a fazer causou-me a maior indignação. Nunca fomos governados por gente assim – inepta, inculta, com uma visão ideológica de fugir, insensível, inescrupulosa, sem princípios e gulosa de enriquecer ainda mais os já muito ricos. Como é possível que um país pequeno e pobre tenha “senhores administradores” de empresas a ganharem duas a três vezes o salário do Presidente dos Estados Unidos! É simplesmente obsceno. O que se passou no BES, por exemplo, merecia ser contado pela pena de um Swift ou de um Voltaire. Os salários de alguns senhores e senhoras da televisão metem medo.

JC   - A sua carta aberta teve imitadores: Miguel Real, Alexandra Lucas Coelho… Faltou-lhes serem pioneiros. Teve um sujeito de mais de oitenta anos de os preceder, de lhes dizer como era…

EL - Quantos mais, melhor. Fico muito grato ao Miguel Real e à Alexandra Lucas Coelho, a qual disse umas coisas bonitas a meu respeito. Daqui lho agradeço.

JC - Voltando ao que interessa: Veio a independência de Moçambique e a Frelimo nacionalizou-lhe a casa, desagregou-lhe o núcleo familiar, “enxotou-o” para o estrangeiro. Tinham chegado os tempos difíceis. Depois disso esteve várias vezes em Moçambique mas jamais esqueceu nem perdoou. Foi alguma vez instado/convidado a regressar definitivamente à terra onde nasceu?

EL - A FRELIMO nunca me “enxotou”. Saí pelo meu pé e até me disseram que tinham muita pena de que eu me viesse embora. Diz que nunca esqueci nem perdoei. Esquecer, claro que não esqueci. O perdão não é para aqui chamado. O que tive foi sincera pena de que certas coisas tivessem sido feitas de modo tão atabalhoado e tão agarrado a uma ideologia em pastilhas, em vez de se prosseguir um planeamento mais bem pensado e com mais respeito pelas boas estruturas existentes. No início dos anos 80, a população pagou a tontice ideológica com língua de palmo.

JC -   Joanesburgo, Lisboa, Estocolmo, Londres, cidades de um périplo de “deslocado” que estabilizou em Londres, onde viveu dezassete anos na qualidade de conselheiro cultural. Nas suas memórias fala dos magníficos tempos londrinos mas desvenda também alguns segredos de chancelaria que no geral não chegam ao conhecimento do público. O funcionamento das embaixadas é um “mistério” que escapa ao olhar e à sensibilidade da opinião pública. Quis dar uma amostra desse universo mais ou menos secreto, corporativo, diga-se?

EL- O meu objectivo, ao falar de certos aspectos da vida na embaixada foi apenas mostrar o trabalho que eu ali fazia, para que se ficasse com a ideia de que nunca concebi o meu posto como uma sinecura. Mas não visei, de modo nenhum, fazer um relato minucioso da vida diplomática. Em Londres, havia mais vida, para além da embaixada… Por outro lado, esse trabalho – contar o que é a vida nas embaixadas - está feito, admiravelmente, na célebre trilogia impagável de Lawrence Durrell (Esprit de Corps, Stiff Upper Lip e Sauve Qui Peut). Em todo o caso, sempre fui contando umas coisas…

JC -    Em Londres fazia parte das suas obrigações receber as primas donas das Letras portuguesas que lhe chegavam de Lisboa. Houve mais algum dissabor “tipo Saramago”, de que não tenha falado no seu livro?

 EL  - Tive muita sorte: felizmente, não há muitos Saramagos…

JC - Em Aveiro, já depois do ciclo londrino, marcado pela tradução, no Reino Unido, de autores portugueses contemporâneos e clássicos, e da presidência nacional da UNESCO, foi-lhe finalmente proporcionado ensinar literatura numa universidade portuguesa. Ainda que este período esteja “guardado” muito provavelmente para o volume V, parece-me que com a sua ligação à Universidade de Aveiro se consumou um dos seus sonhos. No belo texto que a professora daquela Universidade Otília Martins leu na apresentação do seu volume IV no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, mais uma vez ficou   patente o legado de admiração e simpatia que Eugénio Lisboa deixou em Aveiro. Sente-se feliz por ter sido reconhecido pela Universidade de Aveiro como   um dos seus? 

EL -  Como falo abundantemente disto no V das minhas memórias, que ando a escrever, permita-me que me não alargue. Mas sempre lhe posso dizer que foi, para mim, um período muito agradável e frutuoso: o contacto com alunos e alunas, o que se dá e o que se recebe, o fazer novos amigos, como, por exemplo, a Otília Martins, que logo se sagrou minha amiga para a vida, a linda cidade de Aveiro, a Costa Nova… Concretizei, realmente um sonho: estive seis anos a fazer aquilo de que mais gosto: ensinar e aprender. Estudar. Ler. Conhecer. E ser estudado. E ser lido. E ser conhecido.

JC - Projectos. A sua poesia, certamente menos conhecida do que a sua ensaística, merece, a meu ver, a reunião em livro. E um romance, por ora no segredo dos deuses, parece estar na forja. Continua a manter a decisão de que o seu diário só venha a ser publicado integralmente a título póstumo?

EL -  O romance existe, foi começado, está em curso (devagar…) e chama-se O Espanto. Qualquer dia, dá-me uma coceira formidável e escrevo uma abada de poemas ou um só poema devastador. E vou escrevendo o meu diário, de que transcrevo abundantes passagens, no V das memórias. Com cortes, é claro: é muito cedo para certas impertinências. Vou também exercitando a mão, com crónicas para o JL e textos pequeninos para a LER. Para quem já está na “sala de espera”, não é mau."  Júlio Conrado, em Entrevista publicada na Revista Triplov, nº 25, de Abril/ Maio de 2015

Obras consultadas:  
Acta Est Fabula: I Vol.2012, III Vol. 2013, IV Vol. 2014,  Ed. Opera Omnia.
Indícios de Oiro, I e II Vol. 2009, Imprensa Nacional.
Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal)
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009).
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português

A escrita e a vida

Realiza-se, de 22 a 25 deste mês, a 18ª edição do  Festival Literário Correntes d'Escritas, na Póvoa do Varzim. Estarão presentes algumas dezenas de escritores, entre os quais o escritor brasileiro Ignácio Loyola Brandão. O escritor homenageado deste ano é Eugénio Lisboa.
Ignácio Loyola Brandão deu uma entrevista ao Jornal Literário Rascunho, em 2016. Reproduzimos um excerto dessa  entrevista que poderá ser lida integralmente através do link apontado. 
A escrita e a vida
Aos 80 anos e prestes a lançar novo livro, Ignácio de Loyola Brandão celebra a vida e recorda momentos marcantes de sua longa e exitosa carreira literária
Ignácio de Loyola Brandão é um grande trabalhador da literatura brasileira. Sua bibliografia é extensa e passa por praticamente todos os géneros literários (e até não literários, como no caso das biografias que escreveu sobre personagens da História recente do país). O escritor diz que a intensa produção já foi motivo de críticas. O que nunca mudou seu ritmo de publicação.
Conhecido pelas cadernetas em que anota ideias e pensamentos para possíveis livros, o escritor nascido em Araraquara em 31 de Julho de 1936 é uma espécie de workaholic literário. Em 50 anos de actividade, desde que estreou com a colectânea de contos Depois do sol, produziu muito — segundo uma lista que o próprio autor enviou, são mais de 80 livros. Também viajou muito. Conheceu muita gente. Tem muita coisa na cabeça. E é a partir dessa vasta experiência que ele conduz esta entrevista, publicada no mês em que comemora 80 anos.
Sim, Ignácio conduz o papo, porque até perguntas a si mesmo ele propôs. Recorda passagens da juventude, volta à infância, cita viagens e lugares, foge do assunto para retomá-lo após uma ou outra elucubração. Respostas condizentes com o melhor de sua literatura, de livros anárquicos na forma e cheios de referências no conteúdo, tal como Zero e Não verás país nenhum. Duas grandes obras da literatura brasileira.
Viajante contumaz, cinéfilo incorrigível, apreciador da beleza feminina, felliniano de carteirinha, entusiasta dos contrastes das metrópoles (em especial de São Paulo, claro) e homem eternamente marcado pelas suas raízes, Ignácio é uma força da natureza. Homem de várias facetas. Aos leitores do Rascunho, ele mesmo conta como percorreu (e percorre) a tortuosa — mas ainda assim doce — estrada da vida.
• O senhor fará 80 anos no final de Julho (dia 31). Ao longo de sua trajectória, escreveu livros instigantes, que tiveram milhares de leitores, ganhou prémios importantes, viajou pelo Brasil e pelo mundo para falar de seu trabalho e, ainda em vida, entrou para o cânone da literatura brasileira. Os escritores, em geral, sempre acham que não foram devidamente reconhecidos. O senhor se sente plenamente realizado?
Se os critérios são ter construído (ou estar ainda construindo) uma carreira. Ter elogios e ataques da crítica (não tivesse seria estranho; se a Flora Sussekind me elogiasse, eu odiaria). Ter livros traduzidos e ter a obra adoptada em escolas. Viajar (e viajo) pelo Brasil inteiro — quase não há um cantinho que não tenha conhecido. Ter algumas teses académicas sobre minha literatura. Saber que alguns livros saíram como eu queria, outros não (não pergunte quais, mas eu sei). Saber que tenho amigos no mundo dos escritores. Saber que tenho inimigos entre os escritores (chatice não ter). Então sou reconhecido. Só que sei, o reconhecimento hoje pode ser o esquecimento amanhã. Onde estão Osman Lins, Autran Dourado, Antonio Callado, Cornélio Pena, Samuel Rawet, Rosário Fusco, Campos de Carvalho, José Agrippino de Paula, Ricardo Ramos? Quantos anos se passaram até que Maura Lopes Cançado tivesse uma reedição? Sei também que certas situações confortáveis são desconfortáveis, e sendo o mundo literário de momentos de inclusão e exclusão, o jeito é ficar alerta. E isso significa o quê? Trabalhar. Desse ponto de vista sou realizado. Claro que não vou parar, não morri. Vinte anos atrás, quase fui (leiam Veia bailarina), mas fiquei, não sei se para o bem ou para o mal. Se olho para O menino que vendia palavras e Os olhos cegos dos cavalos loucos, acho que fiquei para o bem. A idade traz uma certeza: nosso tempo vai diminuindo. Então, temos de correr? Eu, ao contrário, hoje não corro mais, descobri a calma. Sei que não tenho muito tempo pela frente (sou realista), mas ainda tenho projectos, sonhos, ideias, planos. Não tenho mais tempo de fazer tudo. Mas gostaria de ser como aquela atleta olímpica [Gabrielle Andersen] que, muitos anos atrás, virou heroína ao chegar ao final de uma maratona se arrastando, quase caindo, desmaiando, mas evitando que alguém a ajudasse. E chegou ao final. Quanto à literatura, peço aos amigos que um dia me alertem: você está batendo pino, melhor parar. De repente, depois desta entrevista vem um monte de gente avisando que chegou a hora.
Sei também que certas situações confortáveis são desconfortáveis, e sendo o mundo literário de momentos de inclusão e exclusão, o jeito é ficar alerta. E isso significa o quê? Trabalhar.


• Seu primeiro romance, Bebel que a cidade comeu, já apresenta certa polifonia narrativa, característica que estaria presente em trabalhos futuros. A utilização daqueles recursos — recortes de jornal, quadrinhos, propaganda, etc. — era parte de seu projecto literário na época? Ou seja, uma tentativa de achar um “estilo” de narrativa?
Quando escrevi Bebel, meu primeiro romance, já tinha publicado Depois do sol, em 1965, minha estreia. Antes, tinha escrito quatro romances tenebrosos, que enterrei no quintal da minha casa em Araraquara, para que ninguém encontrasse. Um deles, Cravo sobre gim seco, o Antonio Cândido leu e me aconselhou a esquecer. Havia onze personagens e todos falavam igual. “Por que não faz um monólogo?”, disse o grande e generoso professor. Um dia, reli Manhattan transfer, de John Dos Passos, publicado em 1925, quando o autor estava com apenas 29 anos. Já tinha lido em Araraquara, na altura dos 16 anos. Encontrei na biblioteca municipal um exemplar editado em Curitiba, não me lembro a editora. Uma edição muito simples, quase caseira. Papel de jornal. Mas me encantei pelo livro. Com sua forma moderna, sua visão de Nova York. Trouxe o livro para São Paulo, porque São Paulo era uma Nova York para mim. Reli e cada vez mais achava as duas cidades idênticas. Nunca tinha feito uma grande viagem, mas a Nova York do cinema americano me deslumbrava. Comecei a escrever Bebel a partir de uma reportagem que fiz sobre o suicídio de uma promissora bailarina clássica, que se atirou de uma janela, depois de descobrir que tinha câncer  numa das pernas e teria de amputá-la. Publiquei a matéria, mas o assunto ficou na cabeça. Nessa época eu fazia muitas reportagens com jovens candidatas à garota propaganda, para a Última Hora (havia quem dissesse o Última Hora, ou seja, o jornal Última Hora. Mas, para nós que trabalhamos lá, era feminino, carinhoso). A partir daquele suicídio, decidi contar a história de uma carreira que não dá certo, porque eu conhecia dezenas de jovens que tentavam e nunca conseguiam nada. Conhecia todo backstage de teatro, cinema e TV. Quando comecei, percebi que podia ser mais, ser uma história que se passava em São Paulo e deveria ter a cara da cidade e da sua gente. Uma noite, ao fazer a mudança de uma pensão para meu primeiro apartamento, na praça Roosevelt, lendário lugar de São Paulo, redescobri Dos Passos. E pensei: esta é a estrutura, o jeito de ser da cidade, de como vivíamos, daquilo que líamos, assistíamos, comíamos. Vieram então as notícias, os classificados, as cartas dos fãs de Bebel, as manchetes de jornal, o barulho das ruas. Lendo Bebel,  encontra a São Paulo dos anos 1960 sendo modificada. A rua da Consolação inteira alargada, os bondes e trilhos sendo retirados, as putas nas ruas, os primeiros travestis, os inferninhos, os cinemas. Escrito após o golpe militar, ali está todo o ambiente, as informações em forma de notícia sobre o movimento subversivo, os atentados, as mortes. Foi uma decisão para aquele romance. Eu não sabia escrever romances, mas escrevia, saía do jornal, corria para casa e escrevia, escrevia a noite inteira, e Bebel acontecia, aquilo jorrava, eu vivia e transformava o que vivia em literatura, juntava material lido e vivido por outros, imaginava, havia muito de mim, mas disfarçava, era e não era minha vida, era a vida que eu gostaria de viver. Não, não, Bebel não foi parte de um projecto literário. Eu nem me considerava escritor, só queria sê-lo. Imagine, nem sabia o que era projecto literário. O que eu tinha era um projecto para aquele livro. Mas a estrutura dele foi ampliada, desenvolvida à exaustão e usada em Zero. Aí sim havia um projecto.
• Num papo que tivemos há alguns anos, quando o senhor lançava um livro com suas memórias sobre os Estados Unidos (Acordei em Woodstock), disse-me que Zero e Não verás país nenhum eram seus dois “marcos”, ou longest drive, expressão que usou para explicar os êxitos dos romances. Depois desses livros, vieram vários outros. Mas por que eles foram tão especiais? O que explica, do ponto de vista da criação, essas obras terem saído como saíram?
A não ser os grandes editores americanos — e alguns editores brasileiros que abrem nichos especiais —, poucos sabem por que um livro funciona e estoura. A maioria acontece num repente, até assusta. Zero foi produto de nove anos de trabalho. Iniciado em 1964, logo depois do golpe, ele se estendeu até 1973, quando terminei a primeira versão. Um livro violento, de raiva. Eu estava indignado, puto com os militares, odiava a censura aos livros e à imprensa, que eu sofria directamente. Como lutar? Ir jogar bombas? Pegar em armas? Não sou disso. Então criei minha “bomba”. Aquele livro foi minha bomba. Que estourou! Zero foi emblemático por ter sido o primeiro livro que contou como eram os bastidores do Brasil durante a ditadura. A dificuldade de viver, a ameaça constante da morte, os assaltos, as explosões, o caos, as torturas, o medo permanente. Fiz tudo para escrever um livro não panfletário. Queria um livro que chocasse e arrebentasse, não um manual para guerrilhas, para montar bomba, colocar armas na mão das pessoas. Quando os leitores tiveram Zero na mão, se assustaram e se deslumbraram com a forma solta, livre, despedaçada, porque era isso que se queria fazer, algo solto, que provocasse e revelasse. Nunca mais escrevi um livro com tanta liberdade, esquecendo normas, regras, narrativa com começo, meio e fim, explicações, descrições físicas e psicológicas dos personagens. Não havia tempo para isso. As coisas aconteciam, porque aconteciam assim na vida real e os leitores receberam esse impacto. Então veio a proibição, passei três anos com meu livro enjaulado, os estudantes faziam cópias, os que tinham o livro liam e passavam para a frente, e assim formou-se um mito à minha revelia. Ajudou muito o facto de ele ter sido lançado primeiro na Itália, pela Feltrinelli, a mesma editora que revelou Pasternak e o Dr. Jivago para o mundo. Quando veio a liberação, Zero foi para a Codecri, editora do Pasquim. O jornal ajudou muito na explosão de vendas. Estava sempre na lista dos mais vendidos e era um livro difícil de ler e seguir. Nunca me esqueço do relançamento de Zero, após a liberação, em 1979, na Livraria Capitu, em São Paulo, um livraria pequena, dirigida por Ana Elena, Cristina e Patricia, três superjovens idealistas. Formou-se uma fila de três quadras, que ia se renovando, porque o espaço era mínimo dentro da livraria. Começou a chover e ninguém arredou pé, as pessoas chegavam molhadas, me abraçavam, todos estávamos molhados, ninguém se importando, foi chamada de “a noite da liberdade”. Zero foi o primeiro livro liberado entre os 500 ou mais títulos proibidos pela censura.


• E sob o ponto de vista da criação, por que os livros “aconteceram”?
Certa vez, perguntaram a [Luigi] Pirandello, dramaturgo italiano, prémio Nobel, como ele explicava a peça Seis personagens em busca de um autor. Sua resposta me marcou. Ele disse: “Não sei, sou apenas o autor”. Confesso que também não sei explicar por que Zero e Não verás país nenhum se transformaram em longest drives. Muita gente dizia: Zero vende porque foi proibido. Porém, continua vendendo até hoje, já chegou a quase 1 milhão de exemplares vendidos ao longo desses anos. Foi liberado em 1979. Portanto está nas livrarias há 37 anos e hoje não tem mais censura, e esperamos que não tenha. Com Não verás, deu-se um facto espantoso, sem explicação. Quando a Codecri o lançou, em Novembro de 1981, a primeira edição, de cinco mil exemplares, esgotou numa semana. Era preciso rodar outra, imediatamente. Mas era véspera de Natal, tempo de cartões e boas festas. A editora encontrou as gráficas sem espaço na programação e sem papel. Foi feito um tour de force e saíram mais 10 mil exemplares. Esgotados. Então, rodou, rodou, rodou. Continua até hoje, está sempre na lista de adopção de colégios e universidades. Muita gente comparou a Admirável mundo novo [clássico de Aldous Huxley]. Li, mas é diferente. Falaram de 1984. É diferente. Este país sem árvores, sem água, o Amazonas como deserto, as cidades sob violência, as grades fechando edifícios e casas, câmaras de segurança, o sol e o calor matando as pessoas, foram invenções minhas a partir do exagero dos noticiários sobre o meio ambiente. O meu país absurdo se transformou em realidade. A vida copiou a ficção. Sempre achei que Zero e Não Verás seriam tremendos fracassos. Tive enorme ansiedade antes do lançamento dos dois livros, pois são pesados — ainda que contenham profunda ironia, sarcasmo, humor negro —, mas, mesmo assim, são lidos. A violência da realidade superou tudo. Não Verás hoje é róseo, ainda que cínico. Quando o livro está impresso, desliga-se de nós, vive vida própria, liberta-se. Durante anos, tive um problema. Falavam de Loyola, falavam de Zero. Loyola-Zero. Estava amarrado a esse livro. Um estigma, uma marca. Será que serei autor de um livro só? Somente o impacto de Não Verás me libertou, me deu sobrevida. E se analisar, as estruturas de ambos são antagónicas. Um é fragmentado, estilhaçado. O outro, convencional, tradicional, com começo, meio e fim, tudo no lugar. Mas cutuca o tempo inteiro, incomoda. Na minha cabeça, o regime político que comanda o país em Não Verás veio da ditadura de Zero. Essa ditadura cujos efeitos recebemos até hoje..
• Muitos de seus livros têm em comum uma visão surreal da vida, sempre sugerindo outras possibilidades para o quotidiano e os factos. Não verás país nenhum é uma distopia. Já Dentes ao sol, uma narrativa tão anárquica que desafia a elaboração de uma sinopse que dê, minimamente, conta de tudo que acontece no romance. Isso para citar apenas dois exemplos. De onde vem essa predilecção por narrativas desestabilizantes? É uma coisa genuína do escritor Loyola Brandão, ou esse “estilo” foi moldado a partir de seu repertório cultural?
Vai lá saber! Os teóricos que expliquem quando minha obra se completar. Se é que ela tem seu valor. Escrevo. Não posso esquecer que sofri por anos e anos a castração da censura, a necessidade muitas vezes de usar a metáfora, a fábula, o surreal para disfarçar o que queria dizer. Mesmo em Dentes ao sol, que considero um romance realista, esse fantástico aparece. E fico espantado quando me diz que ele é anárquico. Ali é minha cidade — e este é um de meus livros predilectos. É o interior fechado, a vigilância de uns sobre os outros, as mentiras que corriam, as fantasias sobre determinadas pessoas, o mundo doentio de uma sociedade cheia de preconceitos, conservadorismo, fofoqueira, moralista, cada um fechado em si, desconfiado do outro. Será que a Araraquara do romance não é o mundo de hoje? A minha aldeia tornou-se universal? Daí as histórias dentro da narrativa, denominadas OS FACTOS ATRÁS DOS MUROS. Talvez as pessoas e a crítica não tenham entendido o livro, daí o mutismo sobre ele. Passou ignorado, o que sempre me doeu. Minhas narrativas são desestabilizantes? Ora, a vida é desestabilizante, não vê e não reflecte quem não quer. Os momentos históricos brasileiros têm sido continuamente desestabilizantes. O que é o período em que estamos vivendo agora? Eu apenas copio e transfiguro a vida real. Nada mais. É tão simples. Diga, é estável um país que tem um ministério com oito titulares envolvidos em processos de roubo, suborno e propina?
(...)• Toda entrevista que pretenda repassar fatos de sua carreira, não tem jeito, precisa mencionar livros como Zero e Não verás país nenhum, como acabei de fazer. Mas, em sua opinião, que trabalho de sua bibliografia mereceria mais atenção da crítica?
Já disse antes e repito: nunca leram direito o Dentes ao sol. Aliás, o único capista que o entendeu foi o desenhista da edição americana, lançado pela editora Dalkey, de Illinois. Ele mostra a fechadura de uma porta. Era isso. Como você observou, esse romance tem tanta coisa por trás que deve ter passado despercebido. A tradução do título também é muito boa: Teeth under the sun. Ou seja, Dentes sob o sol. Jamais fizeram a ligação entre Cadeiras proibidas e Dentes ao sol, em relação ao fantástico. Dois livros de 1976, em plena ditadura militar. Outro livro que passou em brancas nuvens foi O beijo não vem da boca. Até o considerado Wilson Martins — que sempre me apoiou muito — disse uma frase curiosa ao comentar o livro. Escreveu: “Eu queria ter tantas mulheres quanto o Loyola teve”. Confundiu, ele que era um mestre, o personagem com o autor. Wilson sempre me levou às aulas dele em Nova York, cada vez que passei por lá. Eu diria ainda que Cadeiras proibidas poderia ter tido melhor recepção. Curioso que, lançado nos anos 1970 e esquecido, estourou entre os jovens nos anos 1990 e agora neste milénio. Bomba de efeito retardado. Não é reclamação, é um apontamento. A crítica que escreva o que quiser, é a função dela. Mas há coisas que me alegram. Em 1980, ao passar por Albuquerque, no Novo México, dei palestras para as turmas do professor, e brasilianista de primeira, John Tollman. Depois, fomos jantar. No restaurante, um jovem estudante que tinha acabado de ler, em português, Dentes ao sol, disse-me: “Foi curioso, estranho e ao mesmo tempo bom, ao ler Dentes ao sol, descobrir que tudo parece se passar aqui nesta minha cidade, tão igual”. Pronto, o livro tinha ganhado universalidade.
O romance é uma grande trepada, múltiplos orgasmos, enquanto o conto e a crónica são rapidinhas. Ainda que rapidinhas que nos levem a trabalhar muito, até o acerto final." Luiz Rebinski, Jornal Rascunho, Brasil

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