terça-feira, 24 de janeiro de 2017

As palavras dão para tudo

Naqueles tempos Bárbaros e Góticos
Por Eugénio Lisboa
" Sofro, com frequência, semanalmente, diariamente, horariamente, quando me ponho a ler colunas, livros, ensaios, ficções, testemunhos dos jovens e aclamados turcos  do nosso mercado literário.  Sinto-me, ai de mim,  posto de lado, excluído, arrumado numa prateleira, de cada vez que mergulho naquela algaraviada  debitada numa prosa "inovadora", que ofende o bom senso, a gramática essencial e a mais elementar lógica do discurso.  As palavras combinam-se, ali, naquela prosa intemerata  e louca,  de modo anárquico e perturbante - e deixam-me os olhos e o espírito enviesados . Palavra puxa palavra, na razão directa da falta de senso e na inversa da mais desejável higiene mental. Escreve-se uma prosa "fresquinha" e "novinha", em que nada faz muito sentido, mas em que tudo soa muito a uma " revolução de linguagem" ( sic). Aquela prosa não dá para pensar, reflectir, para exprimir , dá apenas para parecer que está ali para prospectar territórios "novos", mesmo à custa de uma falta total de senso e de uma pungente ausência de sentido de ridículo.
O grande escritor americano James Baldwin observou que " a função radical da linguagem é a de controlar o universo, na medida em que o descreve." Descrever com acuidade o universo exige rigor, honestidade mental e um cuidado particular  com a manipulação das palavras. Não é com combinações arbitrárias de palavras, com aproximações novinhas entre aquelas que mutuamente se não desejam, que se poderá descrever adequadamente o universo, quanto mais controlá-lo.
Leio, diariamente - e disso sofro - afirmações  tontas , debitadas  em ar de grande  regozijo e descoberta. Observava Cervantes que uma observação tonta pode ser feita  tanto em latim  como em espanhol. Eu acrescentaria  que o português também se presta  maravilhosamente  a acolher o dislate. Fazer isto à linguagem, levianamente desta maneira, é coisa  mui piadosa de ver. " Talvez  que, de todas  as criações do homem, a linguagem  seja a mais assombrosa", disse esse grande biógrafo que se chamou Lytton Strachey.  Talvez, por isso mesmo, essa assombrosa criação  devesse estar cuidadosamente preservada, até aos ossos, de tanta irresponsável  e quotidiana agressão. Tal como Churchill sentia, até aos ossos, a estrutura essencial da frase inglesa mais comum, eu sinto, também, até aos meus ossos lusitanos, a estrutura essencial da frase lusa.  Por isso me confrange este mergulho diário nesta prosa contentinha  e magnificamente festejada - e galardoada! - com que os  nossos jovens turcos  inundam  a praça literária. Confrange-me até porque seria de supor  que um mínimo de bom senso lexical e gramatical presidisse, geneticamente,  à  empresa dos perpetradores da prosa. Dizia o grande linguista Noam  Chomsky  que " cada pessoa  tem, programada nos seus genes, a faculdade  chamada gramática universal." Seria como se os  nossos próprios genes  nos impedissem de derraparmos em relação a um discurso claro e límpido.  " Fazer sentido" estaria por assim dizer inscrito no nosso código genético. Como se enganava o grande linguista!  Derrapar, vagabundear, juntar, à toa, elementos lexicais que mutuamente  se não toleram - parece ser  a grande vocação dos geniais  inovadores  que atordoam a nossa praça literária.

Meditando sobre tudo isto, Anatole France, que, no seu tempo fora atingido por um sofrimento não muito diferente  do meu, observava melancolicamente  : " Era naqueles tempos bárbaros e góticos, em que as palavras tinham um significado; naqueles dias, os escritores exprimiam  pensamentos." Tempos remotos , bárbaros e góticos , em que o pensamento era claro e as palavras se não manipulavam de modo leviano ou mesmo arbitrário...
Ponho-me a ler estes textinhos inovadores e sinto a maior dificuldade em navegar no meio daquela  frondosa " floresta de enganos". Tudo me perturba , me intriga, me coloca fora de qualquer realidade palpável.  A sintaxe, a morfologia, o bom senso - retraem-se, afrouxam, fazem caretas, dissolvem-se. Sinto-me, não no meio de um discurso clarificador e enriquecedor, mas , sim, no centro de um ruído ensurdecedor e altamente criador de vertigem e de confusão. " As palavras , como é sabido", observava Joseph Conrad, " são grande inimigos da realidade." Estas palavras, manuseadas à balda, pelos jovens turcos bafejados pela glória, bloqueiam  qualquer minguado acesso à realidade. Fazem um ruído novo, inesperado, intrigante, mas é um ruído que veda, obstrui a entrada do mais pequeno raio de luz. Uma análise combinatória focada nestes textos  enviesados  lega-nos um tecido estranho, feito de arranjos de palavras contranatura, de acasalamentos improváveis e de um guião sintáctico arrevesado. Busca-se , não a finura e a luz, mas, antes, a obscuridade sonora e espessa. Tropeça-se, a cada passo, no contra-senso, na metáfora  mal amanhada, na adjectivação forçada ou absurda, na dedução claudicante... Em vez  da pureza gramatical, o pântano linguístico, que nos enlameia a alma  e conspurca o espírito.
Esta prosa imatura feita de palavras que não apanharam sol - estou a lembrar-me do saudoso João de Araújo Correia - perturba-me de um modo quase físico: lê-se mal, ouve-se mal, respira-se mal. Causa dor física porque entope os pulmões e ofende a respiração.  Feita de palavras míopes  que mal enxergam outras  cuja companhia melhor lhes convenha, vive de associações enviesadas e trôpegas  que entulham o texto de neoplasias incómodas e dolorosas.  Alheia ao discurso límpido concebido para gente chã, a prosa dos jovens  turcos desconhece a claridade do amanhecer, saltando directamente de uma noite para outra noite.
O velho Samuel Johnson, que Boswell laboriosamente biografou, para a posteridade, observou um dia que tinha trabalhado " para refinar a linguagem até uma pureza gramatical e para a clarear de barbarismos coloquiais, de idiomas  licenciosos e de combinações irregulares. " É este trabalho de refinaria da linguagem, para a libertar de " combinações irregulares", que proponho aos jovens perpetradores de atropelos gramaticais que visam inculcar como inovações  aurorais , mas que não passam  de tumores incómodos e opacos. As palavras  dão para tudo: para fazer luz ou para fazer  noite.Tudo  depende  de quem as usa e de que como as usa.  Ou nos elevam acima dos brutos  ou nos põem ao nível deles: escolha quem pode."
Eugénio Lisboa, em ensaio publicado no JL, nº 1208, de 18-31 de Janeiro de 2017

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