domingo, 31 de dezembro de 2017

Ao Domingo Há Música


Mon Dieu toi qui décides
Des fleurs des pleurs des rides
Pourquoi ce ciel tout vide
Quand nous levons les yeux

Le monde se suicide
Le monde est-il trop vieux
Mon Dieu
Mon Dieu

Pitié pour notre terre
Toi qui es notre Père
Arrête ta colère
Mon Dieu pitié pour la vie
Pour la vie
Mon Dieu, dans ton silence
Pardonne à la violence
Pardonne à l'insolence

Des hommes quand ils se croient des dieux

Que seja um novo ano redentor. Que renasçam  as flores  e o verde cubra de esperança o coração de todos nós.
Até 2018.

Andrea Bocelli, numa belissima interpretação de "Our Father".

Nana Mouskouri, em "Mon Dieu"  da Ópera Mosè in Egitto de Gioachino Rossini.
Mon Dieu toi qui décides
Des fleurs des pleurs des rides
Pourquoi ce ciel tout vide
Quand nous levons les yeux

Le monde se suicide
Le monde est-il trop vieux
Mon Dieu
Mon Dieu

Pitié pour notre terre
Toi qui es notre Père
Arrête ta colère
Mon Dieu pitié pour la vie
Pour la vie
Mon Dieu, dans ton silence
Pardonne à la violence
Pardonne à l'insolence
Des hommes quand ils se croient des dieux

Redonne-leur l'enfance
Ton fils t'en prie pour eux
Mon Dieu
Mon Dieu

Pitié pour notre terre
Toi qui es notre Père
Arrête ta colère
Mon Dieu, pitié pour la vie
Mon Dieu
Pitié pitié mon Dieu

Pitié pitié mon Dieu

Crónicas da Infâmia

       

     
  Pela alegria da minha tristeza, gostaria que esta Terra não voltasse a conhecer a morte.
                                              E.M. Cioran, Pe Culmile Disperări

Crónicas da Infâmia
6 -  De 2017: um ano dorido e doloroso   
2017, ano dorido e doloroso, será, talvez, o ano mais sofrido para muitos dos portugueses. Nem a fome, nem a guerra , nem a ditadura eram os fantasmas que se temiam em  2017. 
Não. 2017 era, ainda ,  um ano de experiência governativa. Começara em 2015: um acordo interpartidário de apoio ao governo socialista estabelecido pelo PCP, Partido Comunista Português,  e BE, Bloco de Esquerda. Uma situação inédita: um Partido que perdeu as eleições a formar governo, sustentado por uma  maioria de Esquerda. Alguém os baptizou de "geringonça". Portugal tinha , então, um governo democraticamente sustentado. Geringonça  ou não , o governo não propôs, promoveu ou executou qualquer  acto que pretendesse  causar o sofrimento que  fica deste ano que vai findar. 

Mas o sofrimento chegou. Intenso, medonho, insuportável e longo.  Por omissão, incúria, imprevisibilidade? Aconteceu. Instalou-se.
E se  chegou , que fez sofrer os portugueses? Responder a esta questão é rever uma outra vez, após infindos olhares, a tragédia dos incêndios . Uma grande parte de Portugal enegreceu, esventrada e  esvaziada de qualquer vegetação e das pródigas cores de uma natureza peculiar  que lhe era natural. Um mar de cinzas salpicado por ressequidas florestas e  esquálidos  esqueletos  de casas, onde viveu gente ,  durante uma vida inteira . Uma estrada que se transformou num explosivo caminho para a morte. Imaginar o que passou quem, por ela, tentava fugir é, talvez, o maior desespero que nos lega 2017. Sair de um mar de chamas para  ser encurralado  num inferno impiedoso e assassino, é uma tragédia sem nome.
Por muito que se sucedam  as imagens de um Junho incendiado e de um outro Outubro reacendido, nunca deixam de provocar uma  acutilante comoção. Jamais tanta repetida imagem resvalou ou atentou entrar no campo da banalização  da dor. Ela sente-se, solta-se , dói sempre que se expõe aos nossos olhos. E se são rostos de gente gasta pelo tempo, cujo olhar se perde naquilo que juntaram ao longo de tantos anos, a dor deixa de ser imagem, entra-nos para nos fazer sentir que é o outro que sofre em nós.

A perda de mais de 115 vidas, a devastação de cerca de 500 mil ha, a destruição de centenas de casas, instalações industriais e empresariais, com o leque de efeitos sociais, ambientais e económicos que trouxe, parece que finalmente despertou a sociedade para a relevância do problema dos incêndios florestais. ( Do relatório  do Professor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra, Xavier Viegas).

Todos guardaremos tanta perda , tanta devastação e tanta ausência daquilo que foi  o património maior no coração de quem o perdeu. 
Que o dealbar do novo ano  ilumine  o olhar  e active o discernimento de quem pode evitar esta dorida e dolorosa tragédia.
Fiquemos atentos. Que venha 2018.
                     Praia da Rocha, 31 de Dezembro de 2017
                         Maria José  Vieira de Sousa

sábado, 30 de dezembro de 2017

Alguns dos meus livros em 2017

Lê- se a vida  inteira para saber que livros reler na velhice, afirmou Autran  Dourado. Não há verdade maior. Há muito que releio  livros que me tocaram ou leio novos livros de autores que  sempre me seduziram. Tive uma vida inteira para praticar  o mais aliciante ofício:  leitora. Faço-o desde que descobri as letras. Os sons e a música, que delas vinham, capturaram-me para sempre. Nem sei quantos livros li. Creio que  qualquer leitor, que se preze e se orgulhe do seu estatuto, não o sabe. E nunca o saberá. A leitura não se contabiliza. Interioriza-se. 
Vivo rodeada de livros   e continuo a comprar livros.  Creio que fui abençoada, à nascença, por uma Fada Madrinha que me concedeu o dom do prazer da leitura. E ao erguer a varinha mágica  impôs que viesse embebido num espírito de curiosidade  sem fim. E tem sido. A curiosidade alimenta a procura de  livros. Sou uma eterna curiosa que se compraz  na magnificência  de uma obra prima, na riqueza  de um estruturado romance, na clareza de um arguto ensaio,  no   belo  esplendor de um   conto, num inconfundível e precioso opus memorialístico e no mais   maravilhoso  e  transcendente  canto que enche a poesia. 
Partindo deste princípio , elaborei uma lista aleatória de  alguns dos livros que li, com sedução redobrada, em 2017.
Começarei por Eugénio Lisboa, um dos expoentes máximos da Literatura Portuguesa  da actualidade. Foi homenageado, em Fevereiro, nas Correntes d'Escritas e viu  anunciado, pela primeira vez ,um galardoado com um prémio Literário com o seu nome: O Prémio Literário Eugénio Lisboa, instituído pela INCM para obras assinadas por escritores moçambicanos. Neste ano, esteve intensamente produtivo. Publicou dois livros. O primeiro em Fevereiro, um Diário de Viagens que complementa o V volume da sua obra memorialística, Acta est Fabula. O segundo ,  que dá um fim  inesperado a essa preciosa e  monumental  "Acta est Fabula", funcionando como um Epílogo .  Trata-se de uma sentida homenagem à  sua mulher , falecida em 2016, um profundo hino  de amor  e um pungente Diário de Luto.
Eis, pois,  algumas das minhas leituras em 2017:

De Eugénio Lisboa: 
- Diário de Viagens Fora da Minha Terra - 1996-2013, Opera Omnia Editora, Fevereiro de  2017
Acta Est Fabula, Memórias, EpílogoOpera Omnia Editora, Novembro de 2017

De Jorge Luis Borges:
- Este Ofício de Poeta, Relógio D'Água Editores, Setembro de 2017
- Nova Antologia Pessoal, Quetzal Editores, Outubro de 2017

De Hannah Arendt: 
- Desobediência Civil, Relógio D'Água Editores, Janeiro de 2017
De Arendt e Heidegger:
- Cartas , 1925-1975, Guerra&Paz Editores, Novembro de 2017

De Ludwig Wittgenstein:
- O Livro Azul, Edições 70

De Saul Bellow:
- Agarra O Dia, Fragmentos

De Virginia Woolf:
- Momentos de Vida, Ponto de Fuga, Açores, Abril de 2017

De Kent Haruf: 
- As nossas almas na noite, Penguin Random House, Setembro de 2017

De Luís Amorim de Sousa:
- Apesar de Tudo, Em memória de Alberto de Lacerda, Labirinto de Letras Editores, Março de 2017

De Oscar Wilde:
- O Livro das Tentações, Coisas de Ler Editores, Janeiro de 2008

De Leonardo Da Vinci:
- Fábulas, Editora Prefácio, 2006

De George Orwell:
- Na Penúria Em Paris e Em Londres,  Relógio D' Água Editores, Fevereiro de  2017

De Octavio Paz:
- Vislumbres de la India, Editorial  Seix Barral, Marzo 2014

De George Steiner: 
- Paixão Intacta Relógio D' Água Editores, Julho de 2003
- As Artes do Sentido,  Relógio D' Água Editores, Fevereiro de 2017

De Aldous Huxley:
- Sobre a Democracia e Outros Estudos, Círculo de Leitores

De Rui Knopfli:
 - nada tem já encanto, Tinta-da-China, Outubro de 2017

De Maria Teresa Horta:
 - Poesis, Publicações Dom Quixote, Junho de 2017

De Nuno Júdice:
- O Mito da Europa Publicações Dom Quixote, Abril de 2017

De António Osório:
- a ignorância da morte, Editorial Presença, 1982

Adiemus



sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Quero escrever sobre a solidão

"Quero escrever sobre a solidão. Quero escrever sobre teu rosto orvalhado de ternura - e sobre a solidão. Mesmo que, depois, me sinta mais vulnerável.
Mas é suspeito falar sobre solidão. Não é coisa de gente séria e madura.(...) Por isso, já que não posso falar de solidão, venho dizer-te que este rio de Outono é feito de pedaços dispersos: de recifes agrestes  e margens ossudas; do perfil escuro das árvores sem dono. E também  de alvoradas e mansidão azul. Quero ainda dizer-te que, apesar das flores que não deram fruto, há lá fora dois palmos de terra chã coberta de esperança perfumada de vento. Por isso espero que hoje, no declinar de mais um dia  de ausência, nem tudo seja cais deserto  e abandono." 
Fernando Aires, in "Era uma vez o Tempo", Opera Omnia Editora,  Outubro 2015, p.101

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

The novel tells a story


TER OU NÃO TER HISTÓRIA DENTRO
Por EUGÉNIO LISBOA

The tale of pure incident, in which the
characterization is perfunctory or commonplace,
                  has just as much right to exist as the other.
Somerset Maugham, The Art of Fiction

"Há duas espécies de snob: o snob sofisticado ou “chic” e o snob provinciano. O snob provinciano é o que, não muito seguro das suas convicções de snob, as arvora ostensiva e estouvadamente, convencido de que faz figura de “exigente”, quando faz apenas figura de rústico ingénuo. Entre os snobs da segunda categoria está, por exemplo, o intelectual enfastiado, que declara urbi et orbi não gostar de ler ficção com história dentro. Uma boa história incluída no bojo de um excelente romance – incomoda-o. Prefere, diz ele, um romance ou uma novela de pura caracterização ou “de personagem”, ou, então, “de atmosfera”. No limite, nem história, nem personagem, nem atmosfera: deliciar-se-ia, espartanamente, com a pura perfeição da ”escrita”: o esplendor da linguagem seria, para si, alimento suficiente. De qualquer modo, o romance de personagem ou o de atmosfera ainda seriam aceitáveis, mas o romance com história dentro (com intriga ou “plot) é que não. Esse seria só para os incultos, os não sofisticados, os rústicos caídos, desastradamente, no reino solene da ficção.  É uma preferência que me intriga: como se pode não gostar de uma boa história empolgante, recheada e bem contada? A Ana Karenina, a Madame Bovary, o Père Goriot, o Le Rouge et le Noir, o David Copperfield  ou Os Irmãos Karamazov contam-nos impressionantes “histórias” recheadas de ingredientes narrativos que nos seduzem. Os contos de Maupassant e de Maugham são histórias apaixonantes cujo encanto narrativo nos cativa. Que mal haverá nisto? Por que será que a história dentro da ficção aflige tanto o snob provinciano? Afligi-lo-á, de facto, ou fingirá ele que se aflige?
A “história” pode até não ser o valor mais precioso do romance, rico, por outro lado, de personagens complexos e fascinantes que a história propicia, não sendo todavia nela, repito, que reside o valor essencial do romance ou do conto. A verdade, porém, é que a história tem uma função importante e não desprezível. Ortega y Gasset, nesse seu ensaio genial, Ideas sobre la Novela, argumentava com recurso ao colar de pérolas: como todos sabemos, no colar de pérolas, o que é valioso são as pérolas e não o fio que as suporta, mas, sem o fio, não há colar, há apenas um conjunto desorganizado de pedras preciosas. Nessa prodigiosa ficção que é a Ana Karenina, o importante poderá não ser o fio da história, mas sim a riqueza inquietante de personagens  como a própria Ana ou, por exemplo, Levine. Mas, sem o fio condutor da narrativa, ficaríamos sem poder fruir a presença forte daqueles personagens. Sem esse “fio”, diria ainda Ortega y Gasset, estaríamos na presença de uma ficção “paralítica”.
O uso da “história” vem de longe: já Aristóteles, que leu, entre outras histórias, a que conta a Odisseia, observava que o “plot” “deverá ser construído de forma que, mesmo sem o auxílio da vista, aquele que ouve a história sinta horror e se renda à piedade que provoca o que acontece.”  O filósofo grego foi portanto sensível à “história”, isto é, à organização dos elementos narrativos  conducente a criar emoção (Aristóteles, Poética, XIV, 1). O Decameron, as Mil e Uma Noites, as Histórias da Cantuária vivem todas de divertidas e emocionantes  “histórias” que saborosamente se contam e saboreadamente se escutam. Scheherazade salvou a cabeça pela sua ininterrupta capacidade de contar histórias. Voltaire filosofou, contando histórias. Balzac  deu-nos um monumental fresco da sociedade do seu tempo, contando histórias. Mesmo o “romance paralítico” de Proust se farta de contar histórias. Mesmo as ficções curtas e longas que menos parecem contar uma história, se bem observarmos, contêm um fio, nem que ténue, de “história”. “Yes – oh dear yes – the novel tells a story”, dizia, com algum acinte, o romancista inglês E. M. Forster, no seu livro seminal, Aspects of the Novel. “Nós somos todos”, observava ainda Forster, “como o marido de Scheherazade, na medida em que queremos saber o que vai acontecer a seguir.” Querer saber o que vem a seguir nada tem de fútil ou de infantil: pode levar-nos ao coração de descobertas fundamentais. O Swan de Proust  conduz-nos até ao fim da sua tormentosa saga amorosa, para nos revelar, no último momento, uma descoberta psicológica de enorme alcance: amara e atormentara-se durante muito tempo, por uma mulher que afinal nem era o seu tipo preferido de mulher…
Não era só o homem primitivo, sentado à beira da fogueira, que ansiava por saber o passo seguinte da narrativa que lhe fazia o contador de histórias da tribo: o mais experimentado e sofisticado leitor de um grande romance moderno também não desdenha de querer saber “o que vem a seguir”. Quando, ainda na minha adolescência, lia as páginas compactas do ciclo da “Belle Saison”, da saga romanesca Les Thibault, de Roger Martin du Gard, eu morria de desejos de saber o segredo que escondia o passado amoroso de Raquel, amante de Antoine Thibault. A narrativa mantém o suspense e, por fim, o terrível segredo é revelado, ao mesmo tempo, a nós (leitores) e a Antoine, ficando nós e ele como se tivéssemos levado uma pancada na cabeça. Todo esse grande romance está cheio de histórias e de momentos em que nos perguntamos: “o que vem a seguir?” Este fio de cariz policial nada tem de indigno até porque se insere em linhagem nobre: o Rei Édipo, de Sófocles, deixa-nos, literalmente, sem fôlego.
De qualquer modo, Somerset Maugham vai até mais longe, na defesa do romance “com história dentro”, quando faz, no texto que cito em epígrafe, a apologia do romance de “puro incidente” ou de escorreita acção: “De facto”, acrescenta ele, “foram escritos alguns romances muito bons, dessa espécie, Gil Blas, por exemplo e O Conde de Monte Cristo.” Não tenho qualquer espécie de relutância em subscrever estas palavras. Seja como for, o romance com história dentro nada tem de menos nobre ou de menos rico e complexo. Diria mesmo que o romance completamente expurgado de história ou simplesmente não existe ou, a existir, melhor fora que não existisse. Porque, como dizia Forster e folgo em repetir, “Yes – oh dear yes – the novel tells a story.” 
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no JL 1232, de 20  Dezembro de 2017 a 2 de Janeiro de 2018

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Um recanto europeu diferente

Image caption
Baarle-Nassau, na Holanda, abriga mais de 20 enclaves belgas
 Foto: Andrew Eames
A cidade europeia em que a fronteira entre dois países divide casas ao meio
Por Andrew Eames ,BBC Travel , 25 Dezembro 2017

"Um recanto sossegado no norte da Europa chama a atenção por uma anomalia geográfica - muitas das suas casas são divididas por uma fronteira internacional, que passa no meio das propriedades.
Desta forma, um casal pode deitar-se na mesma cama, mas dormir em países diferentes. E há quem mude de lugar a porta principal da casa  para obter vantagens económicas.
Não muito longe da fronteira com a Bélgica, o município holandês de Baarle-Nassau abriga cerca de 30 enclaves belgas, conhecidos como Baarle-Hertog.

Image caption As fronteiras da região não foram definidas até 1995, quando o último lote de terra foi concedido à Bélgica | Foto: Andrew Eames

Toda essa confusão remete à Idade Média, quando lotes de terra foram divididos entre diferentes famílias da aristocracia local. Baarle-Hertog (hertog significa "duque" em holandês) pertenceu ao duque de Brabante, enquanto Baarle-Nassau era propriedade da Dinastia Nassau.
Quando a Bélgica declarou a independência dos Países Baixos, em 1831, as duas nações ficaram embaralhadas de tal forma que os sucessivos regimes que assumiram foram dissuadidos de definir suas áreas de jurisdição exactas.
As fronteiras não foram estabelecidas até 1995, quando o último lote restante da "terra de ninguém" foi concedido à Bélgica.

Diferenças

Dos cerca de 9 mil moradores da região, aproximadamente três quartos têm passaporte holandês.

Image caption As fronteiras são marcadas por cruzes brancas nas calçadas, indicando 'NL' de um lado e 'B' no outro | Foto: Toerisme Baarle

O município holandês também detém, de longe, a maior parte de terra -76 quilómetros quadrados, em comparação com os 7,5 quilómetros quadrados belgas.
À primeira vista, não é fácil distinguir os territórios, que poderiam ser confundidos com qualquer cidade típica holandesa.
Mas, depois de algum tempo, as diferenças se tornam evidentes. Há marcações nas calçadas - cruzes brancas com 'NL' num lado e 'B' no outro - e bandeiras ao lado dos números das casas para indicar a que país pertencem.
Além disso, as propriedades holandesas são mais padronizadas que a dos vizinhos belgas. As suas calçadas são cobertas por limoeiros, com galhos cuidadosamente podados e trançados como parreiras de uva.
Já a parte belga tende a ter uma diversidade arquitectónica maior.
Se o visitante tiver o ouvido bom, também pode diferenciar os sotaques, explica Willem van Gool, presidente do escritório de turismo de Baarle. Embora a língua francesa seja ensinada nas escolas belgas, o holandês é o idioma principal de ambas as comunidades.
"Com os belgas é mais como um dialecto, e com os holandeses, (o som) é mais ... limpo", observa van Gool.

Image caption Muitos prédios em Baarle-Nassau e Baarle-Hertog são divididos ao meio pela fronteira | Foto: Toerisme Baarle

Esse facto, aliado à abordagem menos usual das residências no lado belga, levou parte dos holandeses a menosprezar os vizinhos.
"Nos dias em que as aulas nas escolas acabavam ao mesmo tempo, os jovens brigavam", lembra van Gool.
Mas isso acabou na década de 1960, quando os dois prefeitos da cidade (um holandês e um belga) alteraram os horários das escolas e determinaram que o clube juvenil promovesse interacções positivas entre os jovens.

Harmonia

Hoje, muitos moradores de Baarle-Nassau e Baarle-Hertog têm dupla cidadania - um passaporte belga e um holandês.
O convívio pacífico das duas nações atraiu, inclusive, o interesse de assessores do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, por ser um exemplo de como duas comunidades diferentes podem viver juntas em harmonia.
Será então que a confusão geopolítica trouxe vantagens para Baarle-Nassau e Baarle-Hertog? Certamente atrai turistas, diz van Gool.
"O número de lojas, hotéis e cafés que temos seria mais adequado para uma cidade de 40 mil habitantes, em vez de 9 mil. E quando as lojas belgas fecham no domingo, as holandesas não (fecham)", explica.

Desafios e negociações

Mas as complexidades mostram-se  latentes principalmente quando se trata de infraestruturas. As licenças para construção podem ser especialmente complicadas, segundo Leo van Tilburg, prefeito do município belga, cuja câmara municipal é dividida pela fronteira.
Por causa da localização, a Bélgica teve que pedir permissão holandesa para construir parte do prédio da prefeitura - a área é delimitada por uma faixa iluminada que atravessa a sala de reuniões.
Desta forma, grande parte do tempo de Tilburg é dedicado a resolver questões relacionadas ao fornecimento de serviços - como educação, água, infraestrutura - em parceria com sua homóloga holandesa, Marjon de Hoon.
Pavimentar estradas é sua maior dor de cabeça, uma vez que as rodovias podem cruzar várias vezes as fronteiras em poucas centenas de metros. Há ainda problemas em relação à rede de esgoto.
"A estrada sobre a qual o tubo está sendo instalado pode ser toda belga, mas quem paga se a tubulação tiver que ser ampliada por causa de casas holandesas nas proximidades? E quem paga pela iluminação pública, onde a calçada é belga, mas a luz ilumina janelas holandesas? ", questiona Tilburg.
"(Mas) se houver 100 problemas, 98 deles não serão um problema - após muitas discussões, é claro", esclarece.
Tudo é uma questão de negociação.

Brechas jurisdicionais

Dado que as leis de planeamento urbano da Bélgica são menos restritivas que as da Holanda, há vantagens claras em instalar a porta principal da casa em território belga.

Image caption Kees de Hoon (à direita) contornou uma proibição holandesa para construção instalando uma segunda porta no prédio, no lado belga da fronteira | Foto: Andrew Eames

Kees de Hoon, que tem passaporte holandês, queria reformar o prédio onde mora. Mas a porta principal do edifício ficava na Holanda e ele não conseguiu permissão da prefeitura holandesa.
Ele resolveu o problema instalando uma segunda porta principal, adjacente à primeira, mas do outro lado da fronteira.
Agora, com um prédio com duas portas, um de seus apartamentos é holandês, e os outros três são belgas.
Kees não é o único a aproveitar as brechas jurisdicionais. Muitas famílias e empresários estabelecidos na região  beneficiaram de alguma forma.
O caso mais evidente é de um antigo banco que foi construído bem em cima da fronteira, de modo que a papelada pudesse ser levada de um lado para o outro do prédio, sempre que fiscais da receita de uma determinada nacionalidade solicitassem.
Embora a exploração de brechas não seja tão comum actualmente, não pude deixar de imaginar os dias de glória da flexibilização fronteiriça. O gado que misteriosamente mudava de pasto durante a noite. O estoque de uma loja adquirido num país e vendido no outro sem passar pela receita...
"É um assunto sobre o qual os moradores gostam de falar", concorda van Gool.
"E isso foi feito em ambos os lados da fronteira", acrescenta.

Pontos de atrito

Isso não significa que não haja atrito entre as duas jurisdições. Na Holanda, a idade mínima para consumo de álcool é 18 anos, mas os belgas podem beber legalmente a partir dos 16 anos. Então, se um garçon holandês se recusar a servir um bando de adolescentes, eles podem simplesmente atravessar a rua.
Além disso, as diversas lojas de fogos de artifício localizadas nas partes belgas são fonte de irritação para as autoridades holandesas. Nos Países Baixos, a venda e o transporte de fogos de artifício são ilegais (excepto no Ano Novo).
Assim, ao fim da minha visita a Baarle-Nassau / Baarle-Hertog em Novembro, eu tive que passar polícia holandesa, que estava revistando todos que saíam da cidade.
Tudo indica que, nesta expiência de cooperação entre fronteiras, ainda há questões pendentes a serem resolvidas."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) na BBC Travel.

domingo, 24 de dezembro de 2017

No Domingo de Natal Há Música

"Mas tinham vivido o Amor, essência daquela doutrina que ainda não tinha sido pregada e ninguém registara ainda. No mais íntimo dos seus corações tinham sentido aquela verdade: « O que fizerdes ao mais pequeno e ao mais ínfimo a Mim e o fareis».
E naquela noite, em que os animais falaram, as flores abriram o esplendor  das suas pétalas nas trevas, como se as entregassem à luz do meio-dia, as pedras puderam deslocar-se para se dessedentarem  nos regatos mais próximos, adormeceram com a criança aconchegada, entre eles. 
Longe, a estrela fazia descer a sua cascata de fogo sobre Belém de Judá."
                                                            Luísa Dacosta
                                                            Matosinhos, Natal de 88 
Luísa Dacosta, in " Natal com Aleluia", Obras Completas , Edições Asa

A verdade pode sempre descer nas vozes e sons de quem dá à melodia a forma íntima que entra no coração de cada um e de todos nós.
Feliz Natal.

Julian Lloyd Webber interpreta Karl Jenkins' Benedictus", no Welsh Millennium Centre, Cardiff, a  10 de Fevereiro de 2014.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Para Ler em Dezembro

ESCLARECIMENTO
por Eugénio Lisboa
"Tinha planeado que o 5º seria o último volume desta saga memorialística a que, em 2012, dera início e, em 2016, concluí. Tinha apenas congeminado acrescentar-lhe, em 2017, um “anexo”, com o diário das viagens feitas durante o período coberto pelo 5º volume (1995 – 2015). Não inserira, no volume, este diário, apenas para não o tornar demasiado volumoso. Com a sua publicação separada, em 2017, a obra ficaria finalmente terminada. O que se pudesse passar, depois de 2015, já não teria que ver com estas memórias, ficando, se ficasse, apenas registado no meu diário. Aconteceu, porém, que a vida – a minha e a da Maria Antonieta – não continuou, depois de 2015, numa rotina mais ou menos aprazível. Entre 2015 e 2016, algo de profundamente perturbante e dramático aconteceu à MA: uma súbita doença que levou à amputação de uma perna e, menos de um ano depois, ao seu falecimento. Publicar um livro de memórias que ignorasse este acontecimento, como se nada se tivesse passado, pareceu-me inconcebível e quase afrontoso. A perda da MA foi um dos acontecimentos mais perturbantes de toda a minha vida e um dos que mais me marcou de modo profundo e irremediável. Por isso resolvi acrescentar agora este desolador epílogo ao acervo memorialístico que, em 2012, sem qualquer certeza de o poder levar a bom termo, iniciei. Nele descrevo, o melhor que posso, o período de doença e morte, da minha companheira de 57 anos."
Eugénio Lisboa , in Acta est Fabula, Memórias Epílogo 2015-1017, Opera Omnia Editora, 185 páginas, Novembro de 2017

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Prova da existência de Deus


"Quando escutamos Bach, vemos germinar Deus. Sua obra é geradora de divindade. Depois de um oratório, de uma cantata ou de uma «Paixão», Ele tem que existir. Do contrário, toda a obra do Cantor seria uma ilusão desagarradora.
….e pensar que tantos teólogos e filósofos perderam tantos dias e tantas noites buscando provas da existência de Deus, esquecendo-se da única…" E.M. Cioran , in Lacrimi şi sfinţi
Johann Sebastian Bach (1685 - 1750), em MAGNIFICAT - D-Dur BWV 243 (1723,1730), com Anna Nesyba ( Soprano) Monteverdichor Würzburg, Monteverdi Ensemble sob a direcção do Maestro Matthias Beckert.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

O amor é antipolítico

O amor é uma poderosa força antipolítica
“O amor, em virtude de sua paixão, destrói o ‘entre’, esse espaço que nos relaciona com outros e nos separa deles. Enquanto dura o seu encanto, o único ‘entre’ que pode inserir-se no meio de dois amantes é a criança, o próprio produto do amor. A criança, esse ‘entre’ com que os amantes agora estão relacionados e mantêm em comum, é representativa do mundo onde ela também os separa; é uma indicação de que eles inserirão um novo mundo no mundo existente. Por meio da criança, é como se os amantes retornassem ao mundo do qual seu amor os expeliu. Mas essa nova mundanidade, resultado e único final possíveis de um caso de amor, é, num certo sentido, o final de um amor, que deve superar novamente os padrões ou ser transformado em outro modo de estar juntos. O amor por sua natureza não é mundano, e é por isso — não por raridade — que é não apenas apolítico, mas antipolítico, talvez a mais poderosa de todas as forças antipolíticas humanas.”
Hannah Arendt, em A Con­dição Hu­mana, Relógio D'Água Editores

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Fica comigo

Stay with me darling
Stay with me darling
Let us lose ourselves in the moonlight
Lose ourselves
As we find

That there's nothing I could say that would make you go away
No danger I was in and you wouldn't step in the way
I’m not alone anymore
This love's unconditional

Sway with me darling
Just sway with me darling
Let us lose ourselves in the moment
Lose ourselves
As we both find

There’s nothing you could say
That would make me go away
No danger you were in and I wouldn't step in the way
You’re not alone, anymore
‘Cos this love’s unconditional

Oh Lord when will I breathe again
And when will I stop smiling
Somehow you made me believe again
That this is love

And this love's unconditional
Oh this love's unconditional
This love's unconditional
Freya Ridings - Unconditional (Live at St. Pancras Old Church)

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

As emoções da Literatura são eternas

Sobre os clássicos
por Jorge Luis Borges
"Escassas disciplinas haverá de maior interesse que a etimologia: isto se deve às imprevisíveis transformações do sentido primitivo das palavras, ao longo do tempo. Dadas essas transformações, que podem atingir as raias do  paradoxal, de nada ou de pouquíssimo nos servirá para o esclarecimento de um conceito a origem de uma palavra. Saber que cálculo, em latim, quer dizer "pedrinha" e que os pitagóricos  as usaram  antes da invenção dos números, não nos permitem dominar os mistérios da álgebra; saber que hipócrita era actor, e pessoa, máscara, não é nenhum instrumento valioso para o estudo da ética. Analogamente, para fixar o que hoje em dia  entendemos por clássico, é inútil saber que esse adjectivo descenda do latim classis, frota, que  a seguir ganharia o sentido de ordem. (De passagem, recordemos a formação análoga de ship-shape.)
O que é, agora, um livro clássico? Tenho à mão as definições de Eliot, de Arnold e de Sainte-Beuve, sem dúvida razoáveis e luminosas, e ser-me-ia muito grato estar de acordo com esses ilustres autores, mas não vou consultá-los.  Já completei sessenta e tantos anos; na minha idade, as coincidências ou as novidades importam menos do que aquilo que julgamos verdadeiro. Limitar-me-ei , portanto, a declarar o que  sobre esse ponto tenho pensado.
O meu primeiro estímulo foi uma História da Literatura Chinesa (1901) de Herbert Allen Giles. No seu  capítulo segundo li que um dos cinco textos canónicos que Confúcio promulgou é o Livro das Transformações ou I Ching, feito de 64 hexagramas, que esgotam as possíveis combinações  de duas linhas  inteiras. Um dos esquemas, por exemplo, consta de duas linhas inteiras, de uma partida, e de três inteiras, verticalmente dispostas . Um imperador pré-histórico tê-los-ia descoberto na casca de uma das tartarugas sagradas. Leibniz julgou ver nos hexagramas um sistema binário de numeração; outros, uma filosofia enigmática; outros, como Wilhelm, um instrumento para a adivinhação do futuro, visto que as 64 figuras correspondem às 64 fases de qualquer empreendimento ou processo; outros ainda, um vocabulário de certa tribo; outros, um calendário. Lembro-me de que Xul Solar costumava reconstruir esse texto com palitos ou fósforos. Para os estrangeiros, o Livro das Transformações corre o risco de parecer uma mera chinoiserie; mas gerações milenares de homens  cultíssimos têm-no lido e relido com devoção e continuarão a lê-lo. Confúcio declarou aos seus discípulos que se o destino lhe oferecesse mais cem anos de vida, consagraria metade deles ao seu estudo e ao dos comentários, ou alas.
Deliberadamente escolhi  um exemplo extremo, uma leitura que reclama um acto de fé. Chego, agora, à minha tese. Clássico é aquele livro que uma nação ou um grupo de nações ou o longo tempo decidiram ler como se nas suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e capaz de interpretações sem fim. Previsivelmente, essas decisões variam. Para os Alemães e os Austríacos,  o Fausto é uma obra genial; para outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segundo Paraíso de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o Livro de Job, A Divina Comédia”, Macbeth (e, para mim, algumas das sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada sabemos do futuro, esalvo que diferirá do presente.Uma preferência pode muito bem ser uma superstição.
Não tenho vocação de iconoclasta. Pelos anos trinta,  sob a influência de Macedónio Fernández, acreditava que a beleza é privilégio de uns poucos autores; agora sei que é comum e que  nos espreita nas casuais páginas  do medíocre ou num diálogo de rua. Assim, o meu desconhecimento das letras malaias ou húngaras é total, mas tenho a certeza de  que se o tempo me oferecesse a oportunidade para o seu estudo, iria encontrar  nelas  todos os alimentos que requer o espírito . Além das barreiras linguísticas, intervêm as barreiras políticas ou geográficas. Burns é um clássico na Escócia; no sul do Tweed,  interessa menos que Dunbar ou que Stevenson. A glória de um poeta depende, em suma, da excitação ou da apatia das gerações de homens anónimos que a põem à prova, na solidão das bibliotecas.
As emoções que a literatura suscita são  talvez eternas, mas os meios têm  constantemente de variar, nem que seja de um modo levíssimo, para não perderem a sua virtude. Vão-se gastando à medida que os reconhece o leitor  Daí o perigo de se afirmar que existem obras clássicas e que o serão  para sempre.
Cada qual  descrê da sua arte e dos seus artifícios. Eu, que me resignei a pôr em dúvida a indefinida perduração  de Voltaire ou Shakespeare, acredito  (nesta tarde, num dos últimos dias de 1965) na de Schopenhauer e na de Berkeley.
Clássico não é um livro (repito-o) que necessariamente possua tais ou tais méritos; é um livro que as gerações dos homens, instadas por diversas razões, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade."
Jorge Luis Borges, in Nova Antologia Pessoal, Quetzal Editores, Outubro de 2017, pp. 303-306