quinta-feira, 31 de março de 2016

Sombras da Memória

A 31 de Março de 1948, o Congresso dos EUA aprovou  o Plano Marshall, para apoio à reconstrução da Europa. Uma Europa destruída por anos de uma cruel guerra. As feridas desse tempo eram dilacerantemente visiveis.  Os campos de concentração foram a obra maldita e  uma das maiores ignomínias do poder alemão.  Uma lembrança que perdura e que marcará sempre  a História. Recordar é uma dor incómoda, mas necessária para que nunca se levantem novos campos para a morte, para a tortura, para a vergonha. 
De Gorecki, a Symphony 3, Op. 36, "Symphony Of Sorrowful Songs" / Anne Frank / Holocaust W.W.2 hollandskgjestehus , "Sorrowful Songs" - Lento e Largo, na voz da soprano Isabel Bayrakdaraian, acompanhadada pela Sinfonietta Cracovia, sob a direcção do Maestro John Axelro, vídeo retirado do "HOLOCAUST - A Music Memorial Film from Auschwitz".

quarta-feira, 30 de março de 2016

Era uma vez (cont.)

Os Três Reinos ( cont.)
"Claro que houve consternação geral. O rei caiu de cama; já todos temiam que não resistisse a este novo grande golpe. Ele que, durante tantos anos, habilissimamente retivera nas mãos a governação do seu reino tão policiado, tão submetido, tão dirigido, agora se via sem herdeiro natural que lhe sucedesse, e lhe continuasse a obra. Dois filhos legítimos tivera: gémeos e tão diferentes, senhores de extraordinários dons. Ambos como que o haviam renegado, renunciando à herança para que os preparara. E agora já no seu reino tão disciplinado fermentavam pequenos focos de anarquia, ainda pequenos mas que poderiam alastrar. Já as massas pressentiam a senilidade do pulso que tão energicamente as havia refreado.
Neste desconsolo, perdidos os seus dois filhos legítimos, ainda foi o tal adoptivo que principiou a fazer-lhe companhia. Já quase o não podia dispensar o rei. Também o moço parecia não se poder afastar do seu leito. Sempre que lhe era permitido falar, El-Rei conversava com ele. Coisa interessante!, – nessas práticas achava grande prazer. Como se disse, recebera o moço instrução idêntica à dos príncipes, tendo sido educados quase no mesmo pé. Em certos assuntos, porém, que muito eram da especialidade do rei, mostrava uma curiosidade que nenhum dos príncipes mostrara. Na história política do reino, por exemplo; na sua geografia humana; nas suas actuais relações com o estrangeiro; na discussão das suas Leis, etc. E a inteligência que no tratamento destas questões manifestava – áridas, como geralmente são, para jovens – por atrevimento que seja afirmá-lo, não ficava atrás da que noutras haviam manifestado os príncipes. Ora, desaparecidos os dois herdeiros naturais do trono, chegado El-Rei ao último quartel da vida, vários pretendentes ao mesmo disputavam entre si seus direitos. Já, no palácio, fervia a intriga na sombra. Já os pretendentes e partidários rivais se falavam com o sorriso amarelo nos lábios, o verdete do ódio nos corações.
Um ponto único havia, em que todos se entendiam: a malquerença àquele moço que tão visivelmente seduzia o velho rei. Pelos meios de que dispunha cada um, cada um procurava desacreditar no espírito do velho rei o seu jovem amigo. Decerto não passava isto despercebido do jovem. E o resultado foi não ser este, mas eles, que eram pessoas da família real, quem o rei afastou da sua câmara, até do seu paço. Por maquinações do jovem? Sustentavam os escorraçados que sim! e espumavam de raiva e juravam tremendas vinganças futuras, – atribuindo àquele moço uma tão diabólica intuição na intriga que suplantava toda e qualquer experiência.
A ser isto verdade, poderiam quaisquer manejos do moço passar incompreendidos do seu protector? O diabo sabe muito porque é velho; e a debilidade física do rei não se manifestava mentalmente. Dado o que depois se passou, poder-se-á admitir que «a velha raposa astuta» (como depois, lhe chamavam os seus parentes escorraçados) até apreciara o engenho com que o moço ia tentando exautorar, junto do seu real amigo, aqueles grandes senhores que, por seu turno, o procuravam desprestigiar a ele.
Ora o que depois se passou, foi o seguinte: Uma tarde, ao fim da tarde, estavam reunidos na câmara real os importantes da corte. O rei para aí os convocara, pois há algum tempo dava grandes sinais de melhoras. («Ainda não é desta!» lamentavam os seus parentes tornados seus inimigos). E diante de todos, que estavam sumamente intrigados, se dirigiu o rei ao seu jovem protegido, dizendo:
«Tive dois filhos legítimos, que um após outro sonhei me sucedessem. O reino dum não era deste mundo. O do outro era-o por demais. Tu, qual é o teu reino?»
Um silêncio pânico se fez, pois todos achavam estranhíssima esta cena. Talvez o moço hesitasse um momento; não mais que um momento. Logo respondeu: «Que reino pode ser o meu senão o vosso?» Então o rei chamou-o a si, apertou a sua cabeça contra o peito. Como já não podia fugir à sensibilidade dos velhos, teve de fazer um grande esforço para não soluçar. Mais tarde declarou que sempre esse fora, secretamente, o mais amado dos seus filhos, embora filho natural; que esse ia ser perfilhado, jurado herdeiro do trono; e que sem demora ele, rei, resignaria no filho o poder real, pois não só estava cansado, como temia ver-se constrangido a fazer por força o que desde já faria de vontade...
Isto disse ele sorrindo. Olhava complacentemente o filho. Impossível, porém destrinçar até que ponto no seu espírito de velha raposa astuta, esse conhecedor dos homens brincava ou não. E assim se disse, assim se fez. De nada valeram as conspirações dos pretendentes despeitados. Com a satisfação de ter um digno sucessor para o seu reino, o velho rei restabeleceu-se, e ainda pôde viver alguns anos. Morreu de muito avançada idade. Laus Deo!"
José Régio, Há mais Mundos, 1962, (Grande Prémio de Novelística da SPE em 1963), Portugália Editora, 1963
José Régio

terça-feira, 29 de março de 2016

Era uma vez...

Os Três Reinos
"Era uma vez um rei – é claro, que tinha um reino: o reino do rei. Além disso, o rei tinha dois filhos gémeos. A mãe-rainha morrera para os dar à luz. Importa saber que esse era o reino do rei, e que os dois filhos do rei eram gémeos. Desde já, porém, convém acrescentar que o rei tinha ainda um filho adoptivo, ou coisa que o valha. Também a mãe deste morrera, já viúva, deixando fama de um pouco ligeira de costumes (não demais) e muito formosa. O marido fora um dos cortesãos favoritos do rei. Toda a gente, pois, achou bonito que o pequeno se criasse no palácio, brincando familiarmente com os príncipes, e recebendo educação quase igual à sua. Toda a gente, sim, achou bonito! quase toda a gente. Mas, associando vários factos, muito à boca pequena murmuravam os maledicentes que não era só bonito como compreensível, natural... Adiante se esclarecerá este caso. Evidentemente se torna que, dos dois príncipes gémeos, um havia de ser considerado mais velho, – coisa que pertencia aos físicos determinar – ou, como quer que fosse, com mais direitos. Claro que seria esse o herdeiro do trono da coroa, do ceptro, do título de Majestade.
O tempo foi passando, e os dois irmãos crescendo. Vieram os melhores sábios indígenas, e até estrangeiros, para os educar. Do mesmo passo educavam o filho adoptivo, que, como é natural, também ia crescendo.
Ao herdeiro do trono eram dispensados cuidados especiais, porque reinar não é coisa fácil; nem de fácil ensinamento ou aprendizagem. Felizmente, o jovem príncipe revelava aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelos livros e a sofreguidão da sua curiosidade. Mesmo nas horas de recreio o príncipe se recreava folheando os cartapácios de pergaminho; e a sua cabeça loira dobrava sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando tal não sucedia, caía o príncipe numa espécie de alheamento, ou parecia mergulhar em abstracções, meditações, cogitações talvez não muito próprias dos seus verdes anos. Todos os Mestres? Mas não: O Mestre de esgrima, o de equitação e o de dança eram mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu firmar um tratado de amizade com o rei do reino vizinho. Longos anos se haviam guerreado. Agora, estavam ambos velhos. A proximidade da sepultura restringe as ambições e faz embotar os impulsos bélicos. Nesse tratado ficou assente que a princesa real do tal reino vizinho casaria com o sábio príncipe. Ora a princesa noiva era feia, triste, cega dum olho, e até já falara em se meter freira. Todos lamentaram a sorte do jovem príncipe – assim sacrificado a razões de Estado. O próprio pai algoz o lamentava. Por fim, todos sorriram maliciosamente. Na corte da noiva feia, triste, cega dum olho e mística, havia donzelas e donas muito belas, de que falavam com entusiasmo os embaixadores. Homem experimentado, El-Rei sorriu também e deixou de lamentar o filho.
Só o jovem príncipe parecia indiferente ao que se passava: Era como se nada daquilo houvesse de ser com ele. A sua cabeça loira pendia sobre os alfarrábios – tão amorosamente como sobre um seio. Quando se levantava dos alfarrábios, era para olhar não as estrelas da terra, mas as que cintilam demasiado longe.
Finalmente, deu em fechar-se na sua câmara. Dizia-se que andava a escrever um grande livro. E saía de lá com olhos de cego, um ar quase de estátua, um sorriso alheio, feliz, idiota.
A pedido do rei, um dos seus Mestres ousou, um dia, aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar do seu grande amor pelos livros. Decerto muito ensinam os livros; mas o trato dos homens também; também as experiências pessoais e vivas.
Aliás, quase perigava a saúde de Sua Alteza nessa vida sem ar que Sua Alteza levava. Convinha que Sua Alteza se prendesse mais aos costumes da corte, aos jogos e folguedos próprios da sua idade, aos acontecimentos do reino que havia de governar. Nisso tomasse exemplo em seu irmão; até naquele que, não sendo seu irmão, mais ou menos fora educado como tal, e tão ladino se mostrava na curiosidade por tudo que à sua volta decorria... O moço príncipe ouvia-o como se o não ouvisse, fitando-o, sem o ver, com os seus esplêndidos olhos de cego.
Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O Mestre caiu na imprudência de uma breve alusão ao que de manhã, dissera ao seu educando. Então, o príncipe herdeiro levantou-se e respondeu: «O meu reino não é deste mundo.» Lera isto, num livro que fora de sua mãe. Todos ficaram primeiro atónitos, depois constrangidos. O rei nem repetiu os seus pratos favoritos. Tentou-se falar doutras coisas. E, no dia seguinte, o jovem príncipe herdeiro apareceu morto. Envenenara-se com flores perigosas que havia na estufa.
Estava nu, morria virgem, e tinha sobre o peito o livro que terminara essa noite. Mais tarde se viu que era um grande livro. Claro que houve gritos, espantos, choros, exéquias magníficas, exposição de grandes veludos negros e galões de oiro. A noiva do morto sempre se meteu monja. «Era o que tinha a fazer!» comentou o seu ex-futuro cunhado «Com aquele
olho vesgo...» E começou ele, o irmão gémeo do morto, a ser preparado para o difícil ofício de reinar. Não, não empalidecia este sobre alfarrábios de pergaminho!
Aos catorze anos, já comprometera uma nobre donzela da corte. As formosas donas um pouco ligeiras de costumes (não demais), só as não comprometia por já estarem comprometidas: pelo menos, com os respectivos maridos; pelo menos.
Morrer virgem – não era com este. Como para a sua pessoa se haviam transferido, agora, aquelas particulares atenções que sempre se fixam sobre o herdeiro dum trono, até certos pormenores da sua infância eram agora recordados, repetidos com sorridente complacência: Que, por exemplo, fugia para os jardins nos dias de chuva; e lá davam com ele descalço, patinhando nas poças, ou estendido na relva, a apanhar a água do céu. Ou que se misturava com os rapazes da rua para ir aos ninhos, ou jogar à pedrada. Agora, perdia-se por caçadas. Bailava tão bem que nem parecia um príncipe. Conversava familiarmente com os pajens, os
criados, os vilões. Certas noites, escapulia-se disfarçado para ir correr aventuras.
Às vezes, fazia-se jardineiro: podava roseiras cantando canções da arraia miúda (nem sempre muito decentes) e até chegava a cavar com uma sachola! Dava esmola aos mendigos por sua própria mão. Duma vez, trouxera às costas um miserável que achara desfalecido no caminho. Era moreno, ágil, tinha bons músculos, um esplêndido apetite. E ninguém como ele para divertir as damas com histórias, anedotas, intrigas, mentiras, fantasias, e beliscões à socapa.
Os seus Mestres resolveram limá-lo, podá-lo como fazia ele às roseiras.
Compenetrado do seu papel de futuro rei, deixar-se-ia fazer um rei como se quer. Todos diziam: «Desta vez, temos homem!» Pelo contraste, um certo dó humilhante recaía sobre a memória do irmão suicida...
O príncipe começou a apurar a sua educação intelectual; e, felizmente, o novo herdeiro revelava também aptidões de excepção. Todos os Mestres contavam ao rei a sua paixão pelas coisas e a viveza dos seus pontos de vista. Todos os Mestres?
Mas não: O Mestre de línguas mortas, o de matemáticas e o de protocolo eram mais reservados nos seus louvores.
Por esse tempo, o velho rei decidiu fazer jurar seu filho herdeiro do trono. Estava cansado, e sentia que a vida se lhe ia apagando. Mas, durante as cerimónias, o príncipe herdeiro teve excentricidades, liberdades insólitas, saídas de humor que chegaram a provocar o riso na ilustre assembleia, – pouco dignas da solenidade do acto. De modo que, a pedido do rei, um dos seus Mestres se atreveu a aconselhá-lo: Sua Alteza não devia abusar da originalidade de seus espíritos.
Atitudes há do entendimento, como formas de conduta, porventura apreciáveis em um qualquer; mas nem sempre convenientes num príncipe real. Urgia que Sua Alteza renunciasse a dadas particularidades do seu temperamento, em atenção ao alto papel que fora Deus servido distribuir-lhe... O príncipe ouvia-o sem nada dizer. A expressão do seu rosto é que era ambígua, como respirando uma ironia que nenhum dos seus traços acusava. Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, estava-se à mesa, era na rica sala de jantar. O mesmo Mestre falava; embora subtil e indirectamente, continuava a morigerar seu ilustre aluno. Então, o príncipe real
ergueu-se e respondeu: «O meu reino é deste mundo». Não lera isto em parte alguma. Todos ficaram sem compreender, e pouco à vontade. Tratou-se de coisas várias, com uma naturalidade fingida. O rei ergueu-se pouco depois. E, no dia seguinte, o jovem príncipe herdeiro tinha desaparecido do palácio. Em vão se fizeram as mais diligentes e minuciosas inculcas por todo o reino. Correu mais tarde que fugira numa carroça de saltimbancos nómadas." (continua)
José Régio, Há mais Mundos, 1962, (Grande Prémio de Novelística da SPE em 1963), Portugália Editora, 1963

domingo, 27 de março de 2016

Ao Domingo Há música

It's Time to Be Clear

Os que falam de mim dizem que sou pobre
Existo à maneira de uma árvore
Tenho diante e atrás de mim a noite eterna
Vacilo, duvido, resvalo
E sei: a maior parte das vezes o amor nasce do erro
transcreve-se a azul ou a negro
sobre passagens, casas inacabadas, alturas remotas
(...)
José Tolentino Mendonça, in Estação central, Ed. Assírio&Alvim, 2012 

Tentar . Arriscar. Ousar. Apostar. Aprender. Dar. Amar. Celebrar.  Acções que contrariam a inércia  e impedem  que   a vida seja , apenas,    o sopro que nos mantém, transcrito numa cor parda, indefinida.  
Páscoa , Domingo , dia de celebração da vida  que renasce após o erro e se deve  transcrever radiosa , engalanada de várias e  intensas cores.
Para o festejar , os sons chegam na arte de Alison Balsom, uma popular trompetista de música clássica. Ao longo dos anos, tem apresentado um repertório diverso que abrange várias épocas e seus mais representativos compositores. Da gloriosa era do Barroco, escolheu   as árias onde o trompete pode ser  o herói. George Frideric Handel (1685-1759) e Henry Purcell (1658 ou 1659-1695) foram  alvo do seu trabalho . Coadjuvada pelo Maestro  Trevor Pinnock , um especialista nesta área, agregou também as vozes do   countertenor, Iestyn Davies e da soprano Lucy Crowe para adaptação e interpretação de algumas peças.
Sound the trumpet de Henry Purcell , na voz do countertenor Iestyn Davies, em contenda com o virtuosismo de Alison Balsom no trompete e a orquestra English Concert, regida pelo seu fundador, o Maestro Trevor Pinnock.


George Frideric Handel (1685-1759) em   Eternal Source of Light Divine, num extraordinário  dueto entre  o countertenor Iestyn Davies e Alison Balsom no trompete,  acompanhado pela orquestra English Concert, regida pelo Maestro Trevor Pinnock.

"Não há muito repertório para um trompetista porque, até ao século XIX, o trompete não tinha pistões. É a partir daqui que estes músicos passam a tocar notas às quais não conseguiam chegar.
Talvez por isso não haja concertos de Beethoven ou Mozart escritos para trompete. Alison Balsom ultrapassa esta barreira transcrevendo peças que foram compostas para outros instrumentos.
Para a trompetista o desafio é que não foram escritos para o trompete “e não quero deixar de fora nada do original. Adoro as peças que transcrevo são obras-primas e não o faço por fazer, quero que o meu trabalho tenha algum valor”, acrescenta. “Adoro o período barroco por causa da sua resplandecência, um tipo de perfeição limpa em tudo. A maior parte está, perfeitamente, estruturada mas, mesmo assim, pode tocar profundamente as emoções”, diz Balsom."

sábado, 26 de março de 2016

Pediram-lhe prodígios e benesses


NON EST HIC

Pediram-lhe prodígios e benesses,
Como aos outros Rabis, ou feiticeiros.
Mas o pior foi que, sob esses,
Mataram seus milagres verdadeiros.

No pão e vinho que lhes deu, - provaram
Seu corpo e sangue, à santa mesa.
E a seguir, com um ósculo O entregaram,
E O negaram três vezes por fraqueza.

Mas o pior foi quando , sem figueira
Nem lágrimas contritas,
O atraiçoaram de maneira
Que às traições chamam benditas!

(…)

Na cruz infame O ergueram moribundo
Entre os dois justiçados desse dia.
Tremia a máquina do mundo
Quando, invocando o Pai, Ele desfalecia…

Tremia a máquina do mundo, e trevas
Caíram sobre a terra, e o sol baixara,
Quando Ele se extinguiu, perante as levas
Da soldadesca ignara.

Espetaram-lhe a lança, - estava morto,
Sangue manou, com água, dessa chaga…
Mas o pior é que, para nosso conforto,
Já tudo a Pia de água benta alaga!

No sepulcro O fecharam, e lhe deram
Guardas, - para impedir a sua Ressurreição.
Nada os guardas fizeram,
Que adormeceram, e Ele abriu a pedra do caixão.

Mas o pior foi que, ressuscitado,
Depois das mil sessões dum Teológico Processo,
Fizeram de Ele um Trino abstracto e complicado,
Ou um coração-de-Jesus gesso.

Os que ele mesmo ungira, temerosos
Do pânico Segredo,
Quando se lhes mostrou ficaram duvidosos,
Sobre a chaga quiseram pôr o dedo.

Mas o pior foi quando, não descrentes,
Sobre dogmas e incenso O ergueram no seu sólio,
E, nos degraus sentando-se, imponentes,
Fizeram de Ele monopólio.

Perdoa-lhes, Jesus! Não sabem o que fazem.
Rodam em dédalos sem fulcro…
Ou nunca mais virás, aos limbos em que jazem,
Quebrar, não já o teu, mas sim o seu sepulcro.

José Régio, in Chaga do Lado, Portugália Editor

sexta-feira, 25 de março de 2016

Vivemos entre o horror e a esperança

A paixão e a política19 DE MARÇO DE 2016 00:02
Por Anselmo Borges   
“Pascal observou agudamente nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo; é preciso não dormir durante este tempo." Todos sabemos do "calvário" do mundo, e as personagens são as mesmas.

1. Jesus sabia que, a continuar nas suas palavras, atitudes e comportamentos, o que o esperava era a morte, condenado pelos poderes religiosos e políticos. Assim, realizou uma ceia, a Última Ceia: "Isto é o meu corpo", "este é o cálice do meu sangue". Aquele pão e aquele vinho são a sua pessoa entregue, para dar testemunho da Verdade e do Amor.

2. Judas era discípulo, mas sentiu-se enganado, porque Jesus não tomava o poder. Assim, entregou-o, tendo recebido trinta moedas de prata. Depois, perdido, enforcou-se. De que valera aquilo? Mas o dinheiro, em conluio com o poder político, continua a ser o móbil da entrega de milhões de inocentes à ignomínia e à morte.

3. Fora Caifás, o sumo sacerdote, que dera este conselho: "Interessa que morra um só homem pelo povo." Tinha medo do poder dos romanos. Quantos inocentes não foram e são vítimas da razão de Estado ao longo dos tempos!

4. No Getsémani, Jesus entrou em pavor e angústia, pôs-se a rezar instantemente e suou sangue. Deus aparentemente não o ouviu, até os discípulos mais íntimos adormeceram. Todos, de um modo ou outro, fomos, seremos, confrontados com horas do horror da solidão mortal.

5. Jesus é condenado em primeiro lugar pela religião oficial, cujos sacerdotes viram os seus poderes e privilégios ameaçados. Do pior que há: viver à custa da religião e condenar à humilhação, à submissão e indignidade, à violência, à morte, utilizando o santo nome de Deus.

6. Pedro era um homem espontâneo, amigo e generoso. Tinha prometido que acompanharia Jesus para todo o lado. Seguiu-o de longe até à casa do sumo sacerdote. Aí, uma criada atirou-lhe: "Esse também estava com ele." Pedro acobardou-se e negou o Mestre. Depois, recordou-se da palavra de Jesus: "Antes de o galo cantar, negar-me-ás três vezes." "E, vindo para fora, chorou amargamente." Ainda hoje aparece por vezes um galo nas torres das igrejas lembrando o facto. Pedro foi o primeiro papa. A Igreja está assente na fé de Pedro, uma fé vacilante e sempre ameaçada. "Senhor, aumentai a minha fé."

7. O conselho dos anciãos do povo, sumos sacerdotes e escribas levaram Jesus ao seu tribunal. Não tendo poder para o executar, entregaram-no a Pilatos, o governador romano, representando o império. Pilatos ter-se-á apercebido da inocência de Jesus. Mas, ao ver que os judeus se não calavam e que podiam acusá-lo ao imperador, lavou as mãos e mandou crucificá-lo. Pilatos é talvez o nome mais repetido ao longo dos séculos, porque está no Credo. Lavou as mãos, proclamando inocência. Mas elas estão manchadas pelo sangue de um poder cobarde. Ainda hoje se diz de alguém que se encontra num lugar indevido: "Está ali como Pilatos no Credo."

8. A multidão gritava: "Crucifica-o, crucifica-o." No Domingo de Ramos, tinha aclamado Jesus: "Hossana, hossana ao filho de David!" Não se pode confiar nas multidões: são volúveis, interesseiras, manipuláveis. No fim, preferiram Barrabás.

9. Ao saber que Jesus era galileu, Pilatos remeteu-o a Herodes, que se encontrava naqueles dias em Jerusalém e que tratou Jesus com desprezo. Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes viviam em mútua inimizade. Interesses comuns, políticos, económicos e outros, podem levar ao corte de relações ou à amizade. Mas será amizade mesmo?

10. Simão de Cirene foi obrigado a carregar com a cruz. Na via dolorosa da vida, também há cireneus, gente que apoia, por vezes até forçada. Mas apoia.

11. Os soldados riram-se, fizeram chacota e imensa troça de Jesus. Afinal, a sua própria vida não era feliz.

12. As mulheres, talvez porque são mais cuidadoras da vida e amem mais, foram as únicas que não fugiram e estiveram sem medo junto à cruz.

13. Mesmo no final e na suprema dor, os seres humanos comportam-se de modo diferente. Também foram crucificados dois malfeitores: um continuou a blasfemar, o outro reflectiu e pediu a Jesus que se lembrasse dele no seu Reino. O centurião deu glória a Deus: "Realmente este Jesus era justo."

14. No total abandono, Jesus perdoou a quem o matava, e rezou, a gritar, perguntando, aquela oração que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?" Deus não disse nada, mas Jesus continuou a confiar: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito."

15. Depois, os discípulos fizeram a experiência avassaladora de fé de que este Jesus crucificado está vivo em Deus, e acreditaram, porque Deus é Amor. Nasceu assim a esperança para todas as vítimas da história. Mas é em Sábado que vivemos: entre o horror da Sexta-Feira e a esperança do Domingo da Páscoa." Anselmo Borges, em Crónica publicada no DN de 16.03.2016 

quinta-feira, 24 de março de 2016

Um mundo vertiginosamente pior

Retomo o último volume de "Acta est Fabula", o quinto tomo das Memórias de Eugénio Lisboa, publicado em Outubro de 2015, para retirar algumas páginas de uma   sábia e acutilante reflexão sobre o nosso mundo, sobre o tempo que passa. A clarividência  é um dos traços que marca obstinadamente esta  escrita.
" Acta est Fabula, Memórias-V-Regresso a Portugal (1995-2015)", Editora Opera Omnia,
"Aproveito este intervalo para deixar claro algo que tem vindo a aparecer nas entrelinhas e, às vezes, nalgumas das linhas deste diário: a minha cada vez maior impaciência com aquilo em que o mundo se tem estado a transformar e com a maioria das gentes que actualmente o povoam. Ia gradativamente sentindo que os meus valores pouco lhes diziam e, pelo meu lado, pouca ou quase nenhuma apetência sentia pelos valores que eles privilegiavam. Um fosso enorme começava a separar-nos. Não se tratava só, da minha parte, de não compreender esse mundo novo e os seus jovens e menos jovens habitantes: é que não me apetecia fazer um esforço por compreendê-los. Tinham valores e gostos que não me interessavam: tinham subitamente desatado a não me interessar. Impacientavam-me, irritavam-me, pareciam-me cópias baratas e mal amanhadas de modelos exteriores, já de si, maus modelos, mas grosseira e superficialmente copiados: fúteis, ruidosos, malsãos, pouco elegantes. As pessoas vestiam-se mal, falavam mal, comiam mal, amavam mal, conversavam mal, liam mal, escreviam mal. As suas proclamadas “inovações” começavam a interessar-me cada vez menos, gostava cada vez mais de reler e cada vez menos de ler. Via, em tantas das saudadas e promovidas “inovações” apenas uma confrangedora falta de conhecimentos básicos e uma anemia sintáctica de mau agoiro. Sintomas de envelhecimento? Possivelmente. Mas tenho que dizer o que sinto, porque este exercício de escrever memórias impõe um duro código de autenticidade. Não posso nem devo fazer batota. Dito isto, não creio que se trate apenas de envelhecimento. O mundo não está numa das suas finest hours. O mundo está a mudar vertiginosamente para pior. Eu diria que caminha a passos largos para o abismo. As televisões tornaram-se um universo pavorosamente degradado, visando cada vez mais baixo, a bem das audiências mais boçais e da publicidade que as paga. (...)
A palavra “moderno” tornou-se a maior prostituta do glossário nacional. As bancadas parlamentares bem comportadinhas e obedientes são uma ofensa à dignidade, à independência e à democracia. Os aparelhos partidários voltaram definitivamente costas aos interesses nacionais, para dividirem coutadas, como quem vende jóias roubadas. Os “donos” do aparelho são, para todos os efeitos, casos de polícia. As histórias de grossa corrupção tornaram-se deliciosamente quotidianas: todos os dias há uma melhor do que a do dia anterior. Nenhuma “imperfeição” do Primeiro Ministro é suficientemente grave para incomodar os ministros, seus colegas, nem os parlamentares da sua coligação, que estão ali, supostamente, para lhe escrutinar os actos. O “brio” é um conceito pré-histórico, obsoleto, escarnecido. Um Primeiro Ministro, em Portugal, nem à pedrada se demite. (...)
O mundo à nossa volta degrada-se a olhos vistos. Há uma liberdade de costumes que, bonita de início, breve se volveu libertinagem e grosseria. 
(...)O êxito passou a ser a Estrela Polar desta sociedade. Tudo se mede pelo “êxito”. O êxito de vendas (de livros, por exemplo) faz passes magnéticos até aos novos-ricos boçais que enchem as universidades. José Rodrigues dos Santos, o Dan Brown do Tejo, vai, por convite, a universidades respeitáveis, onde debita banalidades redondas e troça de autores que vendem menos do que ele. E é recebido como se o seu “produto” fosse coisa de levar a sério: não tarda muito, será alvo de uma dissertação de mestrado ou, mesmo, upa-upa!
Os clássicos vão sendo arredados das escolas e substituídos pela algaraviada chula dos jornais: sempre está mais à la page. É mais moderno, é “do nosso tempo”, meu! Mesmo homens inteligentes e de alguma qualidade, mesmo filósofos, mesmo gente que se supunha de algum “panache” não resistem ao canto da sereia das “Olás!” e das “Gentes”. Paga-se reverencioso tributo a quem é muito conhecido apenas por ser muito conhecido. Os bárbaros, afinal, não estão à porta para o saque previsto, porque foram apanhados pela globalização e fazem como toda a gente: abandalham-se e drenam a sua energia numa bacanal sem estilo nem propósito. Cercadores e cercados fazem parte do mesmo apocalipse. Os “chineses” invadem mas dissolvem-se no meio da chicana dos invadidos. As civilizações caem sem luta. E não há; à vista, civilização que substitua outra civilização.
Roger Martin du Gard – que Régio, muito injustamente “pretendia” não admirar – e André Gide, seu grande amigo, experimentaram -  e sobre isso escreveram -  isto mesmo, este sentir que o mundo em que, no final da vida, se encontravam a viver , já não era o deles. (Passo a traduzir:) “O meu tempo passou, estou a sobreviver-lhe. Assisto de longe à renovação, como espectador afastado e atento”, escrevia o autor de Les Thibault, no seu Journal, em 1944. Para eles (Martin du Gard e Gide) parte importante dos seus últimos anos passaram-nos no meio do grande e devastador conflito que foi a 2ª guerra mundial, com a França ocupada pelo inimigo. Depois deste sismo, nada ficaria na mesma. Num admirável artigo dedicado às duas obras-testamento de Gide e de Martin du Gard, respectivamente, Thésée e Maumort, André Alessandri escreve (eu traduzo): “Desmorona-se todo o mundo no qual eles acreditavam, no qual o seu gosto da independência e a sua paixão pelo individualismo se movimentavam à vontade.  A Segunda Guerra Mundial marca, para eles, o fim de todo um estado de coisas, de toda uma cultura, de que eles terão sido, de alguma maneira, os últimos representantes e que poderemos chamar humanista, no duplo sentido das humanidades da Renascença e do humanismo do século XIX. (…)  Ao ler Jean-Paul Sartre e os autores da nova geração, [Martin du Gard] experimenta, cada vez mais, a impressão de ser um anacronismo.”
De há um tempo a esta parte, tenho vindo a sentir o mesmo. E não foi preciso passar por uma guerra mundial. O que se passa por esse mundo fora, com a destruição de todo um tesouro arqueológico, por fanáticos religiosos de um certo “Islão”, sob a patética impotência de uma ONU-para-inglês-ver e de um mundo ocidental mais atento aos “mercados” do que aos verdadeiros valores – provoca, em mim, cada vez mais uma grande náusea de viver num mundo como este. A razão ou, antes, o uso dela é cada vez mais o apanágio de cada vez menos gente. Mesmo aqui, em Portugal, alguns “campeões” da desvalorização da razão – que qualificam estupidamente de “mito” – vão fazendo escola e afortunada clientela. No século XXI – no século XXI! – o fanático aderir a balelas coloridas e obviamente inverificáveis demonstra , de forma cristalina, que a humanidade, em média, progrediu, intelectualmente, muito pouco, da Idade Média para cá. Os métodos de escolha de quem nos governa são cada vez mais dominados por sinistras e poderosas máquinas financeiras e lobbies perigosos, que põem no pináculo do poder patetas desprezíveis como Ronald Reagan ou Bush Jr., e quase nos brindaram, para Vice-Presidente da nação mais poderosa do mundo, com uma analfabeta atrevida e primária, como é a Sra. Sarah Pallin. Que isto seja do domínio do possível – é simplesmente aterrador! Anda-se a brincar à beira do abismo – e sem rede.
A quantidade de gente nova, de todos os países, com um luxo de informação disponível, como nunca antes existiu, com dados de História, Ciência, Filosofia, ao alcance de uma tecla de computador, e que não vê, no contexto actual do mundo, melhor opção do que aderir a patetices delirantes e assassinas como o autoproclamado "Estado Islâmico", como se ali estivesse a salvação deles e da humanidade – causa arrepios. Para que serviram, afinal, Sócrates, Descartes, Galileu, Newton, Voltaire, Goethe, Bertrand Russell e outros semelhantes? Para que serviu, ao longo dos séculos, o exercício esforçado da razão, que conseguiu, por um lado, colocar homens na Lua e sondar, de perto, outros planetas, mas não consegue, por outro, evitar o fanatismo, aquecido ao rubro, de religiões assassinas?
Com o aproximar da velhice, estas questões deixam de ser pura especulação sem dor e tornam-se carne dilacerada e espírito em agonia. A náusea, de que falava Sartre, instala-se, para ficar. O desconforto é enorme: o mundo à nossa volta torna-se intoleravelmente estranho, verdadeiramente, um reino estrangeiro. Sentimo-nos de saída." Eugénio Lisboa , in " Acta est Fabula, Memórias-V-Regresso a Portugal (1995-2015)", Editora Opera Omnia, Outubro de 2015,pp.185-192

quarta-feira, 23 de março de 2016

A MORTE: Em mim acaba

A MORTE:
Em mim acaba
Mudo, profundo
Como ruína que desaba
Tudo o que vive e sente o mundo.
A humanidade cujo rir
É um esquecimento fundo
Sabe, sem o analisar,
Que em mim naufraga o sentir
Nos rochedos do pensar.

Fernando Pessoa, in Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988

terça-feira, 22 de março de 2016

Entramos num século sem bússola

A desordem mundial
Por Adriano Moreira
Quando falamos em ordem mundial, o conceito é apenas jurídico, enumera a Carta da ONU e os diplomas complementares, e sobretudo as promessas de paz que se seguiram, como de hábito, no fim da guerra de 1939-1945. Esquecemos, numa data em que tantos homens tentavam esquecê-las, e que os textos jurídicos não fizeram eles desaparecer as memórias, e a situação actual aconselha a começar a meditação por tal circunstância. Lembremos de que a guerra de 1914-1918, iniciada por um motivo banal que foi a morte de um príncipe, culminou com a afirmação do princípio ético de Willson, segundo o qual a cada nação deve corresponder um Estado. Não se lembrou da advertência do Lorde Acton, que frequentemente cito, segundo o qual o Estado de regra precede a Nação, e não é seguro que a Nação preceda o Estado. O princípio de Willson foi acolhido com o pregado respeito pelo direito natural, mas teve uma consequência política, que não esqueceu os interesses americanos, e foi o desaparecimento dos impérios domésticos da Europa: os impérios Alemão, Austro-Húngaro, Russo, Turco, estabilizados nas fronteiras de interesses depois de séculos de lutas.
No fim da II Guerra Mundial, 1939--1945, de novo o princípio ético da descolonização reafirmou a liberdade dos povos, agora abrangendo as áreas componentes do império euromundista, partilhado por Holanda, França, Bélgica, Inglaterra, Portugal, todas potências da frente marítima atlântica. Os custos humanos foram brutais: a Holanda teve perdas severas na Indonésia; a França viu o seu exército destruído no Vietname e envolveu-se em sacrifícios consideráveis na Argélia, por ordem do ministro Mitterrand, porque a Argélia fora, era, e seria sempre a França; a Inglaterra abandonou o império da Índia, não impedindo o preço de uns 400 mil mortos na separação do Paquistão da União Indiana, e, pela primeira vez, atirou com a toalha na Palestina, com o brutal sacrifício humano dos palestinos que dura até hoje; a Bélgica foi humilhada no Congo e não impediu a guerra do Catanga; finalmente Portugal, teve a guerra colonial de 13 anos, que as Forças Armadas iniciaram para dar tempo ao governo para encontrar soluções políticas, dando o esforço por findo, sem resultados pacíficos, em 1974.
Mas assim como o império foi euromundista, as consequências para a Europa também foram globais, embora desproporcionalmente distribuídas. O grande impulso colonial do século XIX, que afirmou o domínio ocidental do mundo, considerado uma loucura por Guizot, não deixou de invocar grandes princípios éticos: A evangelização portuguesa, as luzes francesas, o peso da civilização assumido pelos ingleses. Mas de facto com interesses económicos muito claramente expressos: posse das matérias-primas, domínio dos mercados dos produtos acabados, ditadura do preço do trabalho, foram apoios do enriquecimento da Europa que, por outro lado, em nome dos proclamados princípios éticos, se considerou "A luz do mundo". Nenhum dos novos Estados guardara da antiga submissão colonial qualquer prática democrática, sobretudo a de divisão de poderes; não se tratou, em regra, de libertar nações, mas sim do grito que em Moçambique ficou célebre - deixem passar o meu povo -; acrescia que as fronteiras existentes eram artificiais porque herdadas do regime colonial, e não da própria história local; depois, falando pela primeira vez em liberdade à comunidade internacional, os textos da Carta sofriam variadíssimas interpretações, por exemplo no que toca à definição de família, aos direitos das mulheres, ao direito de propriedade, e assim por diante. E sobretudo, também aqui, como noutros domínios, o conflito entre as leis escritas e as memórias não desapareceram.

No ano da graça de 2016, entramos num século sem bússola. Enquanto a luta pelo domínio económico de desenvolve, com a crise global económica e financeira a servir de fundo, com a Europa rica a distinguir-se da Europa pobre, com as guerras atípicas a multiplicarem-se no corredor do Cabo ao Cairo, com os erros da intervenção americana no Iraque e da Rússia na Ucrânia, a circunstância europeia, com a área mediterrânica no turbilhão causado pela democracia inspirada no Corão, a memória que não desapareceu em Berlim, que não morreu na Rússia de Putin, que está viva nos EUA, veio inspirar o mais brutal dos desafios que se traduziu na capacidade de o fraco vencer o forte. Foi a eclosão do terrorismo, cuja primeira manifestação demolidora foi o derrube das Torres Gémeas de Nova Iorque, por aviões tripulados por fanáticos muçulmanos, e que infligiram um golpe de importância nunca vista ao maior poder da terra. Enquanto o Ocidente, incluindo a Europa, presta vassalagem ao credo do mercado, o terrorismo da Al-Qaeda definiu um conceito estratégico em que incluiu valores religiosos, o mais determinante valor das gentes. Como se caracteriza o terrorismo? No meu parecer, o objectivo estratégico do terrorismo é cortar a relação de confiança entre a sociedade civil e o Estado, mostrando este incapaz da protecção da sociedade a que está obrigado. Nos EUA aconteceu ao mesmo tempo que os agressores transformaram em sagrado o terreno onde caíram em nome do Profeta, e os americanos sentiram sagrado o lugar pelo sacrifício de tantas vítimas. Mas o precedente mais ameaçador foi o facto de os ocidentais, sobretudo europeus, terem confundido o cosmopolitismo com o multiculturalismo.”Adriano Moreira,  artigo de opinião publicado no DN de 9.03.2016

segunda-feira, 21 de março de 2016

Celebrar a Poesia

Os críticos podem dizer que determinado poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira 
Fernando Pessoa (Bernardo Soares), in Livro do Desassossego

É brando o dia, brando o vento

É brando o dia, brando o vento.
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento!
Assim fosse eu, assim fosse eu!

Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim, ser eu assim!

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo quanto existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!
15-8-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).
 - 154.

La poesía es una batalla contra la respuesta. Samuel Bossini

Arte Poetica
Hacer una pregunta. Callar. Si se nos hecha encima un viento, disfrutarlo. Repetir la pregunta. Llevar dos monedas en las manos y jugar con ellas. Preferentemente hacer puntería desde cien metros para derribar el cuello de un cisne. Insistir con la pregunta. Buscar la calle que nos aleje del laberinto y otra que nos introduzca. Detenernos. Mirar atrás, nunca a los costados. Ver y perderse. La acción y el amor definen el camino. Ver lo mismo dos veces es ver dos cosas. Olvidamos la pregunta. No hacemos otra. Olvidar la pregunta es la respuesta. Samuel Bossini,in Movimiento pendular simple, Buenos Aires

Federico Garcia Lorca
Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas 
Federico Garcia Lorca, in Conversa Sobre o Teatro

Às vezes
Às vezes fazemos coisas
Que não queremos fazer,
Talvez por existir
Um pingo de esperança
Esperança essa que nem sempre
Nos faz bem
Nos leva para o caminho certo
Às vezes amamos intensamente
Às vezes sonhamos os mais belos sonhos
Às vezes até odiamos
com a mesma intensidade que amamos
Mais o certo é que,
Nem sempre
“Às vezes” dura um só momento
Às vezes os “Às vezes” podem
Durar eternamente!!!
Nem sempre
Federico Garcia Lorca,
Federico García Lorca (1898-1936) foi poeta e dramaturgo espanhol, membro da chamada Geração de 27, autor de livros como o Romancero gitano (1928), Poeta em Nueva York (1940) e Llanto por Ignacio Sánchez Mejía (1935). Morreu fuzilado, em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola.
Desenho de António Ramos Rosa
Escrever é, sempre, a necessidade de respirar as palavras e de às palavras fornecer o frémito do ser, os pulmões do sonho, e, com elas criar a dádiva do poeta.  António Ramos Rosa

DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO

Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
                                       uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto

As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único do abismo branco

Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada

António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – pp. 160-162


Eu faço uns desenhos que são rostos e faço-os com uma grande espontaneidade: são automáticos e confluentes, quer dizer, não estou a pensar se faço uma linha, que vou fazer aquela linha: depois é que sai o meu trabalho - e por isso é que eu faço em segundos um desenho. António Ramos Rosa
Estou vivo e escrevo sol 
Eu escrevo versos ao meio-dia
 e a morte ao sol é uma cabeleira
 que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
 Estou vivo e escrevo sol

 Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
 no vazio fresco
 é porque aboli todas as mentiras
 e não sou mais que este momento puro
 a coincidência perfeita
 no acto de escrever e sol

 A vertigem única da verdade em riste
 a nulidade de todas as próximas paragens
 navego para o cimo
 tombo na claridade simples
 e os objectos atiram suas faces
 e na minha língua o sol trepida

 Melhor que beber vinho é mais claro
 ser no olhar o próprio olhar
 a maravilha é este espaço aberto
 a rua
 um grito
 a grande toalha do silêncio verde

António Ramos Rosa , in Estou Vivo E Escrevo Sol, 1966, Editora Ulisseia

António Ramos Rosa (1924-2013) produziu uma obra poética extensa e marcante da poesia portuguesa contemporânea. Morreu aos 88 anos.  Poeta e ensaísta é autor de quase uma centena de títulos, de O Grito Claro (1958), a sua célebre obra de estreia, até Em Torno do Imponderável, um belo livro de poemas breves, publicado em 2012. Escreveu livros de ensaios que marcaram sucessivas gerações de leitores de poesia, como Poesia, Liberdade Livre (1962) ou A Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979), traduziu muitos poetas e prosadores estrangeiros, sobretudo de língua francesa, e organizou uma importante antologia de poetas portugueses contemporâneos (a quarta e última série das Líricas Portuguesas). Era ainda um dotado desenhador. Recebeu vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem Através de Uma Nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em 1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo livro O Incêndio dos Aspectos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o Prémio APE/CTT, pela recolha Acordes;  em 1990, o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège; em 2003, foi agraciado como título Doutor honoris  Causa pela Universidade do Algarve  e em 2005, foi-lhe atribuído o  Grande Prémio Sophia de Mello Breyner  pela Câmara Municipal de São João da Madeira.
Julio Cortázar
PARA LER EM FORMA INTERROGATIVA
Viste
verdadeiramente viste
a neve, os astros, os passos aveludados da brisa…

Tocaste,
de verdade tocaste
o prato, o pão, a face dessa mulher que tanto amas…

Viveste
como um golpe frontal,
o instante, o arfar, a queda, a fuga…

Soubeste
com cada poro da pele, soubeste
que teus olhos, tuas mãos, teu sexo, teu brando coração,
teria que tirá-los
teria que chorá-los
teria que inventá-los outra vez.
Júlio Cortázar, in “De Presencia (1938) “.Tradução: Elson Fróes, em Torre de Babel 6
Júlio Cortázar (1914-1984), escritor argentino, conhecido sobretudo por seus romances, contos e novelas, entre os quais se destacam Bestiário (1951), Histórias de cronópios e famas (1962) e O jogo da amarelinha (1963).
Maputo, Moçambique
KARINGANA UA KARINGANA

Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
- Karingana ua Karingana ! –
é que faz o poeta sentir-se
gente.

E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
e em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.

 –  Karingana !
José João Craveirinha , in Karingana ua Karingana (1974),
José João Craveirinha (Lourenço Marques, 1922 — Maputo, 2003), poeta e activista político moçambicano. Na juventude, engajou-se no movimento de libertação nacional contra o colonialismo português, sendo preso em 1965 e libertado em 1969. Publicou os livros de poesia, entre eles Xigubo (1964), Cantico a un dio di Catrame (1966, em italiano), Karingana ua Karingana (1974), Maria (1988) e Izbranoe (1984, em russo). Foi o primeiro autor africano a receber o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, em 1991.
O Amor aos Sessenta
Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.

Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos

contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda

que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.
Alberto da Costa e Silva, in 'A Roupa no Estendal, o Muro, as Pombas'
Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo em 1931. É poeta, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Um dos mais importantes intelectuais brasileiros e especialista na cultura e na história da África. Tem uma volumosa e diversa obra publicada.  Entre os prémios e distinções que recebeu estão os títulos de doutor honoris causa pela Universidade Obafemi Awolowo (ex-Universidade de Ifé, Nigéria, 1986) e pela Universidade Federal Fluminense (2009) , o prémio Juca Pato de Intelectual do Ano (2003) da União Brasileira de Escritores e  foi distinguido por unanimidade com o prémio mais importante da criação literária em língua portuguesa, o Prémio Camões 2014.
Está esquecido
Juro que nem de seu nome me lembro,
Mas vou morrer chamando-a Maria,
Não por simples capricho de poeta:
Pela sua aparência de praça de interior.
Que tempos, aqueles! Eu, um espantalho,
Ela, uma jovem pálida e sombria.
Ao voltar uma tarde do colégio
Soube de sua morte imerecida,
Notícia que provocou tal desilusão
Que derramei uma lágrima ao ouvi-la.
Uma lágrima, sim, quem imaginaria!
E olhem que sou pessoa de energia.
Se devo conceder crédito ao que foi dito
Pela gente que me trouxe a notícia
Devo crer, sem vacilar por um momento,
Que morreu com meu nome nas pupilas,
Fato que me surpreende, porque nunca
Foi para mim senão uma amiga.
Nunca tive com ela mais do que simples
Relações de pura cortesia,
Nada mais que palavras e palavras
E alguma rara menção às andorinhas.
Conheci-a no vilarejo (dele não resta
Mais do que um punhado de cinzas),
Porém jamais vi nela outro destino
Que aquele de uma jovem triste e pensativa.
Tanto foi assim que cheguei a tratá-la
Pelo celeste nome de Maria,
Circunstância que prova claramente
A exactidão central da minha doutrina.
É possível que alguma vez a tenha beijado,
Quem é que não beija as suas amigas!
Mas considerem que o fiz
Sem saber direito o que fazia.
Não vou negar, de qualquer jeito, que gostava
Da sua imaterial e vaga companhia
Que era como o espírito sereno
Que as flores domésticas anima.
Eu não posso ocultar de modo algum
A importância que teve o seu sorriso
Nem desvirtuar o favorável influxo
Que até mesmo nas pedras ela exercia.
Acrescento ainda que, de noite,
Foram seus olhos fonte fidedigna.
Mas, apesar de tudo, é necessário
Que compreendam que dela eu gostava
Com aquele vago sentimento
Que a algum familiar doente se destina.
Acontece, porém, acontece
O que até hoje ainda me maravilha,
Esse inaudito e singular exemplo
De morrer com meu nome nas pupilas,
Ela, múltipla rosa imaculada,
Ela que era uma verdadeira lamparina.
Tem razão o povo, tem razão
Em passar a se queixar noite e dia
Que o mundo traiçoeiro em que vivemos
Vale menos que a roda que não gira:
Muito mais honrosa é uma tumba,
Vale mais uma mofada folha,
Nada é verdade, aqui nada perdura,
Nem a cor da lente com que se olha.
Hoje é um dia azul de primavera,
Acho que morrerei de poesia,
Daquela famosa jovem melancólica
Não lembro nem que nome tinha.
Eu só sei que passou por este mundo
Como uma pomba fugidia:
Sem querer me esqueci dela, lentamente,
Como todas as coisas desta vida.
Nicanor Parra. Tradução: Leila Guenther e Marcelo Donoso

Nicanor Parra (1914), poeta, físico e matemático chileno, publicou, entre outros títulos, Hojas de parra (1985), Poemas Pará combatir la calvicie (1993), Páginas en blanco (2001), Lear, Rey & Mendigo (2004), Obras Completas I & algo + (2006), Discursos de Sobremesa (2006), Obras Completas II & algo + (2011) e Así hablo Parra en El Mercurio, Entrevistas Dadas al diario chileno Entre 1968 y 2007 (2012). Recebeu o Prémio Cervantes do Ministério da Cultura Espanhola, o mais importante do país, e o Prémio Iberoamericano de Poesia Pablo Neruda.
As Ninfas
Já não fugia a bela Ninfa, tanto
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.

Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Nota:
Julgá-lo – imaginá-lo
Luís de Camões (estrofes 82 e 83 do Canto IX d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572)
Música: Carlos Gonçalves, Intérprete: Cristina Branco* (in CD "Sensus", Emarcy/Universal Classics France, 2003)
Gravado e masterizado por Fernando Nunes, nos Estúdios Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos, entre Setembro e Dezembro de 2002.

Endechas a ũa cativa
          com quem andava d'amores na Índia,
          chamada Bárbara.

Aquela cativa,
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais formosa.

Nem no campo flores,
nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.

Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.

Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo;
e, pois nela vivo,
é força que viva.
Luis de Camões , in  "Rimas", edição de 1595
Música: José Afonso. Intérprete: José Afonso* (in LP "Cantares do Andarilho", Orfeu, 1968; reed. Movieplay, 1987, 1996, Art'Orfeu Media, 2012)
* Rui Pato – viola