terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Errar é humano

Ler e falar
Por Ferreira Gullar
28/02/2016, 02h03
"O facto de que, nas provas do Enem* ( Exame Nacional de Ensino Médio), é cada vez menor as referências à literatura brasileira –o mesmo ocorrendo nos exames de vestibulares– causou preocupação nos membros da Academia Brasileira de Letras que, em face disso, decidiu manifestar-se sobre o assunto.
Essa questão foi trazida à ABL, no final do ano passado, por Arnaldo Niskier, que havia representado a instituição numa reunião promovida na Comissão de Educação da Câmara Federal pela deputada Maria do Rosário, do PT do Rio Grande do Sul. Ela realizou uma audiência pública para debater a situação da leitura e do ensino da literatura particularmente no ensino médio. A constatação lamentável é que, se não se estimula a leitura da literatura e seu ensino, não há razão para que a matéria faça parte dos exames e das provas.
A iniciativa da deputada em trazer à discussão esse facto merece o apoio da intelectualidade e dos cidadãos conscientes da importância da literatura para a vida nacional. Não obstante, nem todos têm essa compreensão e há mesmo, em certos sectores, a tendência a ver o ensino da literatura como um resto do elitismo que deve ser eliminado da formação dos jovens.
Se a minha observação for procedente, a ausência da literatura na formação da nossa juventude seria parte de um fenómeno mais amplo, que afecta outros sectores da sociedade brasileira e que tem raízes mais profundas do que parece à primeira vista. Para nos atermos ao âmbito literário e do ensino, lembro da tendência entre filólogos e gramáticos de considerar que não há erros no uso da língua, mas apenas modos diversos de usá-la conforme a classe social de quem a usa. Ou seja, há a língua culta, falada pelos que têm cultura, e a língua do povo inculto, que não tem acesso à educação.
A constatação, até certo ponto, é correcta, mas deduzir dela a conclusão de que tanto faz dizer "nós vamos" quanto "nós vai" é um equívoco que contraria a natureza da linguagem. Falar correctamente não é uma manifestação elitista e, sim, o resultado da necessidade humana de se expressar com coerência e clareza. Não sou linguista nem muito menos sei (alguém sabe?) como se formaram os idiomas, mas tenho certeza de que não se trata da invenção de um sujeito erudito e presunçoso que decidiu inventar as concordâncias entre sujeito e verbo, adjectivo e substantivo. Na verdade, fico fascinado ao constatar, já nas primeiras manifestações literárias, a concordância e a coerência entre os elementos da linguagem.
Como tampouco creio que os idiomas foram criados por Deus, contento-me em admitir que eles expressam, tanto quanto possível, a lógica que descobrimos no mundo e que nos ajuda a reinventá-lo. Pode ser até que a lógica da linguagem não seja a mesma do mundo – cuja complexidade excede à nossa compreensão–, mas, como nos ensina o exemplo da Torre de Babel, um idioma sem normas torna inviável o entendimento e, consequentemente, o convívio humano.
Claro que, por felicidade, estamos longe disso. O que importa aqui é afirmar que falar e escrever correctamente não são snobismos, mas necessidades da linguagem humana.
Certamente, há que distinguir a linguagem falada da escrita. A fala coloquial, pelas circunstâncias em que se exerce, com frequência viola a correcção da linguagem escrita. Tampouco teríamos que exigir, mesmo desta, um rigor sem concessões. Errar é humano e, modéstia à parte, citando a mim mesmo, cabe lembrar que "a crase não foi feita para humilhar ninguém".
Em suma, ninguém deve ser punido por errar na concordância vocabular. Tampouco é correcto subestimar o homem do povo que desconhece as regras gramaticais e, por isso mesmo, fala errado.
O que, porém, não se pode aceitar é que linguistas e gramáticos afirmem que não se deve exigir que se fale e escreva correctamente, quando eles mesmos falam e escrevem conforme as regras gramaticais.” Ferreira Gullar, em Crónica publicada na Folha de S. Paulo
*"O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é uma prova realizada pelo  Ministério da Educação do Brasil, criada em 1998. É utilizada para avaliar a qualidade do ensino médio no país. Seu resultado serve para acesso ao ensino superior em universidades públicas brasileiras, através do Sistema de Selecção Unificada (SiSU), assim como em algumas universidades no exterior."

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