sábado, 17 de dezembro de 2016

Era ela...

No dia da cor  amarela

Tudo lhe vem à memória. Sem o poder evitar, suspira e chora.
Canção de Rolando

Não sou pessimista, eu amo este mundo horrível.
Emil M. Cioran, in “ Cahiers”

"O sol  andava lá por cima. Os raios tinham a cor que vestira. Um amarelo pincelado de oiro. Uma jóia que nem sempre brilhava.
Acordara cansado. Levara algum tempo para decidir qual a cor que envergaria. O sol despontara e decidira por ele.
O amarelo trazia-lhe à memória outros tempos em que a indecisão, a falta de energia tinham conduzido à derrocada de muitos sonhos. De amarelo doirado passara-se para uma amarelecida e anémica cor que fazia desfalecer  quem a ela se chegasse.
Era , talvez, a cor  de entre todas as cores , a que não lhe assentava tão bem. Quase juraria que lhe ficava mal. Perdia-se na palidez do seu rosto, por isso carregara nos  tons doirados para esbater a mancha do amarelo. No entanto, não queria intimidar as palavras que viriam nesse dia. Não imaginava, nem tecia suposições sobre o que iria enfrentar. Era o afinador de palavras. Que viessem. A todas sondaria.
O mundo era agora a sua casa. Quando abriu os portões, o ar quente da manhã trouxe-lhe  os cheiros que nem mesmo um  insensível  olfacto deixaria de detectar . Vacilou entontecido pela pestilência que se sentia. O ar  pesado   e  denso estava  quase  irrespirável. Sufocaria, se não tivesse a resistência que há muito acumulara.
As palavras exalavam  os odores putrefactos da covardia, da inveja , do desespero, da raiva encapotada. Palavras podres vestidas de amarelo. Como era possível. Se um ameno calor também estava no ar.
Escutava os lamentos surdos, quase inaudíveis pela intensidade da peste que  prostrava aquelas   palavras, num amarelo agónico, moribundo.
Ter-se-ia esvaziado a representação simbólica do amarelo. Não tivera tempo para  investigar. Viera veloz e destro , assim que fora chamado.
Algo de muito grave e doloso tinha acontecido. Acabava de o descobrir  perante a realidade que se estendia por este horizonte outrora tão vigoroso.
Alguém dissera, num poema, que as palavras estavam gastas. Um poeta inteligente que fora glosado, posteriormente, por um outro, mestre em claras palavras. A poesia é realmente lembrança e lembrança é apenas poesia. Que a palavra de um poeta é a essência do seu ser.
Em verdade, os poetas são os legisladores do mundo, não reconhecidos.
Frases feitas de clarividentes palavras que lhe acorriam diante daquela realidade perturbadora.
Quem teria legislado este tempo último. Certamente uma mente devassa ou nefasta. Nunca um poeta provocaria tal hecatombe.
Quem menosprezara a alegria, o optimismo, o riso, a energia, a ventura, o vigor, a determinação, a clareza, a coragem que sempre vestiram amarelo.
A claridade intensa do dia deixava a nu um campo imenso de palavras amarelas. Estendiam-se, por ali, exangues, inertes.
Teria de pensar de novo, o pensado. A vida era feita de estranhos e inesperados movimentos circulares. Alargavam-se à partida para se fecharem ao regresso num mesmo ponto. Partida e chegada partilhavam um único e coincidente porto.
E foi, então, que lhe chegou um soluço quase telúrico, como gerado na profundeza da terra que pisava. Era ela. Não tinha qualquer dúvida. A palavra que sublevaria toda aquela moléstia imposta, provocada pelo laxismo, pelo permissivismo instituído. O mal vinha de um tempo finissecular, quando tentaram extrair à alegria o traço rebelde que junta a coragem ao talento.
Teria de apelar ao vento para fustigar aquele cheiro nauseabundo. Expulsá- lo para longe, para a terra de ninguém. A palavra precisava de respirar. Só assim seria possível cavar a terra. Alargar o espaço e permitir  a sua sobrevivência.
E dócil, o vento, soltou, com redobrado  fôlego, os seus mil braços, desenterrando o amarelo que coloria todas as novas e velhas palavras  que circundavam a  Alegria.
Num ápice, longas filas de resplandecentes palavras juntavam-se à Alegria, engalanadas num amarelo comum.
Anulara-se a maldição que fizera do amarelo a cor do desespero.
A evidência provava, em renovado sublinhado, que quem tente interpretar a humanidade pelos seus próprios olhos, descobrirá muita coisa estranha que lhe causará perplexidade."
Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de Palavras", 2016

Sem comentários:

Enviar um comentário