sábado, 19 de novembro de 2016

Que poder tinham os sons

No dia da cor  vermelha

                                       Mistério , vai-te, esmagas-me! Ah, partir
                                       Esta cabeça contra aquele muro.
                                       Fernando Pessoa,  “ Fausto”        
                                      
                                      Faire un bon usage des maladies
                              Pascal

"Ainda não tinha vestido totalmente o vermelho , já os gritos lhe chegavam. Ouviam-se distintamente. Seria fácil localizá-los. Gritos estrídulos, misturados com o retinir do metal e o silvo  de imprecações, espalhando-se sem ordem e rigor. E eis que apareciam algumas palavras. Erguiam- se em altaneiro porte, estrebuchando conflito, apesar de  minadas pela doença que lhes deformava o corpo e  dominava a mente.
Volúpia. Dinheiro. Insurreição. Ganância . Soberba. Lucro. Uma plataforma de  palavras  afins , organizada em hordas cruéis a subjugar outras de significantes mais nobres. Esgrimiam-se apesar da beleza que o encarnado, o vermelho pode incorporar.
O tempo da riqueza pela riqueza enchera  as cabeças de cifrões. E era do dinheiro o maior poder. O maior  sortilégio daquele  tempo. Como estancar tal perfume ?
Enquanto discorria, as palavras sucumbiam  em aflitiva luta pela sobrevivência. O jugo das mais fortes oprimia as mais discretas, as mais límpidas, embora estas não se permitissem morrer.  Gritavam, em surdina, em nítido contraste com a estridência dos opressores que enchia o ar.
Começaria pela fome, pela pobreza, pelo desespero, pelo desemprego, pelo abandono, pela velhice, pela natalidade, pela saúde, pela paixão, pela  felicidade. Todas eram importantes. Todas acorriam à sua passagem numa súplica justificada . Escapava-lhe, porém, a mais valiosa. Aquela que seria capaz de redimir, aquela cuja força regeneradora era reconhecida : a Dignidade.
Ainda não a vira. Não a distinguira entre os gritos. Onde estaria? Que seria dela? Procurou-a. 
Ofegante, inanimada esmorecia com o peso da ganância que a violentava num esforço heroico, enquanto as forças ainda lhe pertenciam. Numa Travessa  sem nome, estava em titânica desvantagem. A ganância era um manto púrpura a esmagar  a túnica vermelha da Dignidade.  Que fazer perante tão rude inconformidade?
Socorreu-se dos sons  e fez ouvir Wagner. O triunfo  exige sempre um  faustoso manto. O poder da ilusão prevalece nos espíritos néscios onde reina a ganância.
Fiel à força da sedução da vã glória, o  manto ergueu-se e a     dignidade libertou-se daquele vil peso. Vinha combalida, desgastada pelo espezinhamento constante dos poderosos que, de ganância em ganância, tinham transformado  o mundo num mercado de agiotas.
Mundo onde os nomes eram  traduzidos por algarismos  e as palavras esqueciam a força da nomeação. Mundo onde os adjectivos se colavam  aos números como cola que pega e se acomoda em  território alheio.
Ao afinar aquela  palavra, seria como recuperar a alma adormecida  da humanidade, como restabelecer  o primeiro direito universal do Homem.
Concentrou-se. Começou a afiná-la. Agora, era o génio de  Mozart que se ouvia.
Quando afinava as palavras trazia a música nos ouvidos. Que  poder tinham os sons. Os movimentos molto allegro e andante da Sinfonia nº 40 ressoavam e imperavam . Como o contagiavam em inspiração e perícia.
Redesenhou, limpou, envernizou, curou  aquela enorme palavra.
Num longo vestido vermelho vivo, ela olhou-o e sorriu-lhe deslumbrante. E  com ela de pé,  firme e robusta , outras vieram animadas pela metafísica, pela semântica, pela música de Mozart ou pela simbologia do vermelho que nunca deixa de acolher  quem vem por  bem.
Todas as palavras que  se solidarizavam , que se irmanavam  chegavam  céleres. Apresentavam-se radiosas , vestidas no mais brilhante  vermelho renovado. Vinham em fraterna celebração,  coligadas por uma profunda comunhão identitária.
Ao restaurar a Dignidade , tudo se precipitara. Tudo se congregara.
Naquele dia, o caminho estava feito."
Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de palavras" , 2016

1 comentário:

  1. Que belo texto. Poético, substantivo, uma simbologia quase mágica do vermelho.
    Contou-me alguém que o escritor e jornalista brasileiro Otto Lara Resende, antes de publicar seus textos, enviava-os para o nosso contista curitibano Dalton Trevisan -- tão discreto que sequer foi receber, pessoalmente, o Prêmio Camões, em 2012 -- recomendando-o: “Seja cruel em sua avaliação”, para que seu conteúdo tivesse maior clareza, síntese e lucidez possível.
    Diante deste, como das demais partes, já publicadas, desse belíssimo texto da Maria José, “O Afinador de palavras”, a única recomendação que poderíamos fazer é parabenizá-la pela sua síntese irretocável, nos ensinando, mais uma vez, como afinar as palavras.

    Manoel de Andrade

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