quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Traz-me de volta a mocidade

Poeta
Para isso terás de me trazer
Os anos do meu próprio devir,
Quando uma fonte de canções a nascer
Brotava em mim sem se extinguir,
Quando névoas me escondiam o mundo
E inda o botão milagres prometia,
Quando eu as mil flores colhia
Que enchiam o vale até ao fundo.
Não tendo nada, bastante tinha então:
A sede de verdade e o gosto da ilusão.
Dá-me de novo as paixões sem temor,
A funda e dolorosa felicidade,
Do ódio a força, o poder do amor:
Traz-me de volta a minha mocidade!
Johann Wolfgang von Goethe, em "Fausto". Tradução  de João Barrento. Lisboa: Relógio d'Água, 1999, p. 35.

O mistério supremo do Universo

O mistério supremo do Universo
O único mistério, tudo e em tudo
É haver um mistério do universo,
É haver o universo, qualquer cousa,
É haver haver. Ó forma abstracta e vaga
Que tão corrente haver em mim demora
Que pensar isto é-me no corpo um frio
Que sopra d'além terra e d'além-túmulo
E vai da alma a Deus.

Fernando Pessoa , in Fausto - Tragédia Subjectiva  . (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988

Prometeu
Cobre o teu céu, ó Zeus,
De vapores de nuvens!
E ensaia, como um rapaz
Que decapita cardos,
As tuas artes em carvalhos e cumes!
A minha terra, essa
Tens de deixar-ma,
E a minha cabana,
Que não construíste,
E o meu lume,
Cujo fogo
Me invejas.

Nada conheço de mais pobre
Sob o Sol que vós, deuses.
Mal conseguis alimentar
Com tributos de oferendas
E o sopro de orações
A vossa majestade,
E morreríeis à míngua se não
Fossem crianças e pedintes,
Loucos cheios de esperança.

Quando eu era criança,
Sem saber que pensar nem que fazer,
Voltava para o Sol os olhos
Perdidos, como se lá em cima houvesse
Um ouvido para o meu lamento,
Um coração como o meu
Para se compadecer dos oprimidos.

Quem me ajudou contra
A arrogância dos Titãs?
E da morte quem me salvou,
Da escravidão?
Não fizeste tu tudo sozinho,
Coração, com teu fogo sagrado?
E não ardeste tu, jovem e bom,
Enganado, dando graças de salvação
Aos deuses adormecidos lá em cima?

Eu, venerar-te? Para quê?
Aliviaste tu alguma vez
As dores dos que sofrem?
Alguma vez secaste as lágrimas
Dos angustiados?
E quem forjou em mim o Homem, se não
O Tempo todo poderoso
E o Destino eterno,
Meus e teus senhores?

Pensaste porventura
Que eu havia de odiar a vida,
Fugir para os desertos,
Porque não deram fruto todos os sonhos
Que despontaram na aurora da juventude?
Aqui estou eu, criando Homens
À minha imagem,
Uma estirpe igual a mim,
Que sofra e chore,
Goze e se alegre,
E te não respeite,
Como eu.
Johann Wolfgang von Goethe, in Obras Escolhidas de Goethe, vol. 8, Poesia,  trad. João Barrento, Círculo de Leitores, Maio de 1993, pp 22-23.

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