segunda-feira, 10 de outubro de 2016

"Terra, casa de todos os homens"

O poder da palavra
Por Adriano Moreira
“Tenho frequentemente chamado a atenção para dois pressupostos da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que são os conceitos do "mundo único" e a "terra casa de todos os homens". Tratou-se de conseguir a unidade coordenada das diferentes parcelas dos povos diferentemente separadas pela etnia, pela cultura, pela religião, pela história conflituosa determinada por conceitos estratégicos contraditórios quanto às ambições políticas de cada unidade.
A caminhada das contradições até este século XXI sem bússola, ficou marcado por duas guerras mundiais travadas na mesma geração, com um passivo de destruições de vidas e patrimónios apenas comparável com o que a imaginação pode antever qual será a dimensão de um novo conflito que utilize os avanços da ciência e da técnica aplicados com o perigoso amparo da estratégia do saber.
Contra esta vertente da história global dos povos que, com ou sem decisão própria, se consideram na posição de dominadores ou obrigados à submissão de vencidos e dominados, o único instrumento que pôde ser usado, obtendo lentos progressos, foi a palavra. O poder da palavra muitas vezes vencendo a palavra dos poderes, impondo a força dos valores contra a violência das armas, construindo solidariedades que aprofundam as identidades institucionais e desenvolvendo, pela pluralidade das línguas, as parcelas que hoje procuram a governança unitária que respeita as diferenças a partir dos paradigmas comuns.
A maldição da Torre de Babel tende a ser ultrapassada por este sentimento da comunidade de afectos, que ele também exige meios de comunicação que superam a diversidade das línguas, longamente muro de separação entre as comunidades diferenciadas, procurando substituir a tolerância pelo respeito, o conflito pelo diálogo, as diferenças pela conciliação. É certo que o avanço da ciência e da técnica fortaleceu o agravamento dos conflitos que recorrem às formas de guerra que se multiplicam, mas também é evidente que desenvolveram os meios da compreensão recíproca das comunidades diferenciadas.
A ONU, que foi orientada na origem pelos paradigmas da mudança que ficaram apontados, entre as estruturas que criou, a começar pela UNESCO prestadora de serviços inestimáveis, também fortaleceu o avanço do entendimento das línguas diferentes utilizando um número crescente de idiomas no seu sistema de comunicação.
A língua portuguesa está entre as seleccionadas, entre mais razões porque, no desabar do império euromundista que a Carta da ONU decidiu, conseguiu organizar a única instituição que substituiu a articulação colonial pela vontade comum de conservar os afectos, que é a CPLP, apoiada pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Foi a língua o instrumento de preservação da solidariedade salva, sem exemplo em relação a outras soberanias que retiraram, não tendo coincidência com o modelo da Comunidade Britânica que se vai reduzindo aos Estados de povoamento anglo-saxónico. Não é desculpável que a evolução da CPLP e do Instituto se faça em termos de a participação construtiva portuguesa ser descurada, designadamente porque se trata de uma parcela de liberdade e igualdade do pequeno país que somos na Comunidade das Nações.
Devendo acrescentar-se ao património que a língua representa a presença da memória, dos costumes, do ordenamento das sociedades civis das comunidades que, não sendo independentes como aconteceu em Malaca, em Goa, em Macau, no Havai, embora esquecendo a língua, até mudando de religião, não perdem a relação cultural com a origem histórica. Que a ONU tendo incluído o português nas oito línguas que utiliza no seu site, que a China tenha hoje, salvo erro, umas 15 escolas a ensinar português, que o ensino universitário japonês inclua a língua portuguesa, agrava o descuido para com esta nossa participação no que é o património comum da humanidade.
O processo de integração da Guiné Equatorial na CPLP pode não ser passivo de censura, mas exige servir de exemplo e chamada de atenção, que foi mais de uma vez feita, para a evolução de instituições portuguesas no Brasil, com destaque para o Real Gabinete Português de Leitura, que perderam a presença portuguesa nas direções. Pode estar de acordo com a evolução e ritmo da renovação das emigrações, mas está em desacordo com a importância da força da relação luso-brasileira: porque é a primeira na ordem das independências políticas do ainda então reino, porque é um património comum que exige desvelo, porque é uma trave mestra de solidariedade da CPLP, e esta uma janela de liberdade portuguesa. Porque a pertença à União Europeia, e antes disso à NATO, não suprime a liberdade de cultivar e fortalecer estas ligações que ajudam a fortalecer as raízes e a formular um novo futuro.” Adriano Moreira , artigo de opinião publicado no DN de 16.03.2016

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