sábado, 9 de julho de 2016

UE, um grande mercado sem alma

Uma Europa por reconstruir

"Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, deve arrepender-se de ter associado um eventual voto negativo dos britânicos a um «início de destruição, não apenas da União Europeia, mas também da civilização europeia» (BBC World, 13 de Junho de 2016). Apesar disso, a vitória do Brexit constitui, de facto, um duro golpe para todo o Velho Continente.
Porque, desta vez, vai ser difícil ignorar o sufrágio universal recorrendo ao apoio de uma classe política desautorizada pelo resultado do referendo de 23 de Junho, no intuito de atamancar disposições rejeitadas pelo povo. Em Londres, ninguém consegue imaginar que se avance para uma denegação da democracia tão flagrante como a que foi perpetrada em França e na Holanda a seguir ao voto negativo de Maio de Junho de 2005 sobre o Tratado Constitucional Europeu. É também duvidoso que os britânicos possam ser tratados com tanto desprezo como os gregos que, em resposta à sua pretensão de reorientação do rumo da União Europeia, foram asfixiados financeiramente e forçados a aceitar uma purga social com efeitos económicos desastrosos.
Em 1967, o general De Gaulle opôs-se à entrada do Reino Unido na Comunidade Económica Europeia, porque recusava «a criação de uma zona de comércio livre da Europa ocidental, enquanto se aguarda pela zona atlântica, a qual retiraria ao nosso continente a sua própria personalidade». Seria injusto, no entanto, imputar apenas a Londres a responsabilidade dessa retracção, pois ela teve mãos igualmente cúmplices em Berlim, Paris, Roma, Madrid… A tal ponto que não se percebe bem que «personalidade», que especificidade reclama ainda hoje a União Europeia. É aliás esclarecedor que, para tentar prevenir a saída do Reino Unido, esta tenha aceitado, sem grande dificuldade, uma disposição que teria suspendido as ajudas sociais prestadas aos trabalhadores de outros países europeus, bem como uma outra que teria concedido uma protecção reforçada aos interesses do sector financeiro.
A União, projecto de elites intelectuais nascido num mundo dividido pela Guerra Fria, desperdiçou há um quarto de século uma das grandes bifurcações da história – um outro caminho possível. A queda da URSS deu ao Velho Continente uma oportunidade para refundar um projecto susceptível de satisfazer a aspiração das populações a justiça social e paz. Mas, para isso, teria sido necessário que não se tivesse medo de desfazer e reconstruir a arquitectura burocrática sub-repticiamente erigida ao lado das nações, e ainda que se tivesse mudado o motor livre-cambista desta máquina. A União teria então oposto, ao triunfo da concorrência planetária, um modelo de cooperação regional, de protecção social e de integração por cima das populações do ex-bloco de Leste.
Contudo, em vez de uma comunidade ela criou um grande mercado, carregado de comissários, de regras para os Estados e de punições para as populações, mas muito aberto a uma concorrência desleal para os trabalhadores. Um grande mercado sem alma e sem outra vontade que não a de agradar aos mais privilegiados e aos mais bem relacio nados das praças financeiras e das grandes metrópoles. A União já só alimenta um imaginário de penitências e de austeridade, invariavelmente justificado pelo argumento do mal menor.
Não será possível compreender a dimensão do protesto que o voto britânico acaba de expressar acusando-o de populismo ou de xenofobia. Também não será amputando mais ainda as soberanias nacionais, em benefício de uma Europa federal que quase ninguém quer, que elites políticas autistas e desacreditadas poderão responder à cólera popular que acaba de se manifestar no Reino Unido – e que está a aumentar noutras paragens…"
sexta-feira 8 de Julho de 2016
Serge Halimi, Le Monde Diplomatique

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