sexta-feira, 22 de julho de 2016

O meu filho

The Woman with cat, Pablo Picasso
O meu filho mais novo
Por António Lobo Antunes
21.04.2016 às 8h46
Desde que me separei, há seis anos, vivo sozinha com os meus dois filhos. Quando o meu marido saiu pensei que ia ser difícil. Agora sei que é difícil. Os miúdos passam fins de semana alternados com o pai, e almoçam às quartas-feiras com ele, que vai buscá-los à escola e os deixa de novo lá uma hora depois. Quando os vem buscar nos tais fins de semana alternados toca à campainha em baixo, quando os vem trazer toca de novo à campainha. Nunca mais subiu, já nem se deve lembrar como esta casa é, agora com menos móveis, menos quadros, menos livros porque ele levou o que achava pertencer-lhe e eu não queria discussões. Não há um só retrato nosso em parte alguma, na sala, no quarto, seja onde for, não há o menor rastro dele aqui. Assim de repente é como se nunca tivesse estado. Há alturas em que me pergunto se esteve. Tudo se passou sem grandes discussões e nem lhe perguntei se havia outra mulher. Para quê? Claro que havia. Nenhum homem se vai embora no caso de não existir outra mulher, não são capazes de ficar sozinhos, têm um medo horrível da solidão, não se imaginam, por exemplo, com febre, sem uma mulher para tomar conta deles. Em certas coisas são mais pequenos e indefesos do que os filhos, continuam a exigir a presença da mãe nem que seja por namorada interposta. Os meus filhos nunca falam dela, na ideia deles a fim de me protegerem, coitados, com receio que eu fique triste. Não ficaria triste: para quê ficar triste diante do inevitável. Se calhar pensam que ainda gosto do pai. Se calhar pensam bem, se calhar pensam mal, não sei responder. Foram quatro anos de namoro e sete de casamento e o divórcio nunca me passou pela cabeça. Talvez não fosse muito feliz mas também não era infeliz. Que me lembre não tivemos nunca uma discussão grave da mesma forma que não tivemos nunca momentos de grande felicidade. Ele não falava muito, eu não falo muito e, com o tempo, fomos falando menos. Normalmente, se íamos jantar fora ou ao cinema, convidávamos ou éramos convidados por um casal amigo, de modo que não havia silêncios embaraçosos nem tempo para nos aborrecermos um do o outro, com ele a rodar a aliança no dedo como se quisesse libertar-se de uma grilheta. Se percebia que eu estava a reparar sorria-me. E eu sorria-lhe de volta a pensar nas vezes em que a tiraria de facto, colocando-a na argola do porta-chaves para não a perder. Isto, por exemplo, durante os jantares da empresa ou nas formações em que se juntavam num hotel qualquer fora de Lisboa e voltavam no dia seguinte, depois de se reunirem com os colegas e as colegas do Porto e de Coimbra, aos quais ele ia sempre bem disposto embora escondesse a boa disposição, ou seja embora tentasse esconder a boa disposição de mim, e dos quais voltava sempre mal disposto, sem esconder a má disposição de mim. Ao desfazer-lhe a mala às vezes encontrava na roupa um cheiro diferente mas nunca disse nada acerca disso para o poupar, e me poupar, a desculpas patetas e à cara aflita que ele não conseguiria disfarçar: mentem tão mal os homens, até nisso são infantis e eu a sentir que não tinha dois filhos e um marido, tinha três filhos e o meu marido era o mais novo. Os homens são sempre os filhos mais novos que temos. E passava-me pela cabeça que, em lugar de cama, devíamos dormir num berço grande. Desculpas tão ingénuas, tão tontas que, às vezes, quase me enterneciam. Não é que não seja ciumenta, claro que sou ciumenta, quem não é ciumento, mas obrigá-lo a ser pateta custava-me, e depois o medo nos olhos dele quase me dava vontade de lhe fazer uma festa. Não uma festa de mulher a um homem, uma festa de mulher a um garoto aflito, de forma a ele poder contar depois aos colegas
– Graças a Deus sei fazer as coisas como deve ser e ela não entendeu nada
numa espécie de riso satisfeito, embora com uma inquietação lá no fundo, uma pequenina dúvida que o faria, à cautela, portar-se bem uns tempos. E isto foi andando assim até conhecer esta, assistia a esta aumentando dentro dele, assistia à sua pobre batalha interior até chegar o inevitável
– Não é que não gosto de ti, gosto de ti mas acho que preciso de ficar sozinho uns tempos
o inevitável
– O problema não está em ti, está em mim
o inevitável
– Tu mereces melhor do que eu
o inevitável
– Vou alugar uma casa e depois logo se vê
o inevitável
– Com a distância a gente vê tudo mais claro
o inevitável
– É claro que volto
e, inevitavelmente, não voltou. Saiu quando eu estava a trabalhar, claro, não são capazes de saírem à nossa frente, até aposto que com uma lagriminha na cara, não de amor por mim, de pânico
– O que vai acontecer, oxalá não corra mal, oxalá que, se correr mal, ela me receba outra vez
e se calhar recebia, somos tão parvas, fomos sempre tão parvas, seremos sempre tão parvas, tão mãezinhas, tão cheias de dó. Hoje em dia, claro, é diferente. Muito diferente. Completamente diferente. Tão diferente que, se ele me aparecesse, sei lá, por exemplo à saída do emprego, a pedir para voltar, como de costume nos homens exagerado, patético
– Não posso viver sem ti
ou
– Todo este tempo não deixei de te amar
ou
– Só consigo ser feliz contigo
nós, que nem sequer fomos assim muito felizes um com o outro, ele não foi muito feliz comigo e eu não fui muito feliz com ele, até era capaz, que patetice, de o ouvir calada, de o deixar abraçar-me, o deixar beijar-me, era capaz, se calhar, quer dizer não era capaz, abraçava-o mesmo e lá acabava eu por aceitar de novo em casa
– Pronto, pronto
o meu filho mais novo, coitadinho.”

António Lobo Antunes , em Crónica publicada na revista Visão , em 21.04.2016 

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